Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





12 de jan. de 2021

TEXTO XLII: A noção de "cosmos" para o advento da ciência.

Rodrigo Rodrigues Alvim da Silva
 
01. “Cosmos” é uma concepção de longa tradição na cultura ocidental e hoje está presente na formação de outros termos, como “microcosmos”, “macrocosmos”, “cosmopolita”, “cosmologia”, “cosmonauta”, “cosmovisão” e até “cosmético”. O significado comum que podem ter esses últimos termos talvez seja uma boa pista a se trilhar para a recuperação do sentido que consagrou a palavra “cosmos”.

02. Nossa intenção aqui é endossar a hipótese de que a noção filosófica original de “cosmos” expressa uma aposta que foi historicamente importante ao surgimento das concepções científicas ulteriores ou, antes, para o surgimento da própria concepção de “ciência”, mesmo quando, contemporaneamente, alguns cientistas possam questioná-la.

03. Segundo os estudiosos, “cosmos” é um termo de origem grega, κόσμος, bastante antigo. Nos documentos mais remotos que nos chegaram, aparece, pela primeira vez, na obra Ilíada, de Homero, no sentido da ação de “ordenar”: “Não havia nascido nada na terra que competisse com ele em ordenar (κοσμσαι) cavalos e guerreiros, portadores de escudos.[1] Nesse sentido, escreve o filósofo inglês, Jonathan Barnes, especialista no pensamento grego antigo:

O substantivo Cosmos deriva de um verbo cujo significado é "ordenar", "arranjar", "comandar" – é utilizado por Homero em referência aos generais gregos comandando suas tropas para a batalha. Um kosmos, portanto, é um arranjo ordenado. Mais que isso, é um arranjo dotado de beleza: o termo kosmos, no grego comum, significava não apenas uma ordenação, como também um adorno (daí o termo moderno "cosmético"), algo que embeleza e é agradável de se contemplar.[2]


04. Como ornamento, o cosmos chamava assim a atenção, muito diferentemente daquele “vazio”, tal qual um bocejo entre Terra e Céu, descrito em outro poema épico, a Teogonia, de Hesíodo, e ao qual este poeta chamou de “Caos” (χος).


05. Mais adiante, na literatura filosófica, particularmente, o termo “cosmos” aparece primeiramente dentre os fragmentos da obra de Heráclito de Éfeso: “Este cosmos, igual para todos, não o fez nenhum dos deuses, nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e extinguindo-se conforme a medida.[3]

06. No entanto, é importante sublinhar que essa concepção só foi possível em virtude de um esforço de gregos anteriores em pensar o mundo diferentemente das narrativas míticas, lembrando que mythos significa “palavra”, um outro modo de dizer, portanto, que se tornará singular. Esse modo diferente de pensar e dizer será chamado por eles também de “palavra”, uma palavra distinta da então dominante. Surgiu assim o termo logos, já em sua acepção de “linguagem racional”.

07. O surgimento dessa novidade não pode ser satisfatoriamente compreendido sem algumas mediações que nos cabe, ainda que sucintamente, aqui fazer. Faremo-las por alusão à obra daquele a quem foi atribuído, certamente por isso mesmo e menos por alguns ditados de conduta que também lhe são atribuídos, o título de um dos sete sábios da antiguidade grega: Tales de Mileto.


08. “A água é o princípio e governo de todas as coisas” era, para o contexto de Tales, uma afirmação improvável. Tendo, no entanto, ocorrido, significou um salto no modo de pensar a vida, o que pode ser esclarecido por dois comentários.

*** Primeiramente, ela propõe-nos que o sentido do mundo é imanente ao próprio mundo ou, de outra forma, que o sentido do mundo não o transcende, não está em possíveis entidades além dele mesmo, pois a água é um elemento mundano. Ora, o governo do mundo por tais entidades extraordinárias era consenso no tempo de Tales, de tal sorte que sentiam os homens daquele tempo na graça ou ameaça da vontade caprichosa de tais deuses. O mundo era inesperado e arbitrário, pois era expressão dos ânimos e humores divinos. Com Tales, essa condição tornou-se suspeita.

*** Em segundo lugar, reduzir todas as coisas do mundo a um só e mesmo elemento é dizer que tais coisas e o seu acontecimento não são isolados, mas intercambiáveis e comensuráveis entre si. Surge aí a ideia de unidade da qual a própria diversidade é expressão: “tudo é um”, como observou Friedrich Nietzsche ao comentar essa proposição de Tales”[4], ou, de outra forma ainda, tudo é fundamentalmente o mesmo. Ora, de maneira embrionária, para admitir-se o mesmo no outro ou a identidade na diversidade, estava esboçando-se a noção de sistema, de interdependência de partes de um todo, de ordem não necessariamente hierárquica, de “cosmos”. Isso se tornará ainda mais surpreendente ao fundo de uma compreensão mítico-religiosa dominante que ainda propõe diferentes deuses como responsáveis por diferentes coisas e acontecimentos no mundo, algo que somente mais tarde começou a mudar pela hierarquia dos deuses da Teogonia de Hesíodo.

09. Esse salto de Tales permitirá o nascimento da “filosofia”, ou seja, por sua etimologia, do “amante”, do “amigo”, do “pretendente” à sabedoria. Embora hoje o mesmo termo nos pareça amistoso, significou naquela ocasião, para muitos, uma ousadia, um perigo, quando não uma ofensa. A razão do mundo, porque do mundo no qual nos encontramos, estaria se nos mostrando, bastando que nos demorássemos, pacientemente, na contemplação deste mundo que se nos revela por si só. Mais tarde, enfim, ao dizer da razão filosófica, há de se perceber que ao mesmo tempo em que a atribuímos como do mundo (por propriedade), também a atribuímos como de nós mesmos (por capacidade), tudo coincidindo nessa estranha faculdade que temos de alinhavar as coisas e acontecimentos do mundo.
 
10. Sendo assim e desde então, comparar as coisas e os acontecimentos, podendo tudo ousar comparar (nominando-os em nossa história como simetria, proporção, desdobramento, identidade) pressupõe que podemos conhecer, indo de um a outro, indo ao ainda desconhecido pelo já conhecido, reconhecendo inclusive erros por um arranjo melhor. Assim iniciou Tales.


11. Eventos atribuídos à sua vida apenas reforçam esse reconhecimento. Conta-se que, certa vez, caiu num buraco por não prestar atenção por onde andava, preocupado em contemplar os astros. Mas é também sobre ele que se conta a previsão de um eclipse, o que só seria possível a quem há muito tempo notava e anotava o movimento dos astros, ao ponto de, em meio aos tantos movimentos inicialmente confusos, perceber, enfim, invariantes, que nos dá como que a capacidade de nos adiantar no tempo... Foi a ele atribuída a astúcia de se enriquecer porque, atendo às estações (outra rotina) de um mundo que parecia tão incerto, ainda percebeu a relação entre elas e as safras de diferentes produtos, comprou antecipadamente todas as máquinas de extração de óleo de oliva, alugando-as, logo depois, quando veio uma grande colheita do fruto. Soma-se a isso toda a sua dedicação aos teoremas geométricos, aplicáveis em associação às regularidades do caminho do sol e das sombras que produzia, mas aos quais se dedicava pelo simples fato de nos assegurar constantes e universais.
 
12. Tal fascínio fará com que Aristóteles de Estagira escreva, mais tarde, que é a admiração que nos leva a filosofar, ou seja, a buscar uma compreensão lógica do mundo, embora hoje tendamos a relacionar a “beleza” muito mais aos sentimentos humanos do que à nossa inteligência. O filósofo não admite o acaso, senão como momentânea ignorância nossa da razão que perpassa toda realidade: tudo tem sentido. Isso justifica o caráter sistemático, jamais antes visto, que Aristóteles impregna em seus estudos, propondo e fazendo predominar durante quase dois mil anos a sua proposição da ordem do mundo, o geocentrismo.


13. Semelhantemente a Aristóteles na antiguidade grega, precisamente quando a visão aristotélica do universo entra em crise no Ocidente, através do trabalho do matemático Nicolau Copérnico e do igualmente matemático e físico Galileu Galilei, o homem moderno, em geral, continuará apostando na ordem do mundo, pois esse mesmo trabalho que lhe tira o cosmos geocêntrico, então hegemônico, é o mesmo que lhe apresenta um novo cosmos, denominado na época “heliocentrismo”. Ademais, é importante sublinhar que, às vezes, o heliocentrismo foi preferível ao geocentrismo em virtude de a ordem que propunha lhe valer previsões mais precisas em relação aos movimentos celestes. Há quem goste de citar a afirmação de Albert Einstein de que “Deus não joga dados” para sugerir sua crença na existência de uma entidade divina e providente, quando, na verdade, ele estava somente apresentando de maneira figurativa o que se encontra na base de toda investigação científica, a saber, de que nada acontece por acaso no mundo; que o acaso é apenas uma tentativa nossa de projeção no mundo do que seria nosso: a ainda ignorância de determinadas correlações entre fenômenos.


14. A totalidade das coisas e acontecimentos como expressão de uma harmonia, de uma ordem, tem um teor prático tantas vezes ignorado, pois é precisamente essa aposta que se traduz na pré-compreensão de que a dita realidade é explicável, é um desdobramento, um continuum. É ela que nos coloca nas trilhas do conhecimento, da ciência antes mesmo de qualquer êxito. Afinal, se não tivéssemos essa pré-compreensão do sentido (que perpassa todas as coisas, subtraindo-as do absurdo), quem se predisporia a buscar conhecer?
 
O cosmos é o universo, a totalidade das coisas. Mas é também o universo ordenado e o universo elegante. O conceito de cosmos apresenta um aspecto estético. (Costuma-se dizer que é isso, inclusive, o que o torna caracteristicamente grego.) Mas também, e a nosso ver de maneira mais importante, tem um aspecto essencialmente científico: o cosmos é, necessariamente, ordenado – e portanto deve ser, em princípio, explicável.[5]
 
15. É imprescindível a esta altura compreender que, do mesmo modo que a advertência de que a água não é o princípio e governo de todas as coisas não compromete a revolução do pensamento promovida por Tales (pois ainda procuramos a causa das coisas e acontecimentos nas próprias coisas e acontecimentos), a advertência de que a ordem do mundo são apenas modelos humanos que atribuímos ao mundo não atinge a hipótese de que apostamos numa ordem do mundo, tratando-o assim “cosmologicamente”.
 
16. Quando David Hume observou que aquilo que tomamos como conexão necessária não passaria de uma conexão habitual, isso, na verdade, não comprometeu em nada a pressuposta ordem do mundo, pois “hábito”, “costume” e a “crença de que o futuro há de se dar tal e qual o passado” implica tanto a ideia de uma regularidade quanto à de lei da natureza. Por isso mesmo que Immanuel Kant, ao cabo de suas duas maiores obras, pôde reconhecer o quanto a ordem, seja ela no âmbito do humano (ética) seja ela no âmbito das coisas (ciência), causa grande admiração em nós:
 
Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: 
o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.[6]

[1] HOMERO. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2013. Canto II, Verso 555.

[2]  BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 200.

[3] Trata-se do Fragmento 30: κόσμον τόνδε, τὸν αὐτὸν ἁπάντων, οὔτε τις θεῶν οὔτε ἀνθρώπων ἐποίησεν, ἀλλ’ἦν ἀεὶ καὶ ἔστιν καὶ ἔσται πῦρ ἀείζωον, ἁπτόμενον μέτρα καὶ ἀποσβεννύμενον μέτρα. Comparar com a tradução em: MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 15, ou BORHEIM, Gerd. A. Os filósofos pré-socráticos. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 38.

[4] NIETZSCHE, Friedrich. Crítica modrna. Tradução de Rubens Rodrigues Filho. In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS. São Paulo Nova Cultural, 1999. P. 43 (Coleção Os pensadores).

[5] BARNES, Jonathan. Op. cit.

[6] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 183.

TEXTO XLI: A obra de Karl Marx e Friedrich Engels - observações gerais.

 Rodrigo Rodrigues Alvim
 
I. Palavras introdutórias.
 
01. O nome de Karl Marx está associado a muitos preconceitos que podem exaltar ou, ao contrário, condenar prontamente a sua obra. Tais preconceitos habitam comumente pessoas que jamais leram quaisquer dos textos desse pensador. Sabem alguma coisa por ouvir dizer de alguém que possivelmente sabe alguma coisa por ouvir dizer, nunca se sabendo onde é que se encontra o paradeiro dessa transmissão, que geralmente está associada à ideia de que Karl Marx encontrou fama (boa ou má) como um estudioso apenas ou sobretudo do comunismo.
 
02. Para evitar partir de um ponto suscetível aos mesmos preconceitos, talvez seja importante já dizer que Marx tem a sua grande contribuição mais como um estudioso do capitalismo do que do comunismo, pois o capitalismo lhe é, como para nós, um objeto factível de observação, uma vez que se trata do modo de produção no qual ele e nós nos encontramos inseridos, enquanto o comunismo não passava - e ainda passa - de uma expectativa, que pode se realizar ou não. Aliás, além do capitalismo, modos outros de produção são os que antecederam o capitalismo, como o feudalismo e o escravismo, neste sentido também objetiváveis historicamente e, assim, observáveis.

 
03. Ainda para contribuir na superação desses preconceitos arraigados em muitos, podemos fazer uma distinção entre o Marx engajado politicamente em seu tempo e o Marx estudioso ao modo dos rigores da academia de seu tempo. Obviamente, essa distinção é um artifício apenas didático, pois, na realidade, trata-se de uma única e mesma pessoa, na qual essas coisas não podem ser separadas. Insistimos, todavia, no efeito didático dessa distinção, capaz inclusive, como se verá, de nos permitir compreender aparentes contradições que alguns atribuem a esse pensador.
 
04. Por fim, é inclusive possível medir, na inteireza de sua obra, que Marx pouco escreveu sobre o comunismo, embora tenha sido, com o seu grande amigo, Friedrich Engels, o fundador do Partido Comunista, através de um texto panfletário denominado “Manifesto do Partido Comunista”, do qual também trataremos um pouco mais adiante.
 
05. Esse seu amigo que aqui introduzimos não lhe é um amigo qualquer. Foi ele quem organizou grande parte dos escritos de Marx para publicação, com o falecimento deste. Também publicou obras capazes de nos dar esquemas que, por um lado, nos facilitam a compreensão da obra de Marx, porém, por outro lado, como quaisquer esquemas, deixam o desenrolar do pensamento de Marx um tanto mecanicista e até pouco dialético. De toda forma, hoje não mais se subestima a influência de Engels na obra de Marx como aconteceu em décadas passadas. O próprio Engels é o grande responsável por essa falta de reconhecimento no passado, pois ele, textualmente, relegou a autoria da obra principal de Marx, “O Capital,” somente a este – como aquelas coisas que os verdadeiros amigos costumam fazer em memória de um amigo que partiu mais cedo. Uma última observação sobre Engels (que também apresento para atenuar o preconceito que se tem de Marx como virulento inimigo de pessoas da burguesia), é que ele era um dos homens mais ricos da Europa, tendo a sua família fábricas instaladas em Manchester, cidade modelo de industrialização no século em que viveram, o século XIX. Isto também será retomado mais tarde como auxílio na compreensão do pensamento de Karl Marx.
 
II. O materialismo histórico-dialético.
 
06. Marx nasceu praticamente com o século XIX, precisamente no ano de 1818, num grande país germânico e monárquico da época, a Prússia. De família de tradição judia e liberal (seu pai era advogado), Marx começou estudando Direito nas Universidades de Bonn e Berlim, sofrendo influência do pensamento hegeliano, que havia já alcançado notoriedade naqueles tempos em que Hegel ainda lecionava. Filiou-se a um grupo de intelectuais que tomavam as obras hegelianas para desenvolver a crítica geral ao status quo, os “hegelianos de esquerda”, que se opunham ao conservadorismo dos “hegelianos de direita”. Logo abandonou o Direito e passou a se dedicar ao estudo da Filosofia. Formado, tornou-se redator de um jornal, a “Gazeta Renana”. Seus artigos, críticos ao governo prussiano, custaram-lhe o fechamento do jornal. Desempregado, viu-se obrigado a deixar seu país e mudou-se para a cidade de Paris, tornando-se redator dos “Anais Franco-Alemães”. Não demorou para também ser expulso daí, em seguida de Bruxelas e, logo depois, de Colônia, sempre trabalhando em jornais. Enfim, em 1849, fixou-se em Londres até a sua morte, em 1883. Foi casado com uma filha da aristocracia prussiana, Jenny von Westphalen, depois de um longo noivado em segredo. Tiveram vários filhos, embora apenas três, mulheres, chegaram à fase adulta, e não raro enfrentaram grandes privações materiais. A esposa de Marx e suas filhas também foram muito atuantes no desenvolvimento e na divulgação do pensamento de Marx, embora sobre isso não nos estenderemos aqui.


07. Afeito à crítica pelo seu pertencimento aos “hegelianos de esquerda”, Marx adotará a dialética como método de análise da realidade, mas rejeitará o idealismo hegeliano, ou seja, a primazia do pensamento em relação à história, à sociedade, à economia. Como escreverá em sua “Contribuição à crítica da economia política”, “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência” (1). Para Marx, o método dialético hegeliano estaria de ponta-cabeça, ou seja, de cabeça para baixo, invertido, ao pretender transitar da ideia ao concreto (e não, como ele pensa ser adequado, das condições objetivas à maneira de pensar). Nesse sentido, Marx não é mais “idealista”, mas “materialista”, ao modo de um outro “hegeliano de esquerda”, considerado comumente “pai do materialismo moderno”, chamado Ludwig Feuerbach” – não obstante Marx há de considerar a possibilidade de uma radicalização maior desse materialismo. Essa mesma afeição crítica que Marx assumiu desde a sua formação universitária e em contato com os “hegelianos de esquerda” vai aproximá-lo dos socialistas, que se organizavam em sociedades secretas. Entretanto, qual a sua relação com a obra hegeliana, a relação de Marx com os socialistas de sua época é ambígua. Ele os tomará como “utópicos” ou “românticos”, primeiramente por se demorarem nos discursos de descrição da sociedade ideal futura, sem determinarem os caminhos concretos para se chegar lá. Próximo a isto, é o que Marx escreveu da própria filosofia: “Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras, do que se trata é de transformá-lo” (2). Por isso, muitos interpretam o pensamento marxista não como ou uma simples teoria ou um mero ativismo, mas como a pretensão de uma síntese entre teoria e prática, a que chamam de práxis. Ao mesmo tempo, Marx não deixa de reconhecer a força do pensamento sobre a ação do sujeito, pensamento que ele traduzirá pelo termo “ideologia”.



08. Marx sublinha que cada ser humano se encontra inserido em condições concretas que o determinam. Em geral, destaca que o homem, como outro animal qualquer, tem que satisfazer as suas necessidades materiais, prover o que comer, o que beber, o que vestir, etc. Essa relação com a natureza para dela tirar, para a partir dela produzir tudo o que é preciso à satisfação de suas demandas objetivas (base da economia), também implicará o seu arranjo com os seus iguais, ou seja, dos seres humanos entre si (base da sociedade), meios, relações e modos de produção que vão transmutando no decorrer do tempo (base da história humana), de tal sorte que economia, sociedade e história são para Marx os eixos concretos de produção ou, em termos reforçados por Engels, a “infraestrutura material”, a partir da qual uma “superestrutura” simbólica e cultural se elabora (religião, política, arte, ciência...). Sendo assim, quando a infraestrutura se modifica, arrasta consigo transformações “superestruturais”. É por isso que Marx se demora em inspeções econômicas, sociais e históricas, e pouco trata relativamente de religião, ciência, etc. É claro que um esquema assim pode esconder o quanto as ideias podem retroagir nessas condições materiais, em relação mais perfeitamente dialética (de reciprocidade e interpenetração) do que de causa e efeito linear, mas o destaque de Marx e sobretudo de Engels deve ser compreendido dentro de um contexto de predomínio do idealismo e do espiritualismo, de causa e efeito linear e invertido na avaliação que fazem. A própria ideologia, que antes definimos, expressa que ela pode determinar a conduta do sujeito. Contudo, não se esquece em Marx que a ideia geral de mundo que um sujeito possui é dependente da classe social a que ele pertence, pois, naquele esforço humano de transformar a natureza, adequando-a às nossas necessidades de sobrevivência, as relações sociais de produção que se estabelecem para tanto subdividem os homens em grupos distintos, grosso modo, em amos e escravos, em senhores e servos, em patrões ou empregados. Logo, mais uma vez, estamos a dizer que, conforme as condições objetivas de vida dentro de uma sociedade, formularemos a nossa ideia geral de mundo. As condições precárias de trabalho de um empregado não lhe permitem que formule uma ideologia segundo a qual ele pense viver no melhor dos mundos possíveis; as condições de vida favoráveis que um patrão possui o fazem pensar que, de um modo geral, o mundo vai bem e deve continuar como está. Disso há de decorrer que ambos terão interesses contraditórios ou antagônicos de vida (movimento dialético: tese e antítese), que, se acirrando, há de desembocar em “revoluções” para uma nova “ordem” (síntese, nova tese). Esse é o movimento que fez a transição do modo de produção escravista para o modo de produção feudal e do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, permitindo a Marx e Engels inferir que também o modo de produção capitalista há de ter as suas contradições internas acirradas ao ponto de entrar em colapso, sabe-se lá quando. Esta é a chave de leitura da história que Marx nos deixou. É preciso notar que por ela não se destaca distinções simbólicas como acontecem quando marcamos a história em Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna. A chave delegada por Marx é por aquilo que ele entende como material e objetivo. A história se dá por elementos imanentes ao próprio mundo e não mais abstratos ou metafísicos, ao modo de um Espírito hegeliano, ou muito menos religiosos (ao modo de uma teologia natural). Isso permite Marx ao mesmo tempo considerar o ser humano como sujeito de sua história (contrário ao determinismo a que se deveria submeter à luz das concepções que advogam transcendentes metafísicos ou religiosos), mas também atrelado às suas condições concretas de vida, o que lhe permitiu escrever em “O 18 brumário de Luís Bonaparte”: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (3). Há, pois, um movimento dialético da subestrutura material que escapa ao arbítrio humano, que se autodetermina ao modo dos movimentos naturais e que, por isso mesmo, pode ser assim estudado ao modo do cientificismo que se impõe no século XIX. Sobre isso, Engels foi mais enfático, mormente no que ele produziu depois da morte de Marx. Consequentemente, estudar a origem, o desdobramento e o fim dos modos de produção passados pode lançar luz na compreensão do modo de produção atual, o capitalista, que é, por isso mesmo, o tema central dos estudos de Karl Marx e Friedrich Engels. Consolida-se desde então o ingresso de seus trabalhos no rol de interesses dos historiadores ulteriores.

 
III. Uma breve história das relações de trabalho, da produção da riqueza e da sua redistribuição.
 
09. Dentre as oposições que Marx e Engels apresentam para bem ilustrar o movimento dialético no interior dos modos de produção, a que ocorre entre “os que detêm os meios de produção” (tese) e “os que não detêm os meios de produção” (antítese) se sobressai. É uma oposição que vai se tensionando no decorrer do tempo e ao termo de uma ruptura que instaura uma novidade. Esta oposição foi denominada “luta de classes”, fazendo, assim, com que os estudos desses filósofos obtivessem a atenção também da sociologia posterior.


10. A tensão entre as duas classes se ancora principalmente na observação de que, ao mesmo tempo que são reciprocamente excludentes, a condição de existência de uma e outra está na sua interdependência. Esta contradição foi melhor exposta pela percepção do que Marx denominou “mais-valia”, uma expropriação, contudo velada, de uma classe pela outra, ao semelhante ao que um grande anarquista da época, Proudhon, chamou, sem disfarces, de “roubo”. Não obstante Proudhon assim considerasse a propriedade privada da classe patronal, efetivamente essa usurpação não é fácil de se observar. Daí a importância de Marx nesse sentido, pois explicitou por que meandros e disfarces esse procedimento se dá. Para brevemente entendê-lo, vamos fazer do seguinte modo. Imaginemos idealmente (ao modo das teorias) um mundo onde todos trabalhem igual e autonomamente. Sendo assim, cada qual detém o resultado de seu trabalho e não há quem não o detenha, se todos igualmente trabalham. Nesse limite, praticamente todos se dedicam ao mesmo trabalho, que lhe garanta o básico: o que comer, o que beber, o que vestir, onde se abrigar. Alguma troca é possível, o que permite uma pequena variação do cardápio, mas muito limitada pelo que é possível ao esforço diário de cada um produzir para si mesmo. Aqui fica muito claro que é o trabalho humano que beneficia a natureza, que agrega valor à natureza, que produz “riqueza” – riqueza que até então podemos ver idealmente equivalente na posse de cada um. Além do limite de tempo de trabalho diário e do esforço de cada um, toda acumulação é bem limitada, pois, como considerou um filósofo do século XVII, além de um determinado limite, o acumulado tende a se perder, apodrecer, tornando-se vão. Contudo, em algum momento, por razões que não nos é necessário aqui especular (pois facilmente observável entre nós), alguns têm muito além do que podem trabalhar pelas suas próprias forças, enquanto outros estão destituídos ao que possam aplicar a sua força de trabalho ou pelo que podem aplicar a sua força de trabalho, de tal sorte que os últimos se veem em condição de necessitar aplicar a sua força de trabalho ao que é de outrem e esse outrem, porque sabe que não pode pelas suas próprias forças beneficiar parte de suas posses, atende a necessidade da outra parte, concedendo-lhe os meios de produção, mas não tão simplesmente, senão mediante um contrato. Tal contrato seria justo se, ao cabo do trabalho, o que não detém os seus próprios meios de produção devolvesse ao outro o que tomou emprestado, ficando com o restante, fruto do seu próprio trabalho. Contudo, não é isso que geralmente acontece. No ato do contrato, o detentor dos meios impõe uma parcela para si do trabalho alheio que ultrapassa a reposição dos “gastos” dos meios usados. Por exemplo: tomado o fruto do trabalho em dez partes e considerando que uma parte repõe os meios emprestados, o detentor dos meios de produção, no ato do contrato, impõe para si cinco partes (para recuperar a ideia dos “meeiros”, ainda existentes em muitos rincões do Brasil). Ora, o que o “não detentor dos meios de produção” originalmente tinha para viver e trabalhar é, pois, reduzido à metade, o que há de perpetuar a sua pobreza, enquanto o “detentor dos meios de produção” acumula, dos frutos do trabalho que não é seu, quatro partes, a cada “virada de mês”(o verdadeiro “lucro”), fazendo com que eles não apenas se mantenham ricos, mas que se tornem cada vez mais ricos pela “expropriação” do trabalho de outrem. Esta “expropriação” é encoberta (em nosso exemplo) pelos termos do contrato. O contrato é respeitado, parecendo, dessa forma, ao próprio expropriado, inclusive, que tudo é justo, embora sinta que a sua vida não vai bem, por mais que trabalhe no limite de suas forças. Se equipararmos o contrato à lei, podemos averiguar o quanto que nem sempre o legal é justo, mas que, pelo contrário, pode esconder uma injustiça reiterada.


11. É claro que essa versão que Marx e Engels dão ao mundo do trabalho não agradou aos detentores do capital.
 
IV. O colapso do sistema capitalista.
 
12. Veremos que os estudos econômicos de Marx e Engels vão desaguar no sentido da corrente da crítica sócio-política que também desenvolvem. Ao adicionar a livre concorrência, um dos pilares do modo de produção capitalista, como ingrediente na massa da acumulação crescente, como vimos, perceberão que mesmo entre os próprios detentores dos meios de produção há uma tendência à concentração de riquezas nas mãos de uns poucos pelo sacrifício da maioria – tema do monopólio dos meios de produção que será desenvolvido por pensadores marxistas posteriores. A ilustração disso pode ser a do pequeno farmacêutico de bairro que tenta concorrer com a loja de uma grande rede de farmácia que se instalou do seu lado. Sem condições de concorrer, vê-se que a tendência é que se engrosse as fileiras dos que deixaram de ser detentores dos seus próprios meios de produção e, em pouco tempo, não tenham outra coisa a trocar, senão a sua própria força de trabalho, mão de obra, nos mesmos termos do contrato antes descrito ou nem isso, juntando-se ao contingente de desempregados (“mão de obra reserva”, expressão que atenua o desespero de muitos e disfarça o quanto a ordem vigente marginaliza). Tal concentração, permite que os termos do contrato sejam ainda mais desfavoráveis aos não-detentores dos meios de produção, que também disputam entre si a vaga de emprego, predispondo-o a ter que aceitar qualquer coisa. Para Marx e Engels, é inevitável que ao esticar esta corda, a maioria venha a tomar o que lhe esteja ao alcance da mão para por fim a um sistema que somente favorece a uns poucos pela penúria de muitos. Esta é a famigerada “luta armada” aventada inevitável acontecer por Marx e Engels.


13. Foi assim que a sociedade secreta socialista da qual Marx e Engels participavam, a “Liga dos Justos”, se transformou no Partido Comunista. A própria sociedade burguesa tolerou tais grupos enquanto realmente os tinha como sonhadores e utópicos. Porém, o “Manifesto” fundador do Partido, escrito por Marx e Engels, tinha um novo ingrediente: o ingrediente materialista e pretensamente cientificista. O fim do mundo burguês não mais se apresentava como possibilidade em poucas mentes que se reuniam para se reanimarem mutualmente, sem maior efeito para além das raias desses pequenos grupos, mas como advento inevitável do curso da história. Neste sentido, o pensamento hegeliano ainda era muito presente na cultura europeia para se entender o que isso queria dizer. O “Manifesto do Partido Comunista” não se apresentava simplesmente como uma carta programa político como tantas outras, porém anunciava um “determinismo” histórico contra a qual a vontade burguesa nada poderia. E Marx e Engels apresentam isso com genialidade, quando, por exemplo, anunciam os próprios burgueses como geradores dos coveiros do mundo burguês, fazendo entender que, com o avançar do modo de produção capitalista (que é tudo o que um burguês deseja e promove), as suas contradições internas também se acirram, colocando o sistema mais próximo do seu colapso e desaparecimento. Na carta programa, Marx e Engels expõem como se deram o fim dos modos de produção anteriores: precisamente quando eles estavam no seu ápice (e ápice também das suas tensões). Daí primeiras palavras do “Manifesto”, já assustadoras ao conforto de qualquer burguês: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo” (4). E, mais adiante: “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. (...). “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis” (5).
 
14. A participação de Engels em toda essa crítica deixa-nos claro que tal crítica tinha como destinatário o sistema burguês e não cada burguês, como ele. A ideia de conversão de pessoas costumava estar muito presente em algumas estratégias socialistas utópicas, mas não foi o caso da crítica comunista de Marx e Engels, que entendiam claramente que “uma andorinha não faz verão”. Sendo mais direto, se Engels abrisse mão de sua fortuna, não passaria de mais um na condição de proletário. Isto reforça que a mudança pela qual eles anseiam é estrutural, revolucionária e universal.
 
V. Palavras finais.
 
15. Como se pode ver, são os estudos econômicos, sociais e históricos de Marx e Engels que fizeram com que as suas críticas políticas não fossem relegadas ao esquecimento, mas fossem levadas a sério pelo próprio “establishment”. Muitos desses estudos somente alcançaram densidade posteriormente ao “Manifesto”, sobretudo os econômicos e presentes em sua principal obra, “O capital”.
 
16. Obra de uma vida, o que Marx e Engels escreveram não pôde, todavia, deixar de apresentar necessidade de revisão. Dentro do que nos foi permitido apresentar aqui, podemos destacar, por exemplo, a inconformidade entre a adoção de um aparente determinismo cientificista (controverso) e o apelo as manifestações e movimentos contestatórios de classe. A breve análise histórica que obtém o efeito de inevitabilidade do fim do mundo burguês, termina estranho ao apelo final que encontramos no “Manifesto”: “Trabalhadores de todos os países, uni-vos!” (6). Apesar de fazer sentido dentro de um manifesto de fundação de partido político para pôr fim à ordem social vigente, causa estranheza, depois que se ambientou com o caráter de inevitabilidade material do fim do mundo burguês. Que as associações e manifestos pudessem ser epifenômenos de uma marcha dialética da história, parece plausível, mas exatamente por revelar isso mesmo nesse “Manifesto”, pelo menos neste parece estar como que deslocado.
 
17. Não encontraremos carta programa de partido político como a do “Manifesto do Partido Comunista”, que se preocupou em estar embasado numa compreensão histórica. Entretanto, desta mesma compreensão histórica só nos é rigorosamente aceitável inferir que o atual modo de produção capitalista não é eterno, mas que, como os demais – que também quando presentes se iludiram com a sua eternidade –, está condenado ao desaparecimento – sem que se saiba quando –, dando lugar a uma nova ordem. Essa nova ordem, contudo, não advém por forças das premissas apresentadas. Ela é, portanto, especulativa e pode se apresentar como programática, como bem cabe e se espera de um texto propositivo de inauguração de partido político. Noutros termos, que o modo de produção capitalista está fadado ao desaparecimento pode ser inferido dos estudos históricos apresentados – e somente isso já é suficiente para deixar os capitalistas aterrorizados –; mas que o novo modo de produção é o comunismo é produto da vontade (de alguns) e propositivo. Por exemplo: no bojo do feudalismo, comumente se pensou que este não teria fim; talvez alguns poucos tenham pensado na possibilidade de seu término; mas impossível considerar que alguém tenha imaginado uma nova ordem como o capitalismo, que veio a ser. Consequentemente, embora já estejamos nos demorando no tema do comunismo, fomos a isto levados exatamente porque, ao falar de Marx, a maioria já o associam a esse tema. Mas não em vão, se nos fica claro que não é este o tema de interesse maior dos estudos de Marx e Engels, mas sim de sua militância. Dos estudos deles, o capitalismo vigente é o tema central e do qual é possível exame à luz de critérios considerados científicos em seu tempo.


18. É bem possível, como muitos estudiosos hoje já observam, que o determinismo histórico não caiba ao pensamento de Marx, tendo sido uma chave de leitura elaborada por pensadores marxista a partir da Revolução Russa e da necessidade de se criar a impressão de que seria uma questão de tempo para os demais países paulatinamente transitarem do capitalismo para o comunismo. Se esses estudiosos estiverem certos, o movimento dialético materialista de Marx apenas admitiria uma interdeterminação entre as “teses” em jogo, embora tais “teses” pudessem historicamente ser outras, outros arranjos e, assim, outras interdependências. Quiçá essa observação seja inclusive pertinente numa interpretação mais justa da própria dialética hegeliana, pois, ao dizer que “o pássaro de Minerva só alça voo ao entardecer” e que, portanto, a filosofia sempre chega tarde demais, Hegel prescreve que a sabedoria só é possível de se obter humanamente quando as coisas já se desenvolveram dialeticamente, mas não se presta a vaticinar, a prever o que ainda está para acontecer, pois os arranjos não são tão determinísticos como pareceu a alguns de seus intérpretes e aqui ainda sustentávamos ao pensamento de Marx.
 
19. Finalmente, as observações iniciais deste texto, de estarmos lidando com estudiosos que ao mesmo tempo são pessoas engajadas politicamente, podem aqui nos ajudar a compreender algumas das aparentes incoerências também aqui aventadas, seja pela distinção artificialmente entre o estudioso e o militante, seja pela adesão de que, na realidade, não há mesmo como os distinguir.
 
Citações:
 
(1) MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 23.
(2) MARX, K.; ENGELS, F. Teses sobre Feuerbach. In: A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 99.
(3) _______. O 18 de brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 25.
(4) _______. Manifesto comunista. Disponível em: <O Manifesto Comunista - Friedrich Engels e Karl Marx (ebooksbrasil.org)>. Acessado em 9 de janeiro de 2021. p. 5.
(5) Idem. p. 7; 27.
(6) Idem. p. 65.

10 de dez. de 2020

TEXTO XL: Bases do Materialismo Moderno e Contemporâneo.

Rodrigo Rodrigues Alvim 

01. Estamos numa condição temporal, a qual, em geral, denominamos “mundo”, “vida”, “existência”, “realidade”, etc. Nela, as coisas vêm a ser e deixam de ser, num movimento (devir) que nos permite intuir o tempo – são as coisas que nos são dadas à nossa sensação, as coisas “visíveis”, “materiais”.

02. Apesar disso, perpassando a história, vemos surgir nesses entremeios um pretenso atemporal ou eterno, também, por isso mesmo, denominado “extramundano”, “extraordinário”, “sobrenatural”, como se o mundo “visível” e “material” não pudesse ser compreendido (quiçá existir) por si mesmo, mas somente se pressupondo esse “invisível” e “imaterial”.


03. Essa distinção se reproduz de diversas maneiras e por diversos outros nomes. Na própria constituição humana, pareceu que o corpo corresponderia ao visível, material e corruptível, enquanto a nossa capacidade de pensamento, a alma, pareceu correspondente ao invisível, “espiritual” e eterno, pensamento capaz de apreender, inclusive, para além do imediatamente fugaz aos olhos corpóreos, o permanente e incólume.

04. O caráter naturalmente precário e contingente do sensível foi, enfim, desabonado como fonte e suporte do que se apresentava como impossibilidade de ser de outro modo (o necessário e essencial, que não pode deixar de ser, imutável e absoluto).

05. Desde a antiguidade da nossa cultura, exemplos, nesse sentido, foram multiplicados. Paradoxalmente, até no movimento encontrou-se o imobilismo, como no movimento dos planetas, o “sempre e mesmo” movimento, o cíclico. Notou-se na multiplicidade do movimento de uma espécie de animal, um hábito que nos sugeriu a existência de um mesmo “instinto”. Aliás, o termo espécie já é uma expressão de uma “conformidade” entre inumeráveis indivíduos. As matemáticas também nos concatenam, desde os seus primórdios, tantas outras expressões universais, “abstratas” aos dados sensivelmente imediatos.

06. Assim, mesmo quando os primeiros filósofos da cultura grega tentaram uma compreensão do mundo prontamente manifesta a partir do próprio mundo, alheia às entidades fundantes míticas e religiosas, apresentando a “água”, o “ar”, o “fogo”, a “terra” como a origem de tudo, essa abordagem significou o salto inaugural da maneira racional de compreender o nosso mundo por si só, mas não foi suficiente para romper radicalmente com a ideia de transcendentes ao mundo, bem ilustrado no pensamento de quem é considerado o primeiro filósofo ocidental, Tales de Mileto, a quem se atribui, por um lado, a afirmação de que a “água” é a origem de tudo e, por outro lado, de que tudo está prenhe de “deuses”.


07. O “humano, mundano e profano” também foram apresentados como antitéticos ao “divino e sagrado”, reforçando essa distinção entre o transitório e o imutável, entre o material e imaterial. No período medieval ou feudal da cultura europeia, quando predominou a cosmovisão religiosa de mundo, a igreja cristã se tornou a guardiã maior desse dualismo e Deus, por sua vez, a entidade absoluta por excelência, traduzindo-se na filosofia especulativa e racionalista no supraconceito do pensamento metafísico, abstrato, dogmático e imaterial.

08. Por esse mesmo prisma, também se pode compreender em alguma medida a modernidade, pois uma de suas características marcantes é o que se nomeou “processo de secularização”. “Secular” é, por sua etimologia, aquilo que está no tempo. Trata-se, portanto, do que é imanente e não transcendente ao mundo imediatamente dado aos nossos sentidos e material.

09. No âmbito das reflexões políticas modernas, esse “processo de secularização logo se fez sentir. O antigo regime estava assentado na governança monárquica absolutista, que, por seu tuno, estava assentado na ideia do direito divino dos reis, pela narrativa de que Deus mesmo havia escolhido o primogênito humano para governar e que o rei de então era o mais próximo dessa origem. Sem detalhar, podemos ver surgindo, nesse contexto, filósofos que defenderão que o poder não advém de Deus, mas de um acordo que os homens (que assim se tornam uma comunidade) fazem entre si, seja para preservar pretensos direitos naturais (sua vida, sua liberdade, suas posses) ao modo de um John Locke, seja para assegurar simplesmente a duração da vida, ao modo de um Thomas Hobbes. Mesmo antes, por Nicolau Maquiavel, tentou-se pensar o comportamento político, em especial do governante, não mais à luz de valores etéreos, universais e transcendentes (como estabelecia a ética religiosa cristã), mas como resultado do próprio interesse humano de manter a ordem vigente, podendo inclusive recorrer a meios condenáveis ética e religiosamente, todavia efetivos para a própria manutenção do poder e do “status quo”. Portanto, o que move a política são estritamente os interesses humanos – e comumente os mais baixos – e não a observância de preceitos sagrados. Vê-se, por esses exemplos, que o pensamento moderno tendeu a esclarecer os próprios atos humanos, as suas interações e disposições por motes mundanos mesmo e não mais por motes ideais e veneráveis.


10. De igual modo, podemos encontrar os delineamentos desse "processo de secularização" na elaboração da cosmologia e física modernas. Já Galileu-Galilei defendia que os textos bíblicos não tinham interesse em tratar das coisas naturais e que, portanto, não seria coerente recorrer a eles para contrapor argumentos à sua investigação da natureza, que se pretendia comprovada por suas observações da natureza, especialmente da lua e de Júpiter - ressalvando-se que hoje se sabe que algumas de suas importantes “experiências” não eram propriamente sensíveis, porém mentais (como a ideia do movimento no vácuo e inercial). Como Galileu, também Kepler e Newton não contrapuseram os resultados de suas pesquisas naturais à teologia cristã, mas trataram de considerar que o interesse e modo de tratamento dessas duas áreas eram completamente diferentes, auxiliados por filósofos importantes, que, no contexto dos primeiros séculos da modernidade, abordaram questões de método investigativo adequado à ciência, como René Descartes e Francis Bacon, que, embora apresentando instâncias de decisão últimas do real e verdadeiro diferentes (respectivamente, a capacidade racional e a capacidade de experiência sensível), ambas instâncias eram estritamente humanas e comuns a todos os seres humanos, não dependendo de uma ocasional revelação divina, como se pensava presente na própria escrituração da Bíblia ou em outras ocorrências que consideravam sobrenaturais - os milagres. Para muitos desses pensadores da modernidade, a ordem do mundo é expressão da inteligência de um arquiteto divino e que podia o ser humano, dotado de inteligência, revelar, independentemente da ação direta de Deus. A ideia de um Deus como um relojoeiro e o mundo como o seu relógio bem ilustrava o quanto o funcionamento da criatura já não mais dependia da presença do seu criador. A inteligência do criador estava no seu relógio, mas já não era o seu próprio criador, de tal modo que, nesta distinção, Deus era transcendente (e imaterial, pois não espácio-temporal) e, como tal, completamente transcendente às capacidades humanas, e o mundo era o imanente (e material, pois submetido ao tempo e ao espaço), no qual estamos inseridos, sendo-nos acessível e passível de ser por nós perscrutado diretamente, alcançando as constantes de seus movimentos. Pouco a pouco e cada vez mais, a teoria do conhecimento moderna acreditava-se desvinculada dos pressupostos metafísicos, ainda predominantemente compreendida como o que não nos é dado imediatamente aos nossos sentidos corpóreos.


11. Essa tendência no campo epistemológico moderno alcançou o seu ápice com a ciência pensada ao modo kantiano, que tenta manter a ciência para dentro dos limites da razão humana e que se constrói a partir da experiência. Para além dos limites dessas nossas capacidades, somos incapazes de conhecimento rigoroso, ficando entregues às especulações, antinomias ou aporias lógicas, divagações e ilusões. Em contrapartida, temos aqui um “subjetivismo transcendental”, que incidirá numa efervescência filosófica chamada “idealismo alemão”, que na pena de Hegel tudo reduzirá a um “Espírito Absoluto”, a uma unidade inegavelmente metafísica, ainda que se apresente como desdobramento histórico panteico.


12. É nesse período de predominância do pensamento hegeliano que surgem as reflexões de Ludwig Feuerbach, que inclusive participa de um grupo de pensadores “revolucionários”, a “esquerda hegeliana. O importante na obra de Feuerbach é que ela se irrompe no seio da esfera que se tem inequivocamente como “metafísica”, a religião, alvejando a concepção maior da filosofia da religião, o conceito de Deus, reduzindo toda teologia a uma antropologia, ou seja, reduzindo todo o seu caráter ainda metafísico às contingências das necessidades mais mundanas do ser humano, que é a de expressão de si próprio, mas dialeticamente. Tudo o que é limite ou falta em si mesmo (subjetivo), o homem o projeta para fora de si (objetivo): se o homem conhece algumas coisas, mas não tudo, a onisciência está para além do humano; se o homem tem algum poder, mas não todo poder, a onipotência está para além dele; se o homem se faz presente aqui e agora, a onipresença é algo para além dele... Ou seja, projetamos para fora de nós mesmos o que, sendo falta em nós, se nos apresenta como objeto maior do nosso amor, acreditando que o poder infinito, o conhecimento infinito, etc., são o próprio infinito, ao qual também chamamos de Deus ou Absoluto. Em Deus se encontra maximamente o que almejamos e, assim, amamos a Deus sobre todas as coisas. E como Deus (embora assim criado por nós) nos parece ulteriormente maior do que nós mesmos, tomamo-lo não na condição de objeto (como realmente é), mas como sujeito, ao mesmo tempo que nós que o criamos disso esquecemos e nos percebemos a nós mesmos como por ele criados, na condição, pois, de objetos. Finalmente, consideramos que fomos criados por ele à sua imagem e semelhança, não obstante, em verdade, fomos nós quem o criamos à nossa imagem e semelhança. Conclui-se disso, que nem mesmo o sumo-conceito metafísico tem a existência em si e por si mesmo, mas é produto humano, não ultrapassando as cercanias mundanas. Tudo sucumbe à condição concreta do mundo humano. Estabelece-se, assim, as bases do materialismo contemporâneo, seguro que o Deus da religião está morto, por não ser precisamente como o homem religioso o pensa, mas não é irreal, quando é compreendido como a expressão máxima e infinita de tudo o que o ser humano mais ama.

26 de nov. de 2020

VÍDEO III: A Dialética Hegeliana.

 Rodrigo Rodrigues Alvim


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3 de nov. de 2020

VÍDEO II: Protágoras de Abdera e Górgias de Leontinos.

 

Rodrigo Rodrigues Alvim

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29 de out. de 2020

TEXTO XXXIX: Algumas Palavras sobre a Ética Kantiana.

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tratamos em outro texto (1) do pensamento de Immanuel Kant em relação à ciência. Segundo as razões apresentadas pela filosofia kantiana, a ciência seria o único modo de compreensão e expressão de mundo que poderia ser adequadamente denominado “conhecimento”. Isto seria o mesmo que dizer que tratamos de uma de duas de suas obras de maior referência ainda hoje, intitulada Crítica da Razão Pura, na qual Kant define a capacidade racional humana, cujos limites estabelecem o que humanamente podemos conhecer (cientificamente) e o que, estando para além das fronteiras dessa nossa capacidade racional, não podemos conhecer. Toda essa reflexão kantiana acontece, obviamente, em seu diálogo indireto com as principais considerações epistemológicas de seu contexto, da cultura europeia moderna, expressas sumamente por quatro vertentes, o intelectualismo, o empirismo, o fideísmo e o ceticismo, das quais também já tratamos em outro texto (2). Disso resultou a posição epistemológica paradigmática à transição da modernidade para a contemporaneidade filosófica europeia, a qual comumente denominamos “criticismo”, que assim pautará as dedicações das filosofias mais marcantes do início deste período histórico ao qual ainda dizemo-nos pertencer.


02. A Crítica da Razão Pura defendeu ao seu modo a tese do filósofo David Hume quanto à impossibilidade de um conhecimento da natureza pretensamente metafísico, insistindo Kant, pois, que todo conhecimento começa com a experiência do mundo, precondição da “nova” ciência, da ciência moderna a que as obras “físicas” de Galileu-Galilei e Isaac Newton estavam filiadas. Pela dialética das formas da sensibilidade e das categorias do entendimento humanas aplicada à matéria da experiência, temos para nós um mundo onde tudo acontece em arranjo necessário, expressas em leis científicas. No contexto desse “reino da necessidade”, onde as coisas só podem assim ser, a ciência é imperatriz e resultado de uma razão que reconhece os seus próprios limites, daí concluindo que muito se pode conhecer, mas não o que possa se encontrar para além desses seus limites, como a metafísica historicamente se aventurou em temas como a existência de Deus, a liberdade da alma humana, o mundo em sua inteireza.

03. Nem tudo, todavia, termina aí para Kant, o que nos revela aquela segunda obra que, com a Crítica da Razão Pura, garantiu fama ao seu autor, obra que recebeu o título de Crítica da Razão Prática.


04. A história da filosofia foi vivamente movida por atenção a dois horizontes: pelo horizonte concernente ao conhecimento humano (e verdadeiro) acerca do mundo e pelo horizonte concernente ao agir humano (e virtuoso) no mundo. Para Kant, é a ciência que adequadamente realiza o primeiro, sendo a ética a realização do segundo. Se a ciência cuida do conhecimento do “reino da necessidade”, conforme ao que no mundo é ou pode ser, a ética nos reporta à ação humana no “reino da liberdade”, conforme ao que deve ser. Se no primeiro reino o homem se submete à experiência do mundo – o que faz da ciência obrigatoriamente “antimetafísica”, no segundo reino o homem decide sem levar em conta o que o mundo possa lhe oferecer, o que, neste sentido, faz da ética uma manifestação “metafísica”. 

05. Compreendamos isso melhor, mas já tomando por certa a nossa compreensão da concepção dessa ciência “antimetafísica” em Kant, pelo que, já dito, tratamos em outro lugar, de maneira que agora ficamos tão-só disponíveis à abordagem ética.

06. Como a responsabilidade da ação humana só pode ser atribuída ao sujeito da ação enquanto sujeito livre, Kant não permite uma associação da ética à “heteronomia” ou, em outras palavras, da decisão do agir por uma adesão a uma norma ou regra originalmente estranha ao sujeito da ação e, neste sentido, “mundana”. A determinação da ação do sujeito deve se dar a partir da consciência que ele é e a partir da qual ele, portanto, responde ao que o contexto lhe coloca. Então, Kant propõe uma decisão que acontece no mundo em que o humano se insere, mas que não se impõe pelo mundo ao humano. A responsabilidade e virtuose éticas evocam “autonomia” do sujeito. Veremos, contudo, que esta decisão subjetiva não é relativa ou arbitrária, porém, muito pelo contrário, é ela, por princípio, universal, pois radica na consciência de todo e qualquer ser humano, uma vez que, para Kant, como igualmente presente em sua epistemologia, o que nos faz especificamente humanos é compartilharmos de uma mesma estrutura psíquica ou mental, uma consciência ou razão que Kant chama de “transcendental”, de tal modo que todas as particularidades são, para ele, aquisições posteriores que, aqui, não devem ser levadas em conta. Essas aquisições “a posteriori” são de interesse de uma antropologia empírica (que hoje denominaríamos predominantemente de cultural). À antropologia “transcendental” kantiana, somente aquela estrutura formal e inata em todo e qualquer ser humano importa na garantia de uma instância que seja, por consequência, universal ao humano e universalizante do humano.

07. Observa-se, então, que Kant, em sua obra ética Crítica da Razão Prática retorna à sua concepção do sujeito transcendental, cuja estrutura não se define pelos contextos acidentais vividos por cada ser humano, mas por aquilo que ele é aprioristicamente, como que antes de toda e qualquer experiência sua no mundo ou contextualização particular. Para Kant, o sujeito transcendental é constituído do que ele denominou “imperativos categóricos”, de mandatos de ação presentes em toda consciência humana e que se fazem ouvir no sujeito que, estando no mundo, tem que tomar decisões em conformidade com essa sua própria consciência transcendental, incondicional, garantindo-lhe, assim, a sua liberdade, responsabilidade e decisão eticamente adequada. Escreve Kant:

“Proposições fundamentais práticas são proposições que contêm uma determinação universal da vontade, « determinação » que tem sob si diversas regras práticas. Essas proposições são subjetivas ou máximas, se a condição for considerada pelo sujeito como válida somente para a vontade dele; mas elas são objetivas ou leis práticas, se a condição for conhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ente racional.” (3).

08. Esses “imperativos categóricos” que devem nos nortear a todos e não somente a alguns e em determinadas situações são diferentes dos “imperativos hipotéticos”, pois enquanto estes últimos visam a determinados fins no mundo, sendo a sua fórmula “se (queres) X, então (faças) Y”, aqueles primeiros não estabelecem propriamente finalidades ou, na insistência de se manter tais termos, só se poderia dizer que eles têm fins em si mesmos, na própria consciência transcendental dos quais são constitutivos, na humanidade, jamais admitindo o próprio humano como meio, sendo a sua fórmula simplesmente “(deves) W”, quando, pois, à possível pergunta “mas, por que devo?”, não se tem resposta em outra coisa, senão nele mesmo: devo porque devo.

09. Quem, pois, assim não decide, porém decide pelo que o mundo, o seu contexto, possa naquele momento lhe impor como determinação de sua ação, torna-se escravo do mundo, não é livre, é “heterônomo” e se põe tutelado ao mundo, à experiência do mundo, como se assim não houvesse ainda saído de uma menoridade moral. Eis, para Kant, a lei fundamental da razão prática pura:

“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal.” (4).


10. Como palavras finais, deixo as palavras finais do próprio Kant em sua obra Crítica da Razão Prática, num paralelo breve do que tratou nesta obra (a ética) e o que tratou na Crítica da Razão Pura (a ciência):

“Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas; o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. Não me cabe procurar e simplesmente presumir ambas como envoltas em obscuridade, ou no transcendente além de meu horizonte; vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a consciência de minha existência. A primeira começa no lugar que ocupo no mundo sensorial externo e estende a conexão, em que me encontro, ao imensamente grande com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, além disso, ainda a tempos ilimitados de seu movimento periódico, seu início e duração. A segunda começa em meu si-mesmo [Selbst] invisível, em minha personalidade, e expõe-se em um mundo que tem verdadeira infinitude, mas que é acessível somente ao entendimento e com o qual (mas deste modo também ao mesmo tempo com todos aqueles mundos visíveis) reconheço-me, não como lá, em ligação meramente contingente, mas em conexão universal e necessária. O primeiro espetáculo de uma inumerável quantidade de mundos como que aniquila minha importância enquanto criatura animal, que tem de devolver novamente ao planeta (um simples ponto no universo) a matéria da qual ela se formara, depois que fora por um curto espaço de tempo (não se sabe como) dotada de força vital. O segundo espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente meu valor enquanto inteligência, mediante minha personalidade, na qual a lei moral revela-me uma vida independente da animalidade e mesmo de todo o mundo sensorial, pelo menos o quanto se deixa depreender da determinação conforme a fins de minha existência por essa lei, que não está circunscrita a condições e limites dessa vida mas penetra o infinito.”

“No entanto, admiração e respeito podem, em verdade, estimular a investigação, mas não substituir a sua falta. Que é que se precisa, pois, fazer para pôr em marcha esta investigação de modo útil e adequado à sublimidade do objeto? Exemplos podem servir aqui de advertência, mas também para a imitação. A contemplação do mundo começou do mais grandioso espetáculo que só os sentidos humanos podem sempre oferecer e que só o nosso entendimento, em sua vasta abrangência, pode sempre suportar perseguir, e terminou – na astrologia. A moral começou na mais nobre propriedade da natureza humana, cujo desenvolvimento e cultura voltam-se a uma utilidade infinita, e terminou – no fanatismo [Schwärmerei] ou na superstição. Assim se passa com todas as tentativas ainda rudes, nas quais a parte mais nobre do ofício depende do uso da razão, que não se verifica por si mesmo, como o uso dos pés, pelo exercício frequente, principalmente se ele concerne a propriedades que não podem apresentar-se tão imediatamente na experiência comum. Mas depois que, embora tardiamente, entrou em voga a máxima de examinar antes bem todos os passos que a razão se propõe dar, e de não a deixar seguir o seu curso de outro modo que na linha de um método bem refletido o ajuizamento do sistema do universo tomou uma direção totalmente diversa e, com essa, ao mesmo tempo uma saída incomparavelmente mais feliz. A queda de uma pedra, o movimento de uma funda, resolvidos em seus elementos e nas forças que neles se mostram e elaborados matematicamente, produziram enfim na estrutura do mundo aquela perspiciência clara e imutável para todo o futuro, que pela observação continuada só pode esperar ampliar-se sempre, mas jamais deve temer que tenha de voltar atrás. 

“Aquele exemplo pode aconselhar-nos a encetar agora este caminho no tratamento das disposições morais de nossa natureza e dar-nos esperança de um bom êxito semelhante. Pois temos à mão os exemplos da razão que julga moralmente. Ora, analisando-os em seus conceitos elementares, propondo-se – mediante repetidos ensaios sobre o entendimento comum – na falta da Matemática, um procedimento, contudo, semelhante à Química, de separar o empírico do racional suscetível de encontrar-se neles, podem ambos os elementos ser com certeza reconhecidos por nós em sua pureza e o que cada um possa por si só realizar. Deste modo pode em parte evitar-se a desorientação de um ajuizamento ainda rude e pouco exercitado e, em parte (o que é de longe mais necessário), as extravagâncias do gênio, pelas quais, como sói acontecer com os adeptos da pedra da sabedoria, sem nenhuma investigação metódica e nenhum conhecimento da natureza são prometidos tesouros sonhados e são dissipados tesouros verdadeiros. Em uma palavra, a ciência (buscada criticamente e introduzida metodicamente) é a porta estreita que conduz à doutrina da sabedoria, se por esta não se entender simplesmente o que se deve fazer, mas o que deve servir de norma a mestres para aplanar bem e demarcadamente o caminho da sabedoria, que cada qual deve seguir, e proteger a outros de caminhos falsos; uma ciência cuja guardiã tem que permanecer sempre a Filosofia, em cuja investigação sutil o público não tem de tomar nenhuma parte, mas certamente nas doutrinas, que após uma tal elaboração podem tornar-se pela primeira vez verdadeiramente claras a ele.” (5).
___________________________ 

(1) “Immanuel Kant e a ciência”. 
(2) “Traços da filosofia moderno” 
(3) KANT, Immanuel. Crítica a razão prática. Tradução, introdução e notas de Valerio Rohden. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. p. 31-32. 
(4) Idem. p. 51. 
(5) Idem. p. 255-258.