Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





26 de abr. de 2011

TEXTO XII: Deus Existe?

Rodrigo Rodrigues Alvim

No primeiro semestre de 2010, fui convidado para ministrar, sob a forma de mesa redonda, a aula inaugural dos Cursos de Filosofia e Teologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, CES-JF, com o filósofo e teólogo Elílio de Faria Mattos Júnior. O tema proposto foi "Deus existe?". Mais do que um tema, tratava-se de um livro publicado com esse título, em torno do qual, pois, deveríamos apresentar algumas palavras. O texto que se segue transcreve as palavras iniciais que proferi naquela oportunidade.


A leitura do livro Deus existe? deixa-nos a sensação de que não é propriamente seu título a questão provocadora do debate, ocorrido no ano de 2000, entre o então Cardeal alemão Joseph Ratzinger (hoje o Papa Bento XVI) e o filósofo italiano ateu Paolo Flores d’Arcais, bem como de seus textos adjuntos.

O que incomoda d’Arcais é a interpretação de Ratzinger, mas também do então Papa João Paulo II e de outros cristãos católicos, que considera o cristianismo como que a coroação da racionalidade motriz do pensamento ocidental, não somente no contexto dos primeiros séculos do seu surgimento, mas ainda e sobretudo hoje.

É certo que esta discussão prévia se faz importante, uma vez que definiria os limites dentro dos quais a questão da existência de Deus poderia se desdobrar. No entanto, essa mesma delimitação já se torna o centro mesmo de toda discussão que fora possível e que, não concluída, deixou definitivamente à margem o tema da existência (ou não) de Deus.

Não soube, assim, se deveria me comprometer com o debate ocorrido, mas que para mim fugiu ao tema, ou se com o tema propriamente dito desta mesa redonda.

Minhas breves palavras de abertura serão, portanto, lançadas como se seguirão e, a partir do diálogo entre nós, vislumbrarei as expectativas dos aqui presentes e tentarei melhor atendê-las.

Podemos nos assegurar hoje uma prova empírica ou racional da existência de Deus, ou seja, uma demonstração publicamente disponível de que Deus existe? Considero que não a temos, desde que igualmente consideremos a analogia como analogia, isto é, como a semelhança entre entidades que, por isso mesmo e também, são entidades distintas; considero que não a temos, desde quando Kant elucidou as antinomias da nossa razão pura, isto é, as conclusões radicalmente opostas a que podemos chegar por força estritamente lógica, mas que, contudo, apresentam a mesma força, apesar de serem excludentes; considero que não a temos, por fim, desde que não tomemos a existência como um predicado (contrariamente ao que encontramos no que denominamos o argumento ontológico de Anselmo acerca da existência de Deus). Noutros termos, considero que não possuímos tal demonstração ao modo como pensamos que se pensa racionalmente hoje, ou seja, ao modo científico moderno e contemporâneo, “racionalidade” esta indubitavelmente hegemônica, bastando-nos perceber a impressão decisiva que comumente uma conclusão científica, simplesmente porque dita “científica”, tem sobre o senso comum, até sobre este mesmo que, por sua própria natureza, é pouco afeito ao procedimento sistemático da investigação científica.

Nesse sentido, sei que me aproximo das advertências do filósofo Paolo Flores d’Arcais.

Porém esta “racionalidade” está histórica e culturalmente situada. Ela ainda pretende-se a si própria, se não detentora, destinatária de uma verdade objetiva, de uma verdade excludente, pouca afeita, por isso mesmo, a outras formas humanas de compreensão e expressão da realidade, como a metafísica, a arte, a religião e os mitos, com os quais ainda hoje a ciência convive, embora malgrado seu. O inegável processo de secularização pelo qual passamos nesses cinco últimos séculos – e do qual ninguém em sã consciência, seja crente, seja não-crente, discorda – avaliza a hegemonia dessa “racionalidade”, fio sobre o qual pelejamos em nos equilibrar.

Tal noção de razão e de verdade da ciência moderna e contemporânea aludida por d’Arcais foi fundamentada pelos iluministas franceses e por outros filósofos, particularmente dos séculos XVII ao XVIII, que a adotaram como critério de decisão entre “o verdadeiro” e a “superstição”, tomando como um de seus passatempos mais importantes a sujeição das proposições de fé da Igreja Católica ao crivo dessa razão: toda certeza por fé cristã que não conseguisse se traduzir nessa nova racionalidade era desmascarada como engodo – uma reprodução de uma fórmula já dos primeiros filósofos patrísticos, apesar de pelas avessas e pessimista. Especialmente Agostinho, mas também seguido por outros, tomou a racionalidade filosófica predominante em seu tempo para traduzir as verdades da fé cristã (sobrenaturais e por isto mesmo divinamente reveladas) em termos da capacidade natural da qual todo homem é dotado, ou seja, nos termos da razão (o que permitiria, pois, que os dados da fé cristã fossem assim acessíveis, compreensíveis, inclusive aos então denominados pagãos), expressando, dessa maneira, o otimismo de que, sendo a verdade, porque a verdade, una, a razão bem exercida chegaria, pelos seus próprios caminhos, às verdades antecipadas pela revelação de Cristo.

D’Arcais trás à luz as observações céticas historicamente feitas a tal racionalidade que, grosso modo, eu chamaria de “analítica”, mas se opõe sobremaneira e de modo mesmo sarcástico à racionalidade mais “hermenêutica”, na qual ele entrevê, especialmente nos textos de Heidegger, uma “última margem da teologia”. Enumerando aspectos contraditórios na concepção cristã católica, precisamente porque se pretende ela o suprassumo da racionalidade, d’Arcais parece melhor conviver com cristãos que confessassem a sua visão de mundo por simples fé, pois sublinha que toda fé que se pretenda racional guarda intimamente consigo a intolerância a qualquer modo diverso ao seu, que se arvora verdadeiro ou como o verdadeiro sentido da vida.

Contudo, há palavras de d’Arcais que, a um filósofo como me fiz, causam muito desconforto, principalmente quando se querem pronunciadas por um também filósofo. Tomo, dentre outros exemplos possíveis, duas expressões finais de d’Arcais, presentes em mesmo parágrafo. Vou inverter suas ordens originais, a fim de que o mal-estar filosófico possa ficar mais patente. Diz ele: “A razão não só não pode demonstrar a existência de Deus e da imortalidade da alma, como também não pode demonstrar ‘que não existam’”. Mas também diz imperativamente: “(...) a filosofia há de estabelecer, sobriamente, que Deus não existe e que é falso que exista uma alma imortal”. Pela insuficiência disso, eu afirmo que não é a filosofia que dá razão a d’Arcais, mas que é o seu ateísmo confesso que assim o impeliu a destinar a filosofia.

24 de abr. de 2011

TEXTO XI: Breve Comentário acerca da Existência de Deus - Uma perspectiva filosófica

Rodrigo Rodrigues Alvim

I. Colocação do problema (1)

01. “Vã filosofia” tornou-se o veredicto final dos neopositivistas a qualquer tratamento racional acerca de Deus (2), ainda que tal filosofia se queira no âmbito de seu desenvolvimento histórico, posto que mesmo este, para eles, só adquire sentido com o advento da racionalidade científica moderna, que, por sua vez, é a superação da própria historicidade (3).

02. Apesar disso, a questão de Deus em nenhum momento fora esquecida, embora o processo de secularização do mundo atual seja incontestável, mesmo para aqueles homens que abertamente ainda professam alguma religião (4). E é aqui que deparamo-nos com a mesma observação que Immanuel Kant fez em relação à metafísica, que, ao termo da Crítica da Razão Pura, não encontrava qualquer justificativa para a sua existência; e, no entanto, a metafísica existia, tendo inclusive alcançado a sua maturidade num tempo em que a ciência sequer se poderia dizer insipiente (5); a questão de Deus é uma das temáticas basilares da filosofia, de onde ulteriormente nasceram todas as demais ciências; logo, não obstante a ciência recuse significado à problemática de Deus, isto outra coisa não faz senão denunciar claramente a própria não exclusividade do discurso científico e, enfim, a sua insuficiência no tratamento de muitas das dimensões do mundo humano; a existência da questão de Deus, num regresso histórico, perde-se num tempo imemorial e mantém-se ainda hoje, o que nos impele a considerá-la, de qualquer modo, como expressão insubstituível de alguma característica peculiar e co-fundante do ser humano.

II. O “nascimento de Deus”


03. Frente ao politeísmo grego, Xenófanes de Colofão (570-528 a.C.) se destacou como um perturbador dos espíritos míticos e místicos de seu tempo, uma vez que não cessava de denunciar o perfil antropomórfico que os deuses de sua terra e de povos longínquos assumiam:

(...) Os mortais acreditam que os deuses são gerados, que como eles se vestem e têm voz e corpo. (...). Os egípcios dizem que os deuses têm nariz chato e são negros, os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos (6).

04. Sua crítica recaia principalmente sobre os traços humanos indesejáveis, que não eram menos atribuídos aos deuses, não obstante fossem índices de imperfeição:

Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo quanto entre os homens merece repulsa e censura, roubo, adultério e fraude mútua (7).

05. A tendência geral, pois, é esta: cada qual imagina o seu Deus em conformidade consigo mesmo, ou seja, com os seus aspectos particulares e circunstanciais. Em condições propícias, certamente até os animais - pensa Xenófanes - não fugiriam dessa concorrência:

Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm (8).

06. A alguns hegelianos de esquerda couberam a recuperação e a atualização dessa crítica, dentre os quais Ludwig Feuerbach (1804-1872) adquiriu maior vulto. Este, como materialista convicto, tematizou os principais “mistérios” da religião, especialmente os dogmas da religião cristã, a fim de representá-los como magníficas produções humanas, extraordinárias nesse sentido, mas nunca no sentido de supra-humanas e apropriadamente divinas, como até então ocorrera erroneamente. Em síntese, toda teologia, todo discurso acerca de Deus não seria outra coisa senão um discurso do homem sobre si mesmo, a mais profunda das antropologias, visto que se incumbe daquilo “que não são mistérios estranhos, mas íntimos, os mistérios de natureza humana” (9):

O homem projeta espontaneamente através da imaginação a sua essência interior; ele a mostra fora de si. Esta essência da natureza humana contemplada, personificada, que atua sobre ele através do poder irresistível da imaginação como lei do seu pensar e agir, é Deus (10).

07. Conseqüentemente, já não se admite mais que Deus nos tenha criado à sua imagem e semelhança, porém, opostamente, fomos nós quem o criamos à nossa própria imagem, identidade esta camuflada pela religião, ao tomar o predicado por sujeito e o sujeito como predicado. E no desejo de agravar ainda mais a intencionalidade dessa sua consideração, Feuerbach, tal como Xenófanes, escreveu ironicamente que “se Deus fosse objeto para o pássaro, (...): o pássaro não conhece nada mais elevado, nada mais feliz do que o ser alado. (...). O ser supremo é para o pássaro exatamente o ser do pássaro” (11).

III. A “morte de Deus” no Ocidente


08. Quando aquele estranho chegou à praça proclamando a “morte de Deus” (12), sua loucura não se encontrava no anúncio de um acontecimento por vir e, portanto, ainda insensível aos comuns. Muito diversamente, sua loucura radicava-se no desvelamento do que todos encobriam e do qual, por conseguinte, todos tinham suficiente ciência. Assim sendo, o “louco” dirigia-nos para um fenômeno atual e, ao mesmo tempo, para a nossa “má-fé” (13). A “morte de Deus” não irrompia ali como um desejo, à mercê de se concretizar ou não, mas já como um fato, cuja reversibilidade era impossível. Afinal, o que nos é dado pela fé é-nos literalmente dado em algum momento, ainda que este possa solicitar momentos anteriores de busca. O dado pela fé, que coincide com a fé no dado, não é uma conquista por armas próprias, mas como que por armas alheias. Foi por isto que, outrora, muitos a admitiram como excepcionalmente “graça divina”, embora nem aos defensores da liberdade e do esforço humanos, contudo ainda crentes num Deus criador de todas as coisas, tivesse sido possível excluir radicalmente ao dado da fé a marca da “graça do Senhor”.

09. A “morte de Deus” resume o fim da certeza de qualquer coisa que se queira incondicional, isto é, absoluta (14). E se não há mais imperativo absoluto e muito menos um ser onisciente, então tudo é permitido (15). Em suma, ou Deus existe e nós não somos livres ou somos livres e Deus não existe. Na perspectiva laicizante, Jesus ressuscitou, porque a sociedade religiosa, na qual encontrava-se inserido, elevou-o a Deus (a “Cristo”). Já não se trata mais, todavia, da morte de Jesus Cristo, mas da morte do próprio sobrenatural tomado em princípio, de toda transcendência que se imponha à imanência.

10. Esvaziado o mundo do seu sentido pleno, o homem não pode mais escamotear a sua liberdade e, em correlato, a sua responsabilidade, tal como ainda tentavam os homens que, naquela praça, foram subitamente desmascarados pelo “louco”. Refugiar-se na predeterminação alheia é agir de má-fé (16), mas viver sem sentido é participar da insustentável gratuidade nauseante da existência, vivido por Roquentin (17). A fortiori, caberia somente a cada um de nós mesmos - segundo Jean-Paul Sartre (1905-1980) - atribuir um sentido à sua vida (18), que, ao seu termo, a morte, seria completamente suprimido (19).

11. Em verdade, Sartre apenas substituiu a má-fé da aceitabilidade de um sentido último e absoluto num mundo sem Deus pelos projetos existenciais num universo que se sabe antecipadamente sem qualquer sentido em si mesmo, parecendo todavia não perceber que também estes, na dada situação, importam indiscutivelmente em má-fé. Porém, bem visto, a má-fé é sempre de quem já optou pelo caráter ilusório de um sentido primeiro e último à existência humana. Na situação oposta, o homem já se vê mergulhado num mundo de sentido - daí o sentimento de dado e nunca de opção - ainda que tal sentido lhe seja, em grande medida, obscuro e assim esteja como que ainda por ser encontrado em sua plenitude. Sua existência, no entanto, não implicaria em condenação, dado que a ótica sub specie temporis do ser humano lhe dá o sentimento da liberdade, da aventura, do guerreiro e do herói.

IV. A “ressurreição do ‘Filho do Homem’”


12. Entendendo que a existência do homem, ou melhor, de cada ser humano em particular é, diferentemente dos demais entes, sempre anterior à sua própria essência, aos assim denominados existencialistas, sobretudo Sartre, outra coisa não restou, por conclusão, senão igualmente conceber este mesmo homem como um ser de projecto, de uma “escolha original”, a partir da qual todas as suas demais ações se constituiriam, sendo assim possível, a cada um de nós, só, mas “livremente”, construir o seu ser único, a sua “essência” privada.

13. Em princípio, essa tese é, sem dúvida, compatível com um mundo sem Deus. A rigor, ela decorre disso. Entretanto ambos são psicologicamente insustentáveis, bastando apenas - a fim de que todos possam assim também ajuizar - que destaquemos aqui uma inaceitável desatenção de Sartre e de outros pensadores afinados com ele para o uso do termo “pro-jecto”, posto que todo projecto ou escolha somente se institue como tal, ou seja, somente cumpre o seu caráter motriz, prático e formador do homem se se esquece como humano e se apresenta como de outrem, e de outrem maior, do qual a infinitude seria a excelência desejada, porquanto, desse modo, trataria-se, ao mesmo tempo, do absolutamente outro e maior.

14. Feuerbach, que ainda acreditava numa essência do gênero humano, não foi desatento quanto a isso, pelo menos não antes de propor ao homem que não buscasse mais a sua transcendência em Deus, contudo em si mesmo, como se isto fosse realizável:

(...) Toma o homem consciência de si mesmo através do objeto: a consciência do objeto é a consciência que o homem tem de si mesmo. Através do objeto conheces o homem; nele a sua essência te aparece; o objeto é a sua essência revelada, o seu Eu verdadeiro, objetivo. E isto não é válido somente para os objetos espirituais... (...). O ser absoluto, o Deus do homem é a sua própria essência (20).

15. O homem só busca por apelo. Ainda que interior, como expressão, por exemplo, de um desejo seu, este, ainda mais do que qualquer outro, se objetiva no não homem, no fora dele, no outro que tem o que ele almeja e que, por isto, torna-se maior do que o sujeito e ao sujeito se sobrepõe. Objetiva-se então, ipsis litteris, no objeto do desejo. Quando o próprio Feuerbach pergunta: “possui o homem o amor ou antes não é o amor que possui o homem?” (21), esta questão somente se torna um tanto embaraçosa porque deixa revelar um paradoxo, qual seja, o de que apesar do amor ser uma das atividades ou “poderes” distintivos do ser humano, ela denuncia concomitantemente a relativa dependência do eu que ama do não-eu amado, isto é, do "ob-jecto". Conseqüentemente, não obstante essa atividade seja humana e, nesse sentido, reveladora de um poder humano, tal revelação apenas se faz em toda a sua real extensão de modo radicalmente invertido, ou seja, como poder do objeto ou predicado sobre o homem ou sujeito. E, apesar dessa contradição por inversão, não se pode pensar em sua superação sem que ao mesmo tempo se reduza logicamente o grau desse poder. Na esfera da ação, este impedimento se torna ainda mais claro e nefasto, pois a grandiosidade das realizações do homem parece possuir uma relação diretamente proporcional àquele paradoxo ou contradição:

O homem nada é sem objeto. Grandes homens, homens exemplares, que nos revelam a essência do homem, confirmaram esta frase com a sua vida. Tinham apenas uma paixão fundamental dominante: a realização da meta que era o objetivo essencial de sua atividade (22).

16. Com efeito, as considerações finais de Feuerbach e de Sartre é que se tornam abstratas ao homem concreto. Para este, Deus sempre existiu, existe e sempre existirá, jamais deixando dessa forma de ser o objeto maior de seu amor e temor: se seu Deus é forte, ele será forte; se seu Deus é misericordioso, ele será misercordioso (23)... Além de tudo, nada do que interessa ao homem poderia assumir contornos completamente estranhos ao homem. Logo, tudo o que participa do mundo humano, tudo o que existe para o homem é resultado de uma maneira especial de ser dita, inevitavelmente antropomorfizante. Assumir o "fe-noumenon" não significa que o "noumenon" não exista. Por extensão, dizer que criamos Deus à nossa imagem não exclui a possibilidade de que também um Deus nos tenha criado - o próprio Xenófanes, ao mesmo tempo em que desacreditava os vários deuses antropomórficos de sua época, cria e defendia a existência de um único Deus, absolutamente transcendente ao ser humano e, portanto, indizível fidedignamente:

Um único Deus, entre deuses e homens o maior, em nada no corpo semelhante aos mortais, nem no pensamento (24).

17. Mesmo que Deus exista, é-nos assim impossível afirmá-lo em seus verdadeiros atributos. E não estamos aqui parafraseando Agostinho (25), dado que não nos seria menos impossível dizer o que ele verdadeiramente não é. Contudo também não queremos fazer da sétima proposição do “primeiro” Wittgenstein (26) palavras nossas, visto que se deixamos de falar do místico, nem por isso o místico deixa de falar de algum outro modo em nós. Caso Deus exista como causa sui, ainda assim não está em nosso alcance dizê-lo com certeza em sua transcendência, todavia apenas nos dizê-lo a nós mesmos e em nossa imanência, o que, não obstante, nos é igualmente viável na independência de sua existência.


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1) Este texto foi primeiramente publicado como artigo na Rhema, revista de filosofia e teologia, com o mesmo título.
2) Não se pode dizer, inequivocamente, que o Positivismo Lógico negue a existência de Deus, bem como os seus demais atributos. Antes, ele os considera completamente destituídos de sentido, pois não nos remetem a nenhum dado sensível original: “A negação da existência de um mundo externo transcendente seria uma proposição tão metafísica quanto a sua afirmação. Por conseguinte, o Empirismo conseqüente não nega o transcendente, senão que afirma destituídas de sentido, na mesma medida, tanto a negação quanto a afirmação do transcendente. (...). O que o empirista diz ao metafísico não é: ‘As tuas palavras afirmam uma coisa falsa’, mas: ‘As tuas palavras não afirmam nada’. Não o contradiz, mas afirma: ‘Não compreendo o que queres dizer’” [SCHLICK, Moritz. Positivismo e realismo. Tradução de Luiz João Baraúna. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 63-64 (Coleção Os pensadores: Schlick/Carnap)].
3) “Como afirma Minazzi, para o Positivismo Lógico a ‘história’ era definida ‘como um conjunto de fatos completamente irrelevante e incapaz de penetrar a íntima estrutura lógico-formal das verdades que se apresentam, na maior parte das vezes, exatamente como verdades anistóricas, isto é, alheias a qualquer mudança’” (BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da epistemologia. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 96).
4) Os inúmeros modos, através dos quais as instituições confessionais combatem a secularização caracterizante da modernidade, ilustram, eles mesmos, o grau do seu reconhecimento desse mesmo processo.
5) CHAUÍ, Marilena de Souza. Kant, vida e obra. In: KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. XIV. (Coleção Os pensadores: Kant I).
6) COLOFÃO, Xenófanes de. Fragmentos: Sátiras / Sobre a natureza. Tradução de Anna L. A. de A. Prado. São Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 36. (Coleção Os pensadores: Pré-socráticos I).
7) Idem. Ibidem.
8) Idem. Ibidem.
9) FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Tradução de José da Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1988. p. 31.
10) Idem. Ibidem. p. 251.
11) Idem. Ibidem. p. 60.
12) NIETZSCHE, Friedrich, El gay saber. In: Los filósofos modernos. Madrid: Catolica, 1976, v. 2, p. 237.
13) “Ateus”! Assim Türcke denomina todos aqueles que se encontram na praça e que, no entanto, zombam das palavras do louco, pois de fato se encontram armados contra a gravidade de se estar num mundo verdadeiramente sem Deus. Isto se traduz num “auto-esquecimento propositadamente realizado, no qual a autoconsciência humana se manteve presa e abrigada ao longo de séculos”: a metafísica ocidental. (Cf. TÜRCHE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. Tradução de Antônio Celiomar Pinto de Lima. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 72)
14) “Nietzsche identifica essa ‘morte’ do Deus cristão com o término virtual da moral do bem e do mal e de todas as formas de idealismo. É para ele o evento fundamental da história moderna e do mundo contemporâneo”. (STERN, J. P. As idéias de Nietzsche. São Paulo: Cultrix, 1982. p. 56).
15) SARTRE. Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Rita Correia Guedes. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 9. (Coleção Os pensadores: Sartre).
16) Idem. Ibidem. p. 19.
17) Roquentin: Protagonista do romance sartreano A Náusea. “A sensação de náusea que o acomete resulta da descoberta de que a sua vida lhe foi dada para nada. (...). Roquentin tenta superá-la, ainda que isto lhe custe viver como os burgueses canalhas de Bouville, aos quais devota enorme desprezo” (PENHA, João da. O que é existencialismo. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. p. 73).
18) SARTRE. Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Op. cit. p. 6.
19) Idem. Ibidem. p. 66-67.
20) FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Op. cit. p. 46-47.
21) Idem. Ibidem. p. 45.
22) Idem. Ibidem. p. 46.
23) Teoricamente, podemos aqui justificar essa passagem do seguinte modo: mesmo que a atividade geradora do processo seja concedida ao homem, tal concessão não importaria numa completa passividade de Deus no decorrer desse mesmo processo - que, portanto, em Feuerbach, não se completou, mas ficou interrompida numa verticalidade ascendente e finita (“inductione simplice”). A totalidade deste processo importa, pois, num segundo momento, expresso na reversão da relação agente/paciente, na qual, então, Deus agora é quem exercerá sua força modeladora sobre o fazer humano. A não realização deste segundo movimento foi o que levou Marx a denunciar a religião como “o ópio do povo”, após, em consonância com o primeiro dos movimentos, ter encontrado igualmente nela as marcas de um “protesto contra a miséria real”. Todavia, a efetividade deste protesto suprime-se absolutamente, a partir do instante em que toda esperança de superação real de nossa miséria só permite-se dar num mundo após-morte, isto é, pela nossa conformidade com a sua existência, existência da miséria, no mundo atual. De um modo geral, ainda que se reconheça a primazia do “concreto” em relação à “consciência” na origem do movimento histórico, difícil seria manter incólume tal parecer no decorrer do seu desenvolvimento, quando ora um ora outro parece ter o seu tempo de atuação (senão de co-atuação, mútua e recíproca), respeitando, somente assim, de modo irrestrito, a concepção que alimenta todo esse movimento, cuja complexidade acostumamo-nos expor resumidamente pelo termo “dialética”.
24) COLOFÃO, Xenófanes de. Fragmentos: Sátiras / Sobre a natureza. Op. cit. p. 37.
25) AGOSTINHO. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994. p. 192-193.
26) WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de Marcos G. Montagnoli; revisão de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 281. (Coleção pensamento humano).