Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





26 de jun. de 2012

TEXTO XXXII: Heráclito e Parmênides - Introdução à Ordem do Mundo


Rodrigo Rodrigues Alvim

01. É importante observar a dinâmica que pretende pensar o mundo ao modo dos filósofos, ao modo do que, então, se define pela inteligibilidade da dita realidade, a sua razão.

02. Trata-se de algo que não se encontra propriamente em conteúdos, mas na forma do proposto, de tal maneira que se equivoca nesse sentido quem se prende à simplicidade da diferença entre, por exemplo, a proposta de Tales e a de Anaximandro quanto à origem ou governo das coisas, na umidade (água) ou num indeterminado (ápeiron: ἄπειρον), respectivamente, quando aí é decisivo observar que se assemelham quanto à proposta de se referir ao princípio do mundo no próprio mundo, contra a tendência mítico-religiosa predominante de anunciá-lo para além das nossas condições, ou seja, de anunciá-lo como de origem divina, na vontade dos deuses que sequer se entendem entre si, conforme reclame de Xenófanes de Colofão.


03. Ainda formalmente, Tales e Anaximandro assemelham-se também na proposta de que todas as coisas estejam interligadas e são intercambiáveis por serem compostos por esse mesmo elemento “arqueológico” [elemento, ou seja, algo simples, não-composto, pois, se composto, importaria, antes, no que o compõe, este, sim, agora, rigorosamente simples e “a-tômico” (não divisível)]. As coisas deixariam de ser, assim, de governo distinto entre os seus diferentes deuses, cada qual responsável por um aspecto do mundo, aspecto isolado dos demais. A proposta filosófica faz o mundo formalmente ao alcance da compreensão humana, pois tem sua origem e governo no próprio mundo que habita. Por sua capacidade racional específica, pode o homem abarcar as coisas do mundo nas relações entre si, pelas quais elas se definem. Não há, pois, significativa diferença entre Tales e Anaximandro naquilo que os fez do mesmo modo filósofos. Então, podemos dizer que a indeterminação enquanto princípio que tudo determina e que, portanto, sendo primeiro, não-pode-ser-determinado, como claramente afirmou Anaximandro, já estava presente no "úmido" de Tales, na sua "água" que queria ser isso mesmo: aquilo que tudo determina e que, por conseguinte, não pode ser determinado.


04. Vê-se, então, que, desde os primeiros filósofos do Ocidente, é a forma do pensamento que importa, ainda que associado à sua matéria, porque a sua matéria mesma quer dizer que a origem do mundo está no próprio mundo e o faz inteligível por si só. Nesses termos, apesar do conteúdo de uma experiência do mundo, a novidade a que se chamou filosofia está nas "abstrações" de um encadeamento racional, pois um indeterminado não se predica dos dados sensíveis que se nos mostram, nem das representações e imagens oferecidas nas narrativas míticas e religiosas.

05. Voltemos, assim, para o foco do primeiro parágrafo, para a dinâmica que pretende pensar o mundo ao modo dos filósofos, ao modo do que se define pela intelegibilidade da dita realidade, a sua razão.

06. Paradigmaticamente, essa dinâmica se revela nas considerações de Heráclito de Éfeso e de Parmênides de Eleia, excludentes entre si para muitos comentadores, nem tanto assim para alguns poucos. Apresentaremo-las aqui de maneira dramática, ou seja, opondo-as radicalmente, como caricaturas que ressaltam alguns traços, aparentemente deformando, para nos aproximar do que lhes é próprio.

07. Parmênides se detém na mais radical das oposições: “o-que-é é; o-que-não-é não é”. Se além de o-que-é absolutamente não pode ser, então o-que-é jamais deixou de ser, pois se o tivesse deixado de ser, já não seria, pois do não-ser não pode vir a ser. Heráclito, por sua vez, parece já se deter nas relações admitidas como que na interioridade de o-que-é, em duas teses ou afirmações excludentes que, assim se contradizendo, são negações também, negações uma da outra. Heráclito vê nisso uma correspondência com os opostos que se manifestam no mundo, num mundo ora quente ora frio, por exemplo. Daí pensa que a contradição é a mola e essência da realidade, sempre nessa tensão que se resolve num outro que, como nova tese, é nova oposição a uma outra tese e, assim, nova tensão a se resolver, em movimento perpétuo. Heráclito se encanta com essas oposições, pois os opostos ao mesmo tempo se confirmam mutuamente: o maior, por exemplo, é a negação do menor e o menor, a negação do maior; no entanto, o maior só se afirma em face do menor e vice-versa, ou seja, um afirma o outro, um existe pelo outro, apesar de se negarem e se excluirem ao mesmo tempo. Por força da transitoriedade das coisas no mundo, parece a Heráclito que tais coisas são assim mesmo, por entre essas oposições (dialéticas).

08. Parmênides avalia que esse caminho trilhado por Heráclito é ilusório, pois não nos permite decidir com segurança. É o caminho dos sentidos, afeito apenas a opiniões. Mesmo entre os não eruditos, assim se dá: quando, senso comum, não estamos certos do que nos ocorre em pensamento, dizemos, quando o emitimos, se tratar de uma "opinião" (do grego doxa), sendo, pois, aceitáveis outras opiniões distintas da nossa, do mesmo modo que nos é facultado mudar de opinião a qualquer tempo. Ademais, quando alguém emite o que classifica como sua opinião, sentimo-nos confortáveis em proferir diferentemente. Por consequência, no caminho dos sentidos e das opiniões tem-se o múltiplo e mutável, sem qualquer certeza. Parmênides, entretanto, aponta para um caminho não ambíguo para se trilhar rumo ao conhecimento do verdadeiro, com segurança. Aliás, "conhecimento do verdadeiro" é, em Parmênides, uma repetição e, como tal, desnecessária: "conhecimento" (do grego épisthéme) é, inevitavelmente, apreensão do verdadeiro e "verdadeiro" é aquilo que, não podendo ser pensado de outro modo, só pode ser assim mesmo. Também aqui, essa compreensão se revela entre os menos eruditos, pois quando, senso comum, estamos diante de duas pessoas que afirmam conhecer sobre determinado assunto, ficamos na expectativa de que ambos manifestem o mesmo sobre tal assunto, se é que realmente ambos o conheçam. Este parece ser o caminho da razão (no grego: λόγος), da lógica: o evidente é o que só pode ser visto (do latim, vides) do mesmo modo, sem confusão com aquilo que ele não é, claro e distintamente. Logo, no caminho da razão e do conhecimento tem-se o universal e imutável.

09. Tal clareza e distinção parecem asseguradas pelo que se denominou, pouco mais tarde, princípio de identidade, um princípio da razão, sem o que ela, a razão, então não ocorre. Trata-se da evidência de que algo é idêntico a si mesmo, proferido, em termos absolutos por Parmênides, do seguinte modo: o-que-é é. Assim, além de o-que-é, trata-se de um absurdo, pois não-é. O-que-é, que certamente é tudo o que é, como está posto, não admite outro, pois, desse modo, não seria tudo o que é. Somente o-que-é pode ser rigorosamente pensado e, se é, já se trata de o-que-é. Parece uma redundância tríplice dizer: o-que-é é o que é [1) o-que-é 2) é 3) o que é]. Comumente, em nossas atuais equações do mundo, essa redundância se mostra principalmente através do signo da igualdade (=), também chamado de "razão" ou de "justa proporção", dentre outros. O mundo seria como que uma grande equação, um desdobramento que, resolvido, redunda no mesmo. Se o-que-é é verdadeiro, o falso é a sua negação. Encontra-se nisso a expressão de dois outros princípios da razão parmenidiana: o princípio do terceiro excluído (o que faz dessa razão uma razão binária: ou é ou não é, ou é verdadeiro ou é falso, não havendo outra possibilidade) e o princípio da contradição (em termos absolutos: um mesmo não pode ser e não ser; em termos relativos, não do interesse de Parmênides, mas suficientemente considerados ulteriormente por Aristóteles: uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e numa mesma relação). Ilustremos:

- Princípio de identidade (também chamado de Princípio de não-identidade) : X é (idêntico a) X:

X=X, uma tautologia, é obviamente verdadeiro, sendo, pois, a sua negação, falsa.

- Princípio do terceiro excluído: ou X é ou não é:

ou X=Y ou X ≠ Y possuem valores de verdade (ou verdadeiro ou falso) necessariamente opostos.

- Princípio de contradição (também chamado de Princípio de não-contradição): Ao mesmo tempo, X não pode ser e não ser Y, mas X pode ser e não ser em relações diferentes; em tempos diferentes, X pode ser e pode não ser, ainda que em mesma relação:

Ao mesmo tempo, X=Y e X≠Z (relações diferentes).
Em tempos diferentes, embora em mesma relação, (“antes”) X=Y e (“agora”) X ≠ Y.

10. Em Heráclito, as oposições são ambivalentes, conforme dissemos antes: os opostos, ao mesmo tempo em que se excluem, se afirmam, de tal modo que não seria possível a um dos extremos excluir o outro sem excluir a si mesmo. A solução, explicitada na transição da modernidade para a contemporaneidade por G. W. Friedrich Hegel, foi a negação do princípio do terceiro excluído da lógica de Parmênides, pela consideração de um terceiro a que chamou de “síntese”, conforme o esquema abaixo:

TESE     X     TESE 

              ↓ 

          TESE

X nesse esquema significa uma oposição, uma oposição entre teses radicalmente extremas. Assim, se tomamos por referência a tese da direita, a da esquerda é a contra-tese, a anti-tese; do mesmo modo, se tomamos a tese da esquerda como referência, é a da esquerda que é a antítese.


O vetor ↓ significa a condução da oposição das duas primeiras teses a uma terceira tese, que é como que uma união por suprassunção (um superar conservando) das teses anteriormente em tensão. Só que, sendo uma nova tese, ela também só se afirma pela sua tese oposta, inaugurando uma nova tensão, que é suprassumida numa nova síntese. Temos assim um esquema infinitamente mais amplo e de movimento perpétuo em todas as direções:


 (...)


TESE     X     ANTÍTESE 

             ↓

SÍNTESE
(Nova) TESE     X     ANTÍTESE 

                         ↓ 

                       (...)

11. Como se vê, tal movimento (vir-a-ser ou devir) não tem origem e nem fim, sendo o mundo eterno. Também não é um movimento arbitrário ou mágico, mas expressa uma ordem, uma inteligibilidade, uma razão, segundo lemos no seguinte fragmento de Heráclito: "Este mundo, igual para todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez; sempre foi e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medida." (Fragmento, 30).

12. Mais uma vez aqui, embora de modo não predominante, há como se vê alguma proximidade com o que Parmênides defenderá mais tarde, pois se pode dizer que o mundo para Heráclito é único e mesmo, comportando assim todo existente. Por isso, além dele, não é. Contudo, o todo, único e mesmo que é, Parmênides considera-o finito e imutável, enquanto, para Heráclito, trata-se de um movimento infinito pela mola da contradição que se harmoniza: Eles não compreendem como, separando-se, podem harmonizar-se: harmonia de forças contrárias, como o arco e a lira. (Fragmento, 51).

6 de jun. de 2012

TEXTO XXXI: Por Amor...

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Aristóteles tinha a Filosofia como "sabedoria teórica" (como seria, para ele, o conhecimento da physis ou natureza). Tinha-a, não menos, como "sabedoria prática" (voltada para a ação humana no mundo, a exemplo da política e da ética). Ao primeiro modo, como "sabedoria teórica", a Filosofia, em Aristóteles, ainda é demasiadamente contemplativa, se a compararmos ao que comumente esperamos de nossas ciências atuais. E embora essas nossas atuais ciências se digam voltadas à ação humana no mundo, também elas não podem ser confundidas com aquela Filosofia ao segundo modo aristotélico (a "sabedoria prática"), pois a "ação no mundo" a que ambas nos remetem não têm o mesmo sentido: enquanto as ciências hodiernas visam a uma intervenção do homem na natureza, a fim de que esta se adeque às pretensões humanas (sobretudo na sua transformação em artigos de consumo em nossa presente sociedade de mercado), a "sabedoria prática" aristotélica se preocupa com a adequação das paixões humanas à justa medida que as ciscuntâncias do mundo possam nos exigir - sentidos, portanto, completamente contrários.


02. Num contexto em que as  capacidades humanas jamais foram tão potencializadas quanto hoje pela tecnociência, compreende-se que a posse de tal poder por pessoas quaisquer ameaça comprometer o igual direito de vidas humanas sobre a Terra, se não, antes, de toda vida humana e não-humana no Universo.  Tal ameaça não tem mais os seus limites na ficção, mas é levada muito a sério pelos cientistas, apesar de politicamente minimizada para se evitar a instabilidade ou a crise generalizada das instituições.

03. Caso seja mesmo assim, não será difícil perceber que, dentre todas os problemas que geralmente levantamos à ética contemporânea, nenhuma é mais relevante do que a própria ética. Isso mesmo: a ética se tornou a principal questão para si mesma. O paradoxo é esse: ela não está em primeiro lugar no mundo da tecnociência - ela que em todo lugar deveria estar em primeiro. Longe disso, efetivamente ela é marginalizada nessa educação técnica, "manipuladora" e alma do capital. Comumente, quando toma algum vulto, vem, no entanto, associada a um entrave ao avanço tecnológico, como se, onde o progresso científico diz poder, a ética se demora na reflexão acerca do que se deve (ou não), num "dar nos nervos" do pragmatismo e utilitarismo mais chãos, num frente-a-frente entre o imediatismo das nossas demandas mais concretas  e as mediações e tantas dobras características de um adequado juízo ético.

04. Nesse contexto ambiguamente importante e desanimador da ética, é-se vencido e desestimulado às grandes reflexões. Mesmo as intuições mais profícuas terminam condenadas ao rol das curiosas impressões. Foi assim que certa vez iniciei e terminei quase que num só tempo a inspiração de que, no mundo, paradigmaticamente, existem dois tipos de pessoas: as construtivas do outro e as destrutivas do outro.

05. As primeiras pessoas, de olhar construtivo, são aquelas que restauram o humano. Vejam elas mesmas ou contam-lhes um ato duvidoso de alguém, apressam-se em buscar motivos por trás do ato visto ou contado que possam absolver o outro (que nem conhecem) da má ação, para enfim erigi-lo como ator de ato louvável.

06. As segundas, por seu turno, de olhar destrutivo, são aquelas que depredam o humano. Diante do que veem ou ouvem, ainda que aparentemente bom, encontram logo motivos maus por seu detrás, as "segundas intenções" como expressão do qual claramente o senso comum faz uso em sentido pejorativo.

07. Tal distinção paga sua simplicidade e generalidade com o silêncio. Melhor: é ingênua! Academicamente, pois, não parece ter qualquer possibilidade de se firmar. Prudente guardá-la para mim mesmo ou a um círculo bem estreito de conversas, como fiz até a leitura do texto "O Amor Cobre uma Multiplicidade de Pecados", pertencente à "Segunda Série" de As Obras do Amor, de S. A. Kierkegaard. E porque fiz tal leitura, aventurei-me a escrever sobre isso que ora apresento.

08. Certamente Kierkegaard não é um acadêmico endêmico, mas, embora muito raro, coloca à altura da academia o que dificilmente outro mais conseguiria. E nesse seu amparo, deixo-me levar ao ponto de me atrever entrever o que sinto (e apenas sinto) determinante ao futuro da humanidade: o amor. Não esse amor dos poetas, tão arrebatador para alguns quanto desacreditado para outros. Falo do que Kierkegaard considera o amor cristão, aquele capaz de converter-nos ao que outrora chamei de olhar construtivo. Destaco em Kierkegaard:

É sempre a explicação que faz de uma coisa aquilo que ela então vem a ser. O fato ou os fatos estão na base; mas é a explicação que decide. Qualquer evento, qualquer palavra, qualquer ação, enfim tudo pode se explicar de várias maneiras; tal como se diz de modo não verdadeiro que o hábito faz o monge, assim também se pode dizer com verdade que é a explicação o que faz do objeto da explicação aquilo que ele vem a ser. Com referência às palavras, aos atos, à maneira de pensar de um outro ser humano não há nenhuma certeza deste tipo, de modo que a sua aceitação significa propriamente escolher. A maneira de ver, a explicação, justamente por ser possível a diversidade, é uma escolha. Mas ela é uma escolha, e está constantemente em meu poder, se eu sou amoroso, escolher a explicação mais suave. Quando essa interpretação suave ou atenuante explica o que os outros, por leviandade, precipitação de julgamento, rigorismo, dureza de coração, inveja, maldade, enfim, por falta de amor, sem mais nem menos explicam como culpa; quando a explicação atenuante o explica de outra maneira, ela afasta uma culpa depois da outra e assim torna menor a multidão dos pecados, ou a encobre (p. 328-329).

09. Nessas palavras estão, para mim, o cerne do que o amor ao próximo é capaz de fazer sem perceber que o faz, pois ao não descobrir os erros do outro, como diz Kierkegaard, os encobre, se houver. Todavia, não é a única forma de encobrir as faltas do próximo. Na verdade, para Kierkegaard, o amor impede que o amoroso veja e ouça a multidão dos pecados. Somente quando isso não acontece - que é o caso que aqui destaco - é que o amor leva o amoroso, por outras vias, a encobrir os pecados alheios. Primeiramente, pelo calar-se sobre os que são vistos e ouvidos, evitando a multiplicar os pecados ao modo do ditado popular: quem conta um conto, acrescenta um ponto. Sendo assim, quem cala encobre o que acrescentaria se não calasse. Em segundo lugar, temos a forma que destacamos, nas próprias palavras de Kierkegaard mais acima, de o amoroso se haver com o pecado com o qual se depara e que, portanto, é precisamente o motivo deste nosso texto, a saber: dar ao pecado que se vê e se ouve uma "explicação amenizante" que o faz, também assim, invisível. Em terceiro lugar, por fim, sobretudo quando essas duas primeiras vias não conseguem ainda encobrir o pecado, resta o perdão, que, portanto, dentre todas essas atitudes do amor no amoroso, parece-nos a mais excelsa, justamente porque lida diretamente com o pecado que vê e ouve: "o perdão suprime o pecado perdoando" (p. 331).

10. Apesar disso, penso que a segunda via realizada, dispensa a primeira e a terceira. Ademais, se a primeira e a terceira vias, mesmo em suas excelências, reconhecem o erro para, logo depois, encobri-lo, a segunda via que destacamos não importa em tal reconhecimento, pois, em sua excelência, já o fato (o que se vê e se ouve), como verdadeiramente "interpretação suave", não se compreende nunca como erro, falta ou pecado, mas como algo muito ao contrário disso. Consequentemente, lidas as palavras mais acima destacadas do texto de Kierkegaard com a vagarosidade que a maior das atenções nos pede, têm elas, em suma, no meu juízo, a maior capacidade de elucidar o capítulo do qual fazem parte, coincidindo em larga medida com aquele "olhar construtivo" que, de mau jeito, eu procurava às vezes colocar nos estreitos círculos de minhas livres conversas.

11. Apesar dessa abordagem kierkegaardiana, admirável enquanto expressão do amor, uma grave questão se coloca: a da possibilidade de distinção entre o sujeito e sua ação (aqui, no caso, de sua ação quando "má"). Sem isso, o amor que se cala às "maldades", o amor atenuante do "malfeito" e o amor que perdoa o "agir pervertido", todos esses partícipes do "olhar construtivo" do humano implicarão, paradoxalmente, numa espécie de admissão do "mal", que seja ao modo de omissão frente à "maldade", quando caberia, isso sim, prontamente denunciá-la. Não seria por isso que uma forte tradição personificou a "maldade" em um "anjo decaído", fazendo dos próprios homens que a praticam, agora sem contradição, as primeiras vítimas desse "mal"?

*Perdoando alguns erros de digitação do texto que aparece no decorrer do vídeo abaixo, trata-se de um trabalho edificante, principalmente àqueles que já, por amor, se dedicam às "causas perdidas". Música: "Dom Quixote" - Engenheiros do Hawaii; Imagens: Filme "Amor Sem Fronteiras.


15 de abr. de 2012

TEXTO XXX: O Pastor Solitário

Rodrigo Rodrigues Alvim



01. Há, postado no Youtube, uma apresentação de Gheorghe Zamfir, quando ainda relativamente jovem (trata-se do ano de 1977), da música “Einsamer Hirte” (“O Pastor Solitário”), uma música que impacta, nos deixando reflexivos. Geralmente leva-nos a imaginar, como seu próprio título parece imediatamente sugerir, um pastor solitariamente a cuidar do seu rebanho, rebanho que, por sua vez, se perderia sem a orientação do cajado do seu pastor.



02. Já aí, é a solidão do pastor que se destaca, pelo contraste do sentimento de amparo que oferece ao seu rebanho. Que paradoxo! Simplesmente assim, não fosse para alguém que já leu algumas páginas de Friedrich Nietzsche. Neste confronto, a imagem proporcionada pela melodia torna-se ainda mais intensa. Quando não se é homem de liderança, homem resoluto, é preciso confessar que se está muito mais para um em meio ao rebanho do que para pastor, ou seja, que se está vivendo à sombra de alguém que possa decidir por nós, uma sombra muito agradável, pois nos abriga da possibilidade de que respondamos pelas consequências do que se decidiu, quando toda decisão inevitavelmente possui consequências imprevisíveis (condição que nos remete ao nosso fundamental desamparo neste existir). Por tal contorno, a melodia de Gheorghe Zamfir nos faz intimamente reconhecer, sem publicamente confessar, o quanto estamos e (o que é talvez pior) o quanto desejamos permanecer nessa condição de um como tantos, na condição da “massa” humana, que um poeta brasileiro cantou como “vida de gado, povo marcado, povo feliz”. Nessa marca, assinatura de outrem, de nosso senhor, cada qual se protegeria na superfície da vida (que, dessa maneira, passou à mão de outro). Na outra ponta, para que o pastor mantenha o seu rebanho no seu aprisco, tal pastor queixa-se constantemente do peso do seu dever de proteger as suas ovelhas, dessa sua “solidão”, assegurando-lhe a ascendência que tem sobre todos, uma vez que impele a ninguém desejar para si tão pesado fardo. Alguns, finalmente, sentem-se como pastores diante de seu rebanho; quem não tem rebanho sente-se no curral de algum pastor... Não, não é somente isso, mas nunca me ocorreu o que mais.


03. Hoje, porém, acordei diferente: entre o sono e a vigília dessa última noite, ocorreu-me que a real solidão não é a do pastor que dá a vida por suas ovelhas, mas do pastor despojado de qualquer rebanho, pelo qual pudesse se justificar e encontrar sentido para o seu existir. Esse pastor só pode ter ascendência sobre si mesmo e não pode submeter-se a ninguém, senão a si próprio. É essa a verdadeira solidão, é esse verdadeiramente “O Pastor Solitário”. É assim que se nasce, é assim que se morre: somente no meio é que podemos sonhar em ser pastor de um rebanho ou pertencer a um rebanho sob o cajado de um pastor. Nos extremos, o niilismo que, esperava Nietzsche, somente o homem do porvir (o "super-homem") poderia viver assumidamente, de modo a não se deixar perturbar.


04. Há quem neste momento estará simplesmente pensando em autoridades e comunidades religiosas, restrição hoje amplamente usada, principalmente pelos grandes meios de comunicação, para escamotear as nossas imposições e subserviências dentro das nossas múltiplas comunidades ditas laicas e seculares. De um modo geral, no trato do problema que eu aqui coloco, aquelas costumam ser atualmente muito mais honestas do que essas últimas - para escândalo de muitos e desânimo de todos nós.

4 de abr. de 2012

TEXTO XXIX: Análise Lógica do Texto "Instaurare omnia in Christo"

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Por ocasião da Páscoa do ano de 2006, os alunos representantes dos Diretórios Acadêmicos dos Cursos de Filosofia e Teologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES-JF – me pediram algumas palavras escritas para que pudessem ser publicadas num informativo, chamado “Anônimo”, pelo qual eram eles responsáveis. Assim, ao segundo número do primeiro ano deste informativo, que tinha por tema a “renovação”, apresentei o seguinte texto:

“Instaurare omnia in Christo”

(01). Se fôssemos completamente presos à “terra” (1), nem mesmo disto teríamos “consciência”, pois desta a “distância” é uma das características básicas (2). Se fôssemos completamente presos à “terra”, não poderíamos “nos ultrapassar” (3)... Ora, vemo-nos “diante” do mundo, embora nele estejamos mergulhados; vemo-nos “diante” de nós próprios, embora sejamos nós próprios... Logo, como seres conscientes de si e do mundo, ultrapassamo-nos a todo instante (4).

(02). Os antigos gregos assim se compreenderam: animais em posse do “fogo” dos deuses e, por isto mesmo, nem mais totalmente animais, nem totalmente deuses, nem metade animais e metade deuses, mas um terceiro: homens (5)!

(03). A tradição judaico-cristã foi mais direta: somos à imagem e semelhança de Deus (6).

(04). Por não estarmos completamente presos à “terra”, esta “distância” nos faz para nós próprios e, portanto, livres – livres inclusive para nos entregarmos completamente à “terra”. Logo, se assim é, quem “responde” por nossa “entrega” somos nós mesmos.

(05). Livres e conseqüentemente responsáveis, podemos conscientemente mudar a nós próprios. Entretanto, quem muda a si mesmo conscientemente se reconhece naquilo que antes fora e, por conseguinte, continua sendo, em alguma medida, o que outrora se fora. Somos, pois, um rastro, um “superar-conservando”, uma “suprassunção” por excelência (7).

(06). Quanto a nós, cristãos, penso que não devo perder a memória do “homem velho”, a fim de exaltar a atualidade do “homem novo” (8), que é antes “re-nascendo” que prontamente nascido. E, com os meus irmãos de fé, eu guardo a íntima esperança de que a nossa renovação em Cristo, numa Páscoa tão infinita quanto Deus, possa contagiar e renovar a “terra”.

(1) Alusão a Friedrich Nietzsche.
(2) Gerd Bornheim e outros.
(3) Friedrich Nietzsche em questão.
(4) Dinâmica da vida humana.
(5) Por exemplo, o mito de Sísifo ou de Prometeu.
(6) Imago Dei, Gn 1, 27.
(7) Antropologia dialética.
(8) Alusão a Paulo de Tarso, Col 3, 9-11.

02. Dias subsequentes à Semana da Páscoa, obtive um dos exemplares do informativo no qual estava publicado este meu pequeno escrito, quando saía de um dos campi do CES-JF, Instituição na qual trabalhei como professor de disciplinas filosóficas, dentre as quais encontrava-se a “Lógica”. Carreguei-o comigo.

03. Já noutro momento, estando eu a aguardar, dentro de sala de aula, que os meus alunos terminassem a resolução de alguns exercícios pertinentes à disciplina anteriormente citada, resolvi tomar algo para ler. Como não trouxera nada comigo, senão aquele exemplar do informativo “Anônimo”, acabei lendo-o mais uma vez e mais outra e mais outra.

04. De repente, percebi que já estava eu perscrutando a estrutura lógica do meu texto acima exposto, apesar de sua simplicidade, ou, de outra forma, analisando o encadeamento de pensamento que possivelmente fiz ao constituí-lo. Tal “distração” que encontrei redundou nas considerações que agora passo a apresentar e que, no meu juízo, parecem-me oportuno a quem já leu os Textos VII, VIII e XVIII (que se encontram dentro da Categoria “Lógica” deste Blog), os quais apresentam rudimentos da lógica aristotélica e simbólica, respectivamente. Como temos aí apenas rudimentos lógicos, a análise aqui é também, para uma compreensão possível, bastante rudimentar, mas já permite que se entreveja, com tão pouco, o uso de elementos lógicos para análise ou construção do discurso.

05. Ademais, não poderia eu perder tais condições para isto, porque constantemente relembro aos meus alunos que todos sempre fizeram e fazem uso do que fundamentalmente importa à “Lógica” filosófica, que, enquanto tal, é apenas a chance que encontramos de pensar sobre como sempre pensamos, ou seja, de explicitar o que sorrateiramente sempre nos acompanhou em nossas conversas, seja em nossas discussões familiares, em nossos debates em mesa de bar, em nossas queixas às autoridades públicas, etc. Do mesmo modo, quando escrevi o meu pequeno texto em questão, não o fiz por uma explícita análise lógica, mas como algo que me pareceu livre e espontaneamente coerente. Contudo, o que posso agora constatar é que tal coerência se deu e se mantém tanto mais o que eu disse ou escrevi coincidiu e coincide com os limites, com a estrutura ou com os princípios e as normas da minha própria razão (ainda que nem tudo se reduza tão-somente a isto). Por conseguinte, se bem argumentar faz parte do ofício do filósofo, redigir dominando os recursos lógicos é imprescindível à formação do estudante de filosofia e de todo acadêmico.

06. O título do texto é um imperativo e, como tal, pretende incitar o leitor a uma determinada ação: instaurar, restaurar, renovar “tudo” ou “todas as coisas” à luz da mensagem de Cristo (o “Filho de Deus” e o próprio Deus aos por isto mesmo denominados cristãos). Por “todas as coisas” toma-se “o mundo no qual vivemos”, que, no entanto, para o cristianismo, não é tudo, pois esta religião professa entidades transcendentes ao “mundo no qual vivemos” e existência após morte para o homem. “Todas as coisas” e “mundo no qual vivemos” também são chamados, no texto, de “terra”. Tudo isto está subentendido no texto desde o seu título e pelo público ao qual ele se dirige. Clamar que “todas as coisas” sejam renovadas à luz da mensagem de Cristo significa aceitar que elas assim não se encontram e, portanto, que “todas as coisas” e a mensagem de Cristo se distinguem. Mas significa, ao mesmo tempo, que “todas as coisas” podem se conformar à mensagem de Cristo por obra daqueles a quem o imperativo se dirige, ou seja, por obra dos cristãos, destinatários do texto. Para isto, não podem os homens serem apenas um produto do meio em que vivem, do “mundo no qual vivemos”, da “terra”. Esta disjunção pode ser assim representada:

p – A “terra” é passível de ser renovada à luz da “Boa Nova” cristã.
q – Todos nós somos completamente determinados (“presos”) pela “terra”.

p w q [Ou a terra é passível de ser renovada à luz da “Boa Nova” cristã ou todos nós somos completamente determinados (“presos”) pela “terra”].

07. Como o texto tem por seu título o imperativo “Instaurare omnia in Christo”, estará obviamente na sustentação da proposição p pela negação da proposição q:

p w q
~ q
-------------------------
:. p

08. Neste sentido, a tese que o texto pretende defender é a de que nós não somos completamente presos à “terra”, pois, como observamos no seu decorrer,

~ q g p (Se nós não somos completamente presos à “terra”, então a “terra” é passível de ser renovada à luz da “Boa Nova” cristã).

~ q g p
~ q
-------------------------
:. p

09. Por força disto, o primeiro parágrafo do texto se configura a partir da elaboração de uma argumentação que possa ter como sua conclusão necessária a proposição de que nós não somos completamente presos à “terra”. Largamente, isto ocorreu desta maneira:

Todo completamente preso à “terra” não é capaz de ultrapassar a “terra”.
Ora, (todos) nós somos capazes de ultrapassar a “terra”.
Logo, (todos) nós não somos completamente presos à “terra.

10. Este argumento é válido: 1) possui três termos: um maior (“o completamente preso à ‘terra’”), um médio (“o capaz de ultrapassar a ‘terra’”) e um menor (nós); 2) os termos da conclusão não têm extensão maior do que eles mesmos nas premissas (o sujeito da conclusão é universal e se encontra com igual extensão como sujeito da premissa menor; o predicado da conclusão, encontrando-se numa proposição negativa, é universal e se encontra com igual extensão como sujeito da premissa maior); 3) o termo médio não entra na conclusão (para exercer o seu papel mediador, este termo se encontra devidamente presente em ambas as premissas); 4) o termo médio é universal ao menos uma vez (apesar de sua extensão particular na premissa menor, ele se faz universal na premissa maior); 5) de duas premissas negativas, nada se conclui (somente a premissa maior se faz negativa); 6) de duas premissas afirmativas, não pode haver conclusão negativa (não obstante a conclusão seja negativa e a premissa menor seja afirmativa, a premissa maior é negativa); 7) a conclusão segue sempre a premissa mais fraca (do ponto de vista quantitativo, a conclusão é universal, mas do mesmo modo o são as premissas das quais ela se infere; do ponto de vista qualitativo, da premissa maior negativa e da premissa menor afirmativa, a conclusão é negativa, seguindo, pois, a qualidade mais fraca da premissa maior); 8) de duas premissas particulares, nada se conclui (não é o caso deste argumento, formado por duas premissas universais).

11. Apesar de válido, este argumento não é “perfeito”, ou seja, ele é “inteligível”, mas não o mais claramente inteligível. De outra forma, embora tal argumento respeite as regras lógicas acima, o lugar do termo médio (M) na premissa maior faz com que ele contrarie a sua extensão comparativamente à extensão do termo maior (T), pois este como sujeito e o termo médio como predicado faz com que o termo maior seja considerado menor que o termo médio:

Sujeito 
< 
Predicado

Premissa maior:
Premissa menor:
Conclusão:
T
t
t
< 
< 
< 
M
M
T
Termo maior (T)
menor que o
termo médio (M)

 12. Neste caso, pode-se apenas fazer a conversão simples dos termos da premissa maior, uma vez que esta é uma proposição universal negativa. Recorrendo ao atalho medieval, trata-se do modo CES/A/RE de 2ª Figura (imperfeita) que deverá ser reduzida ao modo CE/LA/RENT de 1ª Figura (perfeita). Desta maneira, obteremos o argumento abaixo:

Todo capaz de ultrapassar a “terra” não é completamente preso à “terra”.
Ora, (todos) nós somos atos ultrapassantes.
Logo, (todos) nós não somos completamente presos à “terra.

13. Em seguida, dos fundamentos da tese, tem-se a expectativa de que alguém poderá suspeitar da premissa menor: (todos) nós somos atos ultrapassantes”. Daí a necessidade de justificação desta proposição, o que ocorre, primeiramente, por uma simples recorrência à autoridade (de Gerd Albert Bornheim), que afirma ser a “distância” uma das características básicas de realização do ato de consciência, o que permite ao texto, ainda nas entrelinhas de seu primeiro parágrafo, rascunhar uma articulação de argumentos mais ou menos assim:





┌ ּּּּ

└→


┌ ּּּּ
└→


Todo se voltar para si ou para outro (mundo) [estar “diante” de...] implica em tomada de distância de si ou de outro (mundo).
Ora, toda consciência de si ou de outro (mundo) implica em se voltar para si ou para outro (mundo) [estar “diante” de...].
Logo, toda consciência de si ou de outro (mundo) implica em tomada de distância de si ou de outro (mundo).

Toda tomada de distância de si ou de outro (mundo) é ato ultrapassante de si ou de outro (mundo).
Ora, toda consciência de si ou de outro (mundo) implica em tomada de distância de si ou de outro (mundo).
Logo, toda consciência de si ou de outro (mundo) é ato ultrapassante de si ou de outro (mundo).

Toda consciência de si ou de outro (mundo) é ato ultrapassante de si ou de outro (mundo).
Ora, cada um de nós é consciência de si ou de outro (mundo).
Logo, cada um de nós é ato ultrapassante de si ou de outro (mundo).

14. Estes argumentos são válidos, porque observam as oito regras lógicas já antes explicitadas e aplicadas em argumento silogístico anterior, e são racionalmente óbvios (ou perfeitos), pois também o termo médio (M) nas premissas de cada um dos argumentos permite o respeito à extensão de todos os termos destes mesmos silogismos. Trata-se em todos os casos do modo BAR/BA/RA de 1ª Figura.

15. Os parágrafos segundo e terceiro do texto são ilustrações histórico-culturais de compreensão de que nós homens não somos completamente presos à “terra”, mas ultrapassamo-la como a nós mesmos. Indiscutivelmente pode ser encarado como recurso retórico de importantes efeitos psicológicos sobre o leitor em favor da tese do autor do texto. Todavia, permite ser cunhado logicamente como imediatamente apresentamos:






┌ ּּּּ
└→



┌ ּּּּ
└→
Os antigos gregos e a tradição judaico-cristã compreendiam o homem como seres ultrapassantes ou transcendentes ao mundo.
Ora a cultura ocidental é produto dos antigos gregos e da tradição judaico-cristã.
Logo, a cultura ocidental compreende o homem como seres ultrapassantes ou transcendentes ao mundo.

A cultura ocidental compreende o homem como seres ultrapassantes ou transcendentes ao mundo.
Ora, nós pertencemos à cultura ocidental.
Logo, nós compreendemos o homem como seres ultrapassantes ou transcendentes ao mundo.

Todo homem é compreendido por nós como seres ultrapassantes ou transcendentes ao mundo.
Nós somos homens.
Logo, nós somos compreendidos por nós (mesmos) como seres ultrapassantes ou transcendentes ao mundo.

16. Resolve-se, enfim, um dilema que assim se expressa:

q – Todos nós somos completamente determinados (“presos”) pela “terra”.
r – Todos nós somos livres.

(q . ~ r) w (~ q . r) [Ou todos nós somos completamente determinados (“presos”) pela “terra” e todos nós não somos livres ou todos nós não somos completamente determinados (“presos”) pela “terra” e todos nós somos livres].

17. Por tudo o que já se desenvolveu até aqui, tal dilema equaciona-se do seguinte modo:

{[(q . ~ r) w (~ q . r)] . ~ (q . ~ r)} g (~ q . r)

18. Conclui-se, pois, que todos nós não somos completamente determinados (“presos”) pela “terra” e que todos nós somos livres.

19. O parágrafo quarto do texto explora tal resultado e infere da dimensão de nossa liberdade a nossa autodeterminação e responsabilidade. Representamo-lo também por um silogismo válido e perfeito de primeiro modo:

Todo aquele que é livre responde pelos seus atos (“entregas”).
Ora, todos nós somos livres.
Logo, todos nós respondemos pelos nossos atos (“entregas”).

20. O quarto parágrafo segue nos desdobramentos lógicos a partir do antes igualmente desdobrado:

Toda mudança voluntária de si mesmo (livre e responsável) é consciência de si próprios como interseção extensiva a  um antes e um depois (“suprassunção”).
Alguns dentre nós mudam-se a si mesmos voluntariamente.
Alguns dentre nós são consciências de si próprios como interseções extensivas a um antes e um depois (“suprassunção”).

21. Este argumento é construído de modo a ser válido: DA/RI/I, 1ª Figura.

22. Todo este suporte lógico visa atender ao que requer a mensagem final do texto, que guarda, em seu mais fundo, a tradicional relação DEUS – HOMEM – MUNDO. Aliás, a filosofia foi, por muitos e longos anos, definida como um tratado destas três “substâncias” ou “naturezas”. Numa perspectiva cristã e otimista, o mundo submete-se à boa vontade humana, que, por sua vez e enquanto tal, só pode coincidir com a vontade santa de Deus, porque perfeita. Finalmente, não é o mundo que determina o homem, mas é Cristo que o contagia no exercício da própria liberdade do homem e, através deste, renova a “terra”. Eis a inabalável “aliança”, a grande PÁSCOA que ininterruptamente se realiza e o banquete dito eterno pelos cristãos.

23. Como propus e desenvolvi aqui uma análise de texto sobretudo numa perspectiva silogística, o material examinado deveria ser agora re-elaborado – caso se pretenda dele uma atenção tanto lógica quanto de estilo literário. Afinal, bem se viu que, tantas vezes, teve-se que recorrer mais ao subtendido do que ao explicitamente dado. Por isto mesmo, a análise aqui feita também não deixou de ser uma defesa do próprio texto, quando se procurou sempre apresentá-lo mediante recursos de silogismos não somente válidos, mas também perfeitos. Apesar disto, não se está aqui comungando de uma tendência que geralmente afirma que um texto mais atento à sua elegância prejudica a sua clareza lógica ou vice-versa. Ao contrário! Como já disse antes, quando produzi o texto aqui examinado, fi-lo sem qualquer esboço de estrutura lógica. Se ele permitiu ainda alguma análise desta ordem, isto se deveu estritamente ao fato de ele ter sido composto por um ser racional e de modo argumentativo. Creio, pois, que, se eu o redigisse novamente agora, não apenas o melhoraria em sua clareza mas igualmente em arte e inspiração.


24. Em nossas considerações cotidianas, também não estamos a prezar por esta clareza lógica. Na verdade, isto demanda tempo – e tempo é precisamente o que atualmente não nos é mais oferecido para pensar. Se “tempo é dinheiro”, a pobreza material do filósofo, que o oferece todo ao pensamento, está devidamente justificada. De certa vez, num programa televisivo, foi pedido a uma filósofa que, rapidamente, dissesse o que pensar sobre determinado ponto da questão então em pauta. Ela não quis se manifestar. Insistiu-se. Fez ela um gesto de passar a vez. Teimou-se, contudo. Então ela disse, sem esconder algum cansaço: se vocês querem saber o que pensar sobre isto, eu preciso de mais tempo e posso dizê-lo depois; se, entretanto, vocês querem apenas a minha opinião, esta sim eu posso lhes apresentar agora.

18 de mar. de 2012

TEXTO XXVIII : Repente para Pensar IV: Voltando ao Mesmo, Sempre Outro - "O Filho Pródigo"

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Há quem leia a Bíblia porque acredita que ela seja palavras divinas reveladas ou inspiradas aos homens. Há quem leia a Bíblia porque simplesmente a compreende como uma junção dos mais influentes livros da práxis ocidental, ou seja, do nosso modo de pensar e agir interagidos, um patrimônio capaz, portanto, de, em larga medida, nos permitir compreender a nós mesmos, que nascemos nesta parte do mundo, ou de nos fazer melhor compreender por aqueles que nasceram em outro contexto. Sempre perde, portanto, a meu ver, quem não lê essa obra, antes para se compreender a si próprio ou a outrem, do que para já criticá-la, sobretudo relativamente ao seu caráter divino ou não.

02. Quem, por exemplo, pode considerar desinteressante a parábola, de autoria atribuída a Jesus, denominada “O filho pródigo”? Ousaria dizer que ela é expressão de algo mais fundamental em todo ser humano, ao modo de “Édipo” para os psicanalistas. Mas como psicanalista não sou, tenho que voltar mesmo ao meu lugar de curioso.

03. Assim está escrito no Evangelho de Lucas:

“Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe”. E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, ajuntando todos os seus haveres, o filho mais jovem partiu para uma região longínqua e ali dissipou sua herança numa vida devassa. E gastou tudo. Sobreveio àquela região uma grande fome e ele começou a passar privações. Foi, então, empregar-se com um dos homens daquela região, que o mandou para seus campos cuidar dos porcos. Ele queria matar a fome com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. E, caindo em si, disse: ‘Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome! Vou-me embora, procurar o meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados’. Partiu, então, e foi ao encontro de seu pai.
Ele estava ainda ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho, então, disse-lhe: ‘Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho’. Mas o pai disse aos seus servos: ‘Ide, depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado!’ E começaram a festejar.
Seu filho mais velho estava no campo. Quando voltava, já perto de casa ouviu músicas e danças. Chamando um servo, perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este lhe disse: ‘É teu irmão que voltou e teu pai matou o novilho cevado, porque o recuperou com saúde’. Então ele ficou com muita raiva e não queria entrar. Seu pai saiu para suplicar-lhe. Ele, porém, respondeu a seu pai: ‘Há anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho, que devorou seus bens com prostitutas, e para ele matas o novilho cevado’. Mas o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso que festejássemos e alegrássemos, pois esse teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado!’”


04. Surpreende-me todo o movimento dialético presente nesse texto, antes mesmo que tal movimento se tornasse notório, como aconteceu somente, ao nascer da contemporaneidade, com a filosofia de Hegel. Lembremos que esse mesmo movimento, embora primeiramente destacado por Heráclito na antiguidade grega, fora como tal esquecido ou tomou a forma de uma “lógica da aparência” (entendendo a “aparência” como algo desprezível ao verdadeiro imutável), como apenas um jogo de palavras sem compromisso com a essência universal.

05. Aplicado à Antropologia – ou não é o que tomamos como maioridade de um homem seu “sair de casa”? –, esse movimento tem por afirmação o estar aí onde nasceu e ser, em geral, como aqueles pelos quais se foi gestado, centelha de um mesmo fogo, da mesma lareira, do mesmo lar, “um de casa”. Aí recebe um nome e se compartilha de um mesmo sobrenome, sua identidade original, tentativa por imitação. Mas tal identidade também se esclarece melhor pelo que lhe é oposto, por uma oposição, que, no entanto, se abre como opção, que, por sua vez, e não menos entanto, já implica um lançar-se à novidade: quando se vê, já se transita entre o interior e o lá fora de casa. Nesta crise, pensa-se que ou se fica ou se vai. Alguns se iludem em ficar; outros em sair. Ilusão porque nada mais é como antes, porém nunca se consegue radicalmente esquecer-se de casa: uma síntese, uma nova casa, na qual nascerão novas e mesmas gentes.

06. O pai, personagem desse “mito”, “O filho pródigo” (e mito, para mim, não é algo mentiroso ou ilusório, mas, muito pelo contrário, é um modo possível de se compreender e expressar o que nos acontece), é como que a dialética que já se sabe. Seu filho mais velho, ao contrário, é a personificação de uma espécie de pensamento binário e fixo ora num ora noutro de seus pólos (mas – pensa-se – jamais em ambos, como isso lhe seria possível?), que, se não pode evitar o movimento, despreza-o como perturbador da ordem, pois “é fiel” e “temerário” como “as pedras imóveis na praia” (bela figura de Raul Seixas): contrapondo-se a todo movimento do mar, as pedras! Também elas se movem, sem assim se perceberem a si próprias – e confirmam, também elas, o que pretendem negar: a dialética geral.

07. A vantagem que o movimento tem sobre o não-movimento é muito grande, pois para o não-movimento é preciso que nenhuma parte se mova. A favor do movimento, ao contrário, basta que uma parte se mova, para que arraste todas as demais. Por isso mesmo, o filho mais velho lamenta: eu fiquei (embora deva lhe confundir a sensação de que nada jamais foi o mesmo, sobretudo desde a partida do seu irmão)! Mas sabe que, agora, com o retorno do irmão, mais do que nunca, evidencia-se a realidade humana de que não há como deter a mudança.

08. O pai é a dialética que já se sabe – como disse antes. Por isso, espera pela volta do filho que se foi. Ele, o pai (mas que um dia era somente filho), certamente com os olhos sempre postos no horizonte, reconhece o filho ainda ao longe. Esse filho é, por sua vez, a dialética que se faz. É pelo filho mais novo que a novidade se faz – e novidade é movimento. Mas, no ápice da contradição dialética, a novidade tem consigo o mesmo de uma repetição (é repetição que abriga o novo e a mesmidade). A dialética do filho novo já está presente no velho pai que, por isso, o espera todos os dias. A volta é o movimento para o mesmo lugar, é “re-torno”. Mas o mesmo, nunca é o mesmo (entendam-me como a um dialético): há um mesmo antes da partida, um mesmo durante a partida, um mesmo depois da volta. Logo, posso dizer que a lógica binária não é simplesmente um erro, mas seu erro é não se perceber apenas possível no trato de um momento que se quer analisar como único (um interessante e até importante exercício na circunscrição ficcional de um momento tomado como um todo).

09. Com dinheiro e com amigos, sem já seus bens e também sem amigos, na contradição de um trabalho que lhe dá a condição de como um sem-trabalho, de se ver sem-ser-porco a disputar a lavagem dos porcos, como se porco igualmente fosse, situação que o faz opor seu patrão que o maltrata ao pai que é bom com os seus próprios serviçais... Melhor voltar à sua casa, ao mesmo que não mais o mesmo, pois espera para si a condição de um serviçal do próprio pai, condição que, ao contrário de humilhá-lo, conforta-o e serve-lhe como mola agora em sentido oposto ao mote que o fez, um dia, deixar a sua casa.

10. Que as coisas nunca mais seriam as mesmas, sabe o filho mais novo: de retorno, abraçando o pai (pois seu pai mesmo), diz que já não é mais digno de ser tratado como filho. De fato, o pai não o trata mais como o filho dantes, mas melhor. Quem o prova é o reclame do filho mais velho. Antes, como filhos, nenhum deles teve a morte de um novilho (o melhor, aliás) para uma festa! E para surpresa do filho mais velho (que está à procura da coerência binária), o pai lhe confirma, mas de modo positivo e não negativo, pois – esclarece seu pai – um filho perdido (como que morto) foi reencontrado (como que voltando à vida). Aborda, assim, o acontecimento de uma maneira completamente estranha ao filho mais velho (e elucidativa ao mais novo), pois o filho mais velho não percebe que a sua própria indignação (a própria contradição) significa a transitoriedade de todas as coisas (significa o eixo da lógica dialética): ele, que ficou, quando seu irmão partiu, por “amor” ao pai (e por obediência, seguramente), nega-lhe compreensão e amor filial, agora, no momento em que seu irmão retorna para casa e seu pai se encontra feliz. “E, no entanto [como Galileu balbuciou entre os seus inquisitores, quanto à natureza], tudo se move”, de tal modo que o que nos parece um adiante pode não ser mais que uma tentativa de reparação; e uma reparação, também um modo de se ir adiante.