Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





27 de jan. de 2012

TEXTO XXIII: Lógica e Existência

Rodrigo Rodrigues Alvim


Historicamente, a filosofia ocidental foi, pouco a pouco e de um modo geral, perdendo o seu otimismo relativamente à identidade entre o ser e o pensar. A razão foi perdendo o seu lastro com a realidade e frisar isto se tornou para muitos condição de possibilidade para obter as credenciais de crítico. A própria razão entrou, assim, em crise, tornando-se autofágica. Não há mais uma instância última racional, mas instâncias imediatas de razões, multiplicadas em pretensas unidades incomensuráveis entre si. Não há mais a lógica como antes se acreditava, mas sistemas lógicos ou logísticas. As distinções entre o real e o virtual estão cada vez mais embotadas. É disto que este texto trata (*).


01. Podemos perceber que, para Jacques Maritain, é sumamente importante à Filosofia manter intacto o vínculo da Lógica com a Metafísica (1) (ou, em termos mais largos, do pensamento com a existência).

02. Particularmente, isto se revela nas suas considerações acerca da “extensão” e da “compreensão” dos termos das proposições constituintes dos silogismos categóricos: “os antigos não eram nem exclusivamente ‘extensivistas’ nem exclusivamente ‘compreensivistas’” (2).

03. Por isto mesmo, tal consideração lógica só se faz mais clara ao fundo de suas posições metafísicas. Faço alusão à “Questão dos Universais” que, embora marcante na baixa Idade Média, respeita o intento deste filósofo de fazer o pensamento de Tomás de Aquino dialogar com a “modernidade” ou, melhor, com a contemporaneidade.

04. Como classicamente se expõe, também para Maritain a “Querela dos Universais” se radicaliza por dois grupos de filósofos, um denominado “realista” e outro denominado “nominalista”.

05. Basicamente, para os “realistas”, os “universais” são reais. Portanto, nas palavras de Maritain, defendem que “aquilo que nossas idéias nos apresentam sob um estado universal existe na realidade sob um estado universal” (3).

06. Ao contrário, para os “nominalistas”, os “universais” são apenas “nomes”. Logo, como nos escreve Maritain, defendem que “aquilo que nossas idéias nos apresentam sob um estado universal não existe absolutamente na realidade” (4).

07. Assim, podemos entrever uma simetria entre estas vertentes “metafísicas” e as exclusividades dos pontos de vista “lógicos” da “extensão” e da “compreensão”, mais acima referidos.

08. Como a “modernidade” é marcada por uma crise da metafísica, ou seja, da aceitabilidade da existência per se de “entidades metafísicas”, tal simetria pende atual e crescentemente para o lado dos “nominalistas”, que modernamente adquiriram outros nomes: empiristas ou neo-empiristas, positivistas ou neopositivistas e outros mais.

09. Na concepção dos “neotomistas” (dentre estes, pois, também Maritain), a obra de Tomás de Aquino (pela qual o pensamento aristotélico se conforma à mensagem cristã) pode ser avaliada como de cunho “moderado” (5) dentro deste debate entre “realistas” e “nominalistas”, porque, pretensamente calcado em Aristóteles de Estagira, não poderia negar a “realidade” dos “universais” em detrimento da “realidade” dos “individuais” ou vice-versa. Noutros termos, a obra de Tomás de Aquino admite, embora não simplesmente, tanto as observações do “realismo absoluto” quanto às do “nominalismo”, considerando-os, desta maneira, extremistas exclusivistas e, como tais, insustentáveis. Desde então, surge entre estes o que se chamou de “realismo moderado”.
10. Na expressão do próprio Maritain, o “realismo moderado” de Aristóteles e Tomás de Aquino contempla tanto o “nominalismo” quanto o “realismo” ao defender, respectivamente, que “aquilo que nossas idéias nos apresentam sob estado universal NÃO EXISTE fora do espírito sob este estado de universalidade, [mas] EXISTE fora do espírito sob estado de individualidade” (6).

11. Tendo tudo isto como pano de fundo, penso podermos melhor entender os ensinamentos da lógica propostos por Maritain, quando afirma que, “realmente, se a lógica aristotélica guardou a justa medida [entre a importância de se atentar para a “extensão” e a “compreensão” dos termos das proposições categóricas], a ‘lógica clássica’ entre os modernos, sobretudo após Leibniz, parece muito bem se haver alterado sob preocupações exclusivamente extensivistas” (7). Sendo assim, estes “modernos” reafirmam-se “nominalistas”.

12. Ora, quais seriam as conseqüências desta exclusividade?

13. Partindo da posição dos “nominalistas” frente aos “universais”, os “conceitos” perdem completamente sua força de realidade. No campo da Lógica Menor (formal), isto se traduziu, por um lado, na abstenção crescente com o cuidado dos termos das proposições constitutivos dos silogismos categóricos do ponto de vista da “compreensão” (de suporte metafísico) e paradoxalmente, por outro lado, abriu condições para a construção de “sistemas” completamente alheios à sua fundamentação empírica (que nos reporta ao campo da Lógica Maior – material – , da Teoria do Conhecimento).

14. Na perspectiva do primeiro desdobramento, ressaltou Maritain que “o ensino da Lógica, à medida que aos poucos se inclinava a reduzir todo o raciocínio unicamente à verificação das relações de extensão, sofreu nos tempos modernos uma grave deformação.” Ainda nas palavras de Maritain, podemos selecionar tal deformação do seguinte modo:

Muitos autores mais ou menos nominalistas, confundindo a extensão de um conceito com a resolução deste numa simples coleção de indivíduos, isto é, sua destruição pura e simples, e compreendendo, por conseguinte, de maneira inteiramente errônea a máxima que ‘o silogismo vai do universal ao particular’, interpretam o silogismo de um ponto de vista inteiramente coletivo; quero dizer consideram o silogismo como consistindo em fazer passar a um ou a alguns indivíduos um predicado verificado em todos os membros da coleção, de que estes indivíduos fazem parte. Isto é um erro fundamental e, em realidade, a destruição de toda Lógica; e por isto não é de se admirar que tais autores, tendo nem mais nem menos do silogismo uma concepção tão pouco sutil, considerando-no como uma vã tautologia ou então um círculo vicioso. (...). Em realidade, não se trata de uma coleção de indivíduos, é a natureza universal comunicável a estes e tomada como termo médio que dá todo o valor da inferência silogística e que, somente ela, dá sua razão de existir. Não é do ponto de vista de uma simples coleção de indivíduos, é do ponto de vista da essência universal que devemos nos colocar para compreender o silogismo. Este consiste em fazer passar a um sujeito (individual ou universal) um predicado que sabemos ser verdadeiro da natureza universal que impõe sua lei a esse sujeito: operação legítima e que faz progredir o conhecimento (...) (8).

15. Na perspectiva do segundo desdobramento, por sua vez, eis o que pensamos o melhor a destacar dos escritos de Maritain:

(...) a Logística é alguma coisa essencialmente diferente da Lógica. Enquanto a Lógica refere-se ao próprio ato da razão em seu progresso para a verdade, portanto à ordem dos próprios conceitos e do pensamento, a Logística refere-se às relações entre sinais ideográficos e portanto aos sinais como considerados como suficientes a si mesmos, uma vez estabelecidos. Em conseqüência, a segunda destina-se a dispensar de pensar, a evitar as operações racionais e propriamente lógicas, tais como distinção, argumentação, etc. e a suprimir qualquer dificuldade no raciocínio por uma álgebra, aliás excessivamente complicada, que a inteligência bastaria aplicar. A primeira, pelo contrário, destina-se a ensinar a pensar, a ensinar a efetuar convenientemente as operações racionais e propriamente lógicas, tais como distinção, argumentação, etc., e a ensinar a vencer as numerosas dificuldades do raciocínio por uma arte (virtude intelectual) que deve aperfeiçoar intrinsecamente a própria vida da inteligência e cooperar para a sua atividade natural (9).


16. A Logística, para Maritain, é um “sistema de cálculo ideográfico universal” inaugurado por Gottfried Wilhelm Leibniz e que obteve grande desenvolvimento somente a partir do século XIX, através dos esforços de lógicistas-matemáticos ingleses e italianos como Augustus de Morgan, George Boole, F. W. K. E. Schröder, H. MacColl, Charles Sanders Pierce, Macfarlane, Giuseppe Peano, Bertrand Russell, Alessandro Padoa) (10).

17. Gilbert Hottois esclarece esta mesma distinção do seguinte modo:

Na tradição, o pensamento domina e está em primeiro lugar; a voz, a palavra, exprime o pensamento, e a escrita permite ficar a palavra. Na combinatória [Logística], a escrita tende a ocupar o primeiro lugar, porque depois de o alfabeto dos pensamentos ter sido fixado a ideografia, o cálculo dos pensamentos torna-se um jogo regulado por meio de símbolos, que procede automaticamente e como que cegamente. Leibniz falava de resto a este propósito de “pensamento cego”, ainda que num sentido positivo: um modo de fazer que deixa de estar sumetido à lentidão e às imprecisões do pensamento intuitivo que, naturalmente, acompanha o discurso. (...). A escrita calculante é mais rápida, mais ágil e também mais segura do que a inteligência pensante, e avança à sua frente (11).


18. A Leibniz, como idealizador da Logística, Maritain não poupa críticas, precisamente pelo abuso que aquele fez (e muitos filósofos contemporâneos ainda fazem) de proposições puramente tautológicas, distanciando-se assim de toda “lógica sã, isto é, toda lógica que trabalha com os conceitos e com os objetos do pensamento, e não apenas com palavras e com sinais, toda arte que é realmente uma arte de pensar e não uma álgebra que dispensa de pensar” (12). Particularmente em Leibniz, isto se faz mais “grave” para Maritain que igualmente o considera “um espírito mais profundamente metafísico” (13). Ora, “a determinação do sujeito como matéria pelo predicado como forma se encontra não somente em nossa maneira de conceber ou em nosso espírito (ordem lógica), mas também na realidade (ordem real, física ou metafísica)” (14), o que, no entanto, parece ignorado nas abstrações Logísticas (15).

19. Embora não desenvolvida, crítica geral e similar foi escrita por Pascal Ide em sua obra A arte de pensar:

Não é raro que o homem faça do ato do raciocínio uma finalidade e esqueça que ele está a serviço da inteligência. Esse grave desvio que afasta o espírito de sua verdadeira função e de seu desabrochar verifica-se naquele que multiplica cálculos e as teorias e não sabe deter-se para contemplar o verdadeiro. Em última instância, o intelectual é mais seduzido pelo funcionamento de sua razão, por sua habilidade de encadear as demonstrações e fazer conjecturas: é completamente o inverso dessa genuflexão interior da inteligência que, centrada não no eu, mas na realidade extramental, apaga-se diante de seu objeto, tornando-se este objeto. (...). Quanto ao celebral raciocinate, ele não conhece mais, ele pensa, só isso. Aliás, por estender excessivamente um raciocínio, não se sabe mais se ele diz a verdade. Roger Caratini dá o exemplo de um teorema de quinze mil páginas, cuja própria extensão desencoraja de saber se ele enuncia alguma verdade (16).

20. Muito opostamente a Maritain, Bertrand Russell há de reclamar precisamente das concepções metafísicas de Leibniz ou de um certo ainda vínculo seu à tradição filosófica, como a sustentada ainda por Maritain, que não o deixaram ir muito mais além em seus percursos lógicos e ainda o fizeram relegar estes seus estudos “assombrosamente lógicos” ao fundo de gavetas por longos anos, mesmo depois de sua morte (17).

21. Gostaria de nos entregar neste sentido a um recorte de exposição e comentário que o próprio Russell faz da filosofia de Leibniz, especialmente, é claro, das transições lógico-metafísicas que este pensador outrora realizou. É o que imediatamente se segue.

Na maior parte das vezes, Leibniz representa a criação como um ato livre de Deus, que requer o exercício de sua vontade. De acordo com esta doutrina, a determinação do que realmente existe não é afetada pela observação, mas tem de efetuar-se mercê da bondade de Deus. À parte a bondade de Deus, que o leva a criar o melhor mundo possível, não há, a priori, nenhuma razão para que uma coisa deva existir de preferência a outra. Mas, às vezes, em papéis não revelados a nenhum ser humano, há uma teoria inteiramente diferente acerca deste ponto: por que algumas coisas existem e outras, igualmente possíveis, não existem? Segundo esta opinião, tudo o que não existe luta por existir, mas nem todas as coisas possíveis podem existir, porque nem todas são “compossíveis”. Pode ser possível que A deva existir e que B também deva existir, mas pode não ser possível que A e B existam ao mesmo tempo; neste caso, A e B não são “compossíveis”. Duas ou mais coisas só são “compossíveis” quando é possível a todas elas existir. (...) Leibniz emprega mesmo este conceito como um modo de definir a existência. Diz ele: “o existente pode ser definido como aquilo que é compatível com mais coisas do que aquilo que é incompatível consigo mesmo.” Isto quer dizer que se A é incompatível com B, enquanto que A é compatível com C e D e E, mas B só é compatível com F e G, então A, mas não B, existe por definição. “O existente – diz ele – é o ser que é compatível com a maioria das coisas.” Nesta exposição, não há referência a Deus e, ao que parece, nenhum ato de criação. Tampouco é necessária qualquer outra coisa senão a lógica pura para determinar o que existe. A questão de se saber se A e B são “compossíveis” é, para Leibniz, uma questão lógica, isto é: envolve a existência de A e B uma contradição? Segue-se daí que, na teoria, a lógica pode decidir a questão de se saber que grupo de “compossíveis” é o maior, e este grupo, por conseguinte existirá. Não obstante, talvez Leibniz não tenha realmente querido significar que o que foi dito acima era uma definição de existência. Se era apenas um critério, pode conciliar-se com suas opiniões populares, mediante o que ele chama de “perfeição metafísica”. A perfeição metafísica, segundo ele emprega o termo, parece significar quantidade de existência. “É – diz ele – nada mais que a magnitude da realidade positiva estritamente entendida.” Sempre afirma que Deus criou tanto quanto possível; esta é uma das razões para se rejeitar o vácuo. (...). Leibniz, na sua maneira de pensar privada, é o melhor exemplo de filósofo que usa a lógica para a metafísica. Este tipo de filosofia começa com Parmênides e é levado mais avante por Platão, ao empregar a teoria das idéias para provar várias proposições extralógicas. Spinoza pertence a esse mesmo tipo, o mesmo acontecendo com Hegel. Mas nenhum deles é tão preciso como Leibniz, ao tirar deduções da sintaxe e aplicá-las ao mundo real. Esta classe de argumentação caiu em descrédito, devido ao desenvolvimento do empirismo. (...) não há dúvidas de que as inferências encontradas em Leibniz e em outros filósofos a priori não são válidas, já que todas elas são devidas a uma lógica defeituosa. A lógica sujeito-predicado, que todos os filósofos deste tipo aceitaram no passado, ou ignora completamente as relações, ou apresenta argumentos falazes para provar que as relações são irreais. Leibniz é culpado de uma contradição especial, ao combinar a lógica sujeito-predicado com o pluralismo, pois a proposição “há muitas mônadas” não é da forma da do sujeito-predicado. Para ser coerente, um filósofo que acredita que todas as proposições devem ser desta forma deveria ser um monista, como Spinoza (18).

22. A Platão é atribuída a âncora metafísica pela qual, por séculos, o pensamento (logos) ocidental foi se construindo. Diante da necessidade de situar-se neste mundo inegavelmente múltiplo e transitório, de bom grado os homens nele se fixaram através da “Teoria das Idéias” deste filósofo grego. Por força do desejo de uma “segurança existencial”, este monismo da “natureza” também açambarcou e conteve a difusão do relativismo cultural sofístico.


23. A Aristóteles coube desenvolver uma “gramática” do pensamento, a Lógica, correspondente, em última instância, a este “sistema universal” platônico. Apesar de ser, somente na modernidade, um dos grandes responsáveis pela crise desta Lógica de fundamentos metafísicos, Immanuel Kant, nascido somente oito anos após a morte de Leibniz, escreverá:

(...) a Lógica não ganhou muito em conteúdo desde os tempos de Aristóteles e isso é uma coisa de que ela é por natureza incapaz. (...). Poucas ciências há capazes de atingir uma situação estável, onde não sofram mais alterações. Entre essas contam-se a Lógica e a Metafísica. Aristóteles não deixou de lado nenhum aspecto do entendimento; nisto somos apenas mais exatos, metódicos e ordenados. (...). Entre os filósofos modernos há dois que deram um impulso à Lógica geral, Leibniz e Wolff (19).

24. Leibniz se encontra, verdadeiramente, filiado a esta tradição. Não obstante a origem da crise metafísica date-se muito antes da contemporaneidade (já falamos aqui do “nominalismo” e do empirismo que, ainda na Idade Moderna, culminou com David Hume, coetâneo de Kant), somente no decorrer do século XIX foi ela denunciada com toda consciência, através, por exemplo, do pensamento de Friedrich Nietzsche.

25. Com isto, a Lógica voltou-se para a multiplicidade dos fatos, dos quais as Novas Ciências fizeram seus objetos e, em momentos de grande otimismo, creram tê-los reduzido a constantes (suas teorias), à luz das quais, por sua vez, desenvolviam os seus programas de intervenção no mundo. Neste sentido, o ideal do calculus ratiocinator leibniziano se torna atraente, se entendido – tomando as palavras de Gilbert Hottois – como o estabelecimento de “técnicas de raciocínio automatizáveis, mecanizáveis, por forma a poder substituir o pensamento, a intuição, por um cálculo sobre símbolos, mais seguro e mais rápido” (20).

26. Desta volta aos fatos do mundo, o Tractatus logico-philosophicus, obra de Ludwig Wittgenstein, foi a principal expressão deste movimento. Isto já nos fica suficientemente claro pelas quatro primeiras das sete proposições que o sustentam: “o mundo é tudo o que é o caso”; “o que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas”; “a figuração lógica dos fatos é o pensamento”; “o pensamento é a proposição com sentido” (21). Tornou-se, por isto, a “gramática” dos neo-empiristas ou neopositivistas, embora não ter o seu próprio autor tardado em colher os resultados maiores da crise metafísica contemporânea e em reconhecer os limites da resposta dada à mesma pela postura lógico-empirista.

27. Tal sensibilidade wittgensteiniana encontra-se melhor manifestada em outros textos seus, postumamente publicados sob o título Investigações filosóficas, particularmente quando elabora uma teoria do significado das proposições assentada no seu “uso”. Noutros termos, as “significações” são adquiridas precisamente pelo seu “treino”, “ensino” ou “uso” intensivo – estes são os termos que predominantemente o próprio Wittgenstein faz constar nesta sua obra. E os “jogos de linguagem”, dos quais podemos “usar” ou freqüentar ou perfazer ou partilhar, são tantos quantos grupos humanos existentes: “representar uma linguagem significa representar-se uma forma de vida” (22).

28. Diferentes desafios espácio-temporais que o mundo colocava aos grupos humanos redundaram em diferentes desafios de organização para sua sobrevivência que foram sendo respondidas em conformidade com as disposições disto que geralmente tomamos como o pensamento humano (respostas pretensamente universais a diferentes condições concretas de vida). Diferentes culturas humanas foram assim se constituindo e as diferentes manifestações e instituições sociais foram se sustentando umas pelas outras, capazes assim de se mostrarem como que uma só peça ou “continuum”, no esforço de um “melhor dos mundos possíveis” aos desafios enfrentados. Estes arranjos se confirmam nos adjetivos assumidos pelas diferentes sociologias ou antropologias: “dialética”, “evolucionista”, “funcionalista”, “estruturalista”...

29. Esses escopos sociais históricos podem ser chamados “naturais” se confrontados aos escopos sociais estritamente “teóricos”, que vão desde “a república” de Platão até o “modo de produção comunista” de Marx, mesmo que estes seus progenitores os pretendam “reais”.

30. Numa abordagem estritamente “simbólica”, o único efetivo é o que comportou (e comporta) o maior número de “compossíveis”... Isto poderia responder ao fenômeno político que assombrou Alexis de Tocqueville: um movimento universal a favor da “democracia”.

31. Assim também o “simbólico” é prospectivo ao “melhor dos mundos possíveis” e a uma “harmonia”, ainda que por antíteses e sínteses como propôs-nos Georg-Wilhelm Friedrich Hegel.

32. Não obstante todas essas representações, algumas mal disfarçam, como se vê, a sua disposição ou tendência ao “universal” e “natural”. Mesmo a lógica indutiva, tão mecanicamente aplicada no campo das ciências naturais, não passaria de um trânsito invertido de inferências dedutivas do mundo ou das leis da natureza que ao universo assegurariam ciclos constantes, breves ou longos (uma idéia incapaz de esconder o seu teor altamente metafísico). Lembremo-nos aqui de John Stuart Mill e de Pierre-Simon Laplace em duas de suas expressões mais consagradas, respectivamente: “que o curso da natureza é uniforme constitui o princípio fundamental, o axioma da indução” e que “um intelecto que (...) conhecesse todas as forças (...) e todas as posições de todos os itens dos quais a natureza é composta (...) compreenderia numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo”. Sem tais otimismos metafísicos (relativos à totalidade da existência), não se pode escapar às ofensivas já deixadas por David Hume e atualizadas por Karl Popper.

33. É tal disposição que a filosofia leibniziana assume, embora alguns possam chamar essa moderação de contradição. Antes que a criatividade humana possa elaborar sistemas formais e logísticos, por um lado, temos a intuição de estarmos mergulhados num dado “cosmos” e não num “caos” ou numa ordem apenas imaginária. E para que seja possível alinhavar vários “bolsões de sentido”, como é o caso, Leibniz naturalizou tal procedimento humano na figura de um Deus que, antes, assim procedeu. Vemos como que Deus diante de vários mundos possíveis, assim como o homem diante de vários sistemas logísticos. Dentre todos esses sistemas virtuais humanos, tendemos àquele que mais tem a capacidade de se e nos aproximar do “real”. E, para não nos tornarmos inócuos nessa tarefa, sendo vítimas de uma “ausência de princípio” ou de uma espécie de “regresso ao infinito” (tomemos, aqui, antes de tudo, as conseqüências existenciais ou práticas disso), o “real”, conforme a teoria do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz, é o mundo atual (o que comporta mais compossíveis), escolhido por Deus para ser criado dentre os vários outros (apenas virtuais), mas por ele igualmente contemplados, uma metafísica que não nos afasta da dita realidade, mas que, muito pelo contrário, nô-la avaliza e nos sustenta.

34. Longe, pois, das logísticas ou do simplesmente “virtual”, podemos agora compreender melhor as seguintes palavras de Maritain:

(...) a Lógica é uma arte feita para servir à inteligência e não para substituí-la: a Lógica formal deve ensinar modos de proceder que não acarretem perigo algum do lado da forma, isto é, da disposição dos termos, que não enganem a inteligência, com a condição de que esta faça obra de pensamento, com a condição de que o espírito se mova realmente; ela não tem como finalidade confiar-nos fórmulas que sejam suficientes a si próprias para se desenvolverem, uma máquina algorítmica que progride sozinha, permanecendo a inteligência em repouso ou exercendo influência só para vigiar a marcha (23).


Máquina de Calcular de Leibniz

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(*) Este artigo, publicado na Rhema (Revista de Filosofia e Teologia) com o título "Lógica e logística: possibilidade de uma distinção entre o real e o virtual", sofreu pequenas adaptações para sua publicação neste Blog.
(1) Neotomista, Jacques Maritain se filia à tradição aristotélica, assentada, por sua vez, numa lógica que só se justifica enquanto tem lastro com a metafísica. Particularmente no Brasil, a ele pertenceu, já no final da primeira metade do século XX, a autoria de uma das poucas obras de lógica aqui existentes. Tal constatação já era realçada em 1966 por um dos nossos maiores logicistas nos seguintes termos: “No ano de 1942 (...), era também publicada a Lógica Menor (...), de parte do extenso curso que Jacques Maritain desenvolvia na França, ainda agora um dos mais minuciosos tratamentos do silogismo de que dispomos. Desde então, praticamente mais nada saiu de nossas editoras (...).” (HEGENBERG, Leônidas. Lógica simbólica. São Paulo: Herder, 1966. p. XV).
(2) MARITAIN, Jacques. Elementos de filosofia II: a ordem dos conceitos – lógica menor (lógica formal). Tradução de Ilza das Neves e revisão de Adriano Kury. 10. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1983. p. 201.
(3) Idem. Elementos de filosofia I: introdução geral à filosofia. Tradução de Ilza das Neves e Heloíza de Oliveira Penteado; revisão de Irineu da Cruz Guimarães. 14. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1985. p. 107.
(4) Idem. Ibidem.
(5) Este traço de “moderação” do pensamento aristotélico-tomista constitui o principal marco de sua defesa na obra de Jacques Maritain contra as “deficiências” ou os “excessos” das demais filosofias, principalmente modernas e contemporâneas. Pensamos que este caráter “sintético” mas original da obra de Aristóteles e de Tomás de Aquino foi, por isto mesmo, recuperado e ainda mais sublinhado por Maritain nos dois primeiros terços do século XX, pois cumpre várias funções importantes, a saber: atualiza tal obra, compreendendo as questões das filosofias hodiernas como já pensadas por ela; apresenta, em contrapartida, as filosofias do nosso tempo como manifestações das correntes ou vertentes filosóficas do passado e já então devidamente combatidas por ela; assume-se como conciliadora dos extremos filosóficos de todos os tempos, reforçando-se a si própria como philosophia perennis. Enfim, além de moderar os debates entre os “realistas” e “nominalistas”, o pensamento aristotélico-tomista modera a relação, por exemplo, entre a Filosofia e as Ciências, extremadas por René Descartes e por Auguste Comte (p. 72 ), entre o senso comum e a Filosofia, extremadas pela “Escola Escocesa” e pela “Escola Racionalista e Criticista” (p. 90), entre o “mecanicismo” e o “dinamismo” (p. 111), entre o “sensualimo” e o “inatismo” (p. 115-116), entre as “tendências materialistas” e as “tendências idealistas” (p. 117), entre os “substancialistas” e os “fenomenistas” (p. 147), entre o “intelectualismo radical” e o “antiintelectualismo” (p. 159), etc. (Cf. Idem. Ibidem).
(6) Idem. Ibidem.
(7) Idem. Elementos de filosofia II: a ordem dos conceitos – lógica menor (lógica formal). p. 201, nota 6.
(8) Idem. Ibidem. p. 234-236.
(9) Idem. Ibidem. p. 247.
(10) Idem. Ibidem. p. 246-247.
(11) HOTTOIS, Gilbert. Pensar a lógica: uma introdução técnica e teórica à filosofia da lógica e da linguagem. Tradução de Miguel Mascarenhas. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. p. 19. (Coleção Pensamento e filosofia).
(12) MARITAIN, Jacques. Elementos de filosofia II: a ordem dos conceitos – lógica menor (lógica formal). Op. cit. p. 193.
(13) Idem. Ibidem. p. 122.
(14) Idem. Ibidem. p. 125.
(15) Ao prefaciar o seu Dicionário de lógica, Leônidas Hegenberg, embora claramente não acolha a divisão aqui proposta por Jacques Maritain, reconhece que também outros autores, como G. P. Baker e P. M. S. Hacker em “Frege: logical excavations” (1984), “fazem restrições a cálculos formais, asseverando que ‘têm reduzida importância filosófica e diminuto emprego em Filosofia. (...). Olham com desconfiança para a ‘Lógica dos lógicos’ (isto é, ‘dos matemáticos’) e pensam dedicar-se apenas à ‘verdadeira’ Lógica, uma disciplina que ‘fala’ aos seres humanos ‘normais’, que não exige ‘esforço inútil’, com ‘simbolismos que ninguém entende’, (...).” (HEGENBERG, Leônidas. Dicionário de lógica. São Paulo: E.P.U., 1995. p. V).
(16) IDE, Pascal. A arte de pensar. Tradução de Paulo Neves e revisão de tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 18.
(17) RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Tradução de Brenno Silveira. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1967. v. III. p. 107 e 117-119.
(18) Idem. Ibidem. p. 120-122.
(19) KANT, Immanuel. Lógica. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. p. 38.
(20) HOTTOIS, Gilbert. Pensar a lógica: uma introdução técnica e teórica à filosofia da lógica e da linguagem. Op. cit. p. 19.
(21) WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosphicus. Introdução de Bertrand Russell; tradução, apresentação e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1994. p. 135, 147, 164.
(22) Idem. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 15. (Coleção os pensadores: Wittgenstein / Moore).
(23) MARITAIN, Jacques. Elementos de filosofia II: a ordem dos conceitos – lógica menor (lógica formal). Op. cit. p. 257.

25 de jan. de 2012

TEXTO XXII: Esboço do nosso Tempo


Rodrigo Rodrigues Alvim

Em apreço às pesquisas e estudos de Altamir C. de Andrade.

01. Há qualquer coisa na pós-modernidade de muito tradicional. Não falo de um aspecto seu ao qual podemos dar pouca relevância, mas quero dizer de um de seus aspectos considerados mais distintivos.

02. Não são mais somente as mãos dos evangelistas que não são mais que mãos da vontade divina. Toda mão de escritor passou a ser, em última instância, apenas mão de um entrecruzamento polissêmico de seu contexto. Ver a “sua” obra como outro à medida que vai lendo o que se escreveu é, certamente, um estranhamento que impressiona: ser já intérprete (sem que disso comumente se perceba), a cada “correção” que se faz (por mais sutil que pareça), do que primeiramente se escreveu (assim para sempre perdido) e, quiçá, em seguida, ser também simples leitor-intérprete dessa primeira “correção” (e de tantas outras mais) deixa-nos já entrever a noção de “obra aberta” e interminável (sem início e sem fim, senão ilusórios), denunciando, surpreendentemente, o quanto nunca houve o que poderíamos chamar de “primeira mão” ou de “ponto final” em qualquer texto – num constantemente “em meios”, sem extremos.

03. “De quem é o texto?” é uma pergunta que nos permite disfarçar essa nossa movediça situação.

04. Autor, auctoritas ou autoridade é aquele para o qual nos dirigimos na condição de escuta (na condição de seus leitores). No caso do texto, não é a mão que se emprestou para escrevê-lo, mas o próprio texto “publicado”, ou melhor, o próprio texto ao qual se pode ir: o texto partilhado. Mutatis mutandi, não nos importa realmente aqui o evangelista, mas a palavra deixada. O sentido está no texto e não com o seu escritor (a bem da verdade, apenas, agora, mais um leitor em potencial). Um texto é a suprassunção de um contexto que também assim se manifesta. Seu escritor, em tal contexto, foi apenas a oportunidade de tal realização. Foi um meio inconsciente para tanto, mesmo quando se pensava plenamente consciente do que escrevia e detentor da situação: tanto mais se pensa assim, menos assim se é – parecido com um determinado italiano que pensa que foi ele quem decidiu tomar uma taça de vinho.

05. O sentido está no texto. Se resta alguma dúvida, retorna-se ao texto. Contudo, sem um leitor, o sentido não se depreende e é como se não existisse. Assim, um texto está para um leitor, assim como um leitor está para um texto. Rigorosamente, nenhum subsiste sem o outro.

06. Não é preciso hipostasiar o sentido, ao modo de Plotino: em Deus, à maneira da maioria das religiões; em Leis da Natureza, à forma da ciência moderna; em um Eu Transcendental, à espécie de Kant; ou em tantos outros equivalentes. Pode-se assim fazer – e geralmente é o que acontece –, porém não é necessário. Se se busca um sentido é porque nele se crê ou por ele se espera. É, pois, secundário (exceto para quem já crê) se tal sentido existe verdadeiramente assim ou diferentemente. Ele já está pressuposto em qualquer relação que o homem estabelece ou estabeleça – na “intencionalidade” própria do humano.

07. Esboço é um termo do grego, σχέδιος, que cabe bem a tudo o que existe (e, portanto, a nós mesmos), pois significa precisamente "temporário". Como bem observaram Heidegger e Bergson, cada qual certamente ao seu modo, não somos no tempo, mas somos tempo: e, entre esse primeiro modo de dizer e o segundo, há uma grande diferença. Esboços! É tudo o que existe! E ainda que tal denominação possa ainda alimentar em nós a expectativa do definitivo, não há perfeição, na pós-modernidade, que ainda não possa ser aperfeiçoada: rascunho.

20 de jan. de 2012

TEXTO XXI: Repente para Pensar III: Loucura

Rodrigo Rodrigues Alvim

Do meu encontro com Altamir Andrade (teólogo e filósofo), Márcio Alvim (físico), Marcos Gonzaga (artista plástico) e Marina Tavares (enfermeira).

01. Quando escrevi “Sobre Estamira” (Texto XX, dentro da categoria "Antropologia Filosófica", neste mesmo Blog), iniciei o texto com uma citação de Friedrich Nietzsche. Não por acaso, mas alguém poderia dizer que hoje se toma este filósofo por motivos tão díspares entre si e, muitas vezes (o que talvez seja pior), tão distantes do que os mais renomados estudiosos de sua obra entendem ser os reais motivos desse pensador, que isso também caberia ao meu caso. No entanto, não estava escrevendo uma tese, na qual tal relação fosse importante defender e, menos ainda, não sou um especialista em Nietzsche para que pudesse participar de um bom debate acadêmico a esse respeito.



02. É, pois, nesse espírito de liberdade (demais para alguns, mas – por Deus! – estamos num Blog), que eu chamei à cena esse filósofo. E, agora (para descabelamento ainda maior desses mesmos), chamo igualmente ao centro das minhas elucubrações Vincent Van Gogh. O que têm eles em comum? Poderia eu dizer que eles foram coetâneos: Nietzsche viveu entre 1844 e 1900; Van Gogh, entre 1853 e 1890. Porém, o que me interessa é que ambos morreram em estado de “loucura”, como o de Estamira.



03. “Estamira” é um assunto que nos toca de perto, pois ainda que solitários fôssemos, somos seres expressivos. Ou seja: somos seres expressivos, antes mesmos de pretendermos nos comunicar (uma das funções da linguagem, hoje em destaque, mas, como se vê, apenas uma dentre outras). Se estou triste, meu semblante pode expressar esse meu sentimento, sem nenhuma intenção de comunicá-lo à outrem. Aliás, às vezes, expressões podem contrariar o que queremos comunicar, tal como o “sorriso amarelo”. Contudo, efetivamente somos seres gregários e isso nos impõe uma existência que depende da confirmação de si mesma por outras existências humanas. Assim, esforçamo-nos para como que sairmos de nós próprios e nos darmos aos outros. É uma peleja, pois se é certo que nos expressemos, agora e muitas vezes mais, para nos comunicar aos outros, não é tão certo que realmente consigamos nos comunicar aos outros. Há muita significação, mas não há como certificarmo-nos de que a codificação e a decodificação são afins, pois isso implicaria outras codificações e decodificações mais. Talvez, por isso, confessamo-nos ao melhor amigo, mas, mesmo assim, continuamos com aquela sensação de que, apesar de todo empenho de todas as partes (minha e do meu amigo), ele ainda não me compreendeu fidedignamente. Afinal, embora eu seja eu mesmo, sinto-me embaraçado também diante da pergunta “quem sou eu?”. A peleja é de todos e a maioria, de alguma forma, tem a impressão de ser compreendido – ainda que sem garantias. Essa maioria consegue sentir-se sintonizada nesse código pretensamente padrão a que chamamos “sociedade”, pelo qual a singularidade propriamente dita se perde. Do contrário, são singularidades “brutas”, “in-compreendidas”, a quem denunciamos como “anormais” ou vítimas da loucura.

04. Poderíamos dizer que essas minhas palavras não são adequadas a Nietzsche, a Van Gogh e nem mesmo a Estamira, pois todos eles são ou foram vítimas de uma loucura de causa psico-fisiológica (o que, ao que parece, não é o caso descrito acima, que eu poderia denominar “existencial”). Isto é verdade, mas nem tudo termina aqui.

05. No caso de Nietzsche, segundo Christoph Türcke em sua obra “O louco – Nietzsche e a mania da razão”, para a loucura desse filósofo não se encontrou explicação médica ou psicológica, pelo menos não de forma suficiente:

Já se levantaram as mais diversas hipóteses sem se conseguir qualquer prova: amolecimento cerebral herdado do pai, lesão cerebral como consequência de sífilis ou consumo de drogas, uma forma rara e extrema de epilepsia, trauma quando da ruptura de amizade com Wagner, ou simplesmente psicose maníaco-depressiva.

06. Basicamente, foram as mesmas hipóteses levantadas em relação a Van Gogh por Paul Gachet, por Dietrich Blumer, por Karl Jaspers, por Paul L. Wolf e por Kay Redfield Jamison, dentre outros. E se Nietzsche teve um Richard Wagner em sua vida, este fica representado à altura por um Paul Gauguin na vida de Van Gogh. (Estou sabendo que o meu amigo Marcos Vinícius Leite está para romper comigo a qualquer hora!).

07. Parece-me, todavia, que importa a Türcke não negar aspectos fisiológicos do processo de enlouquecimento de Nietzsche, mas precisamente mostrar o quanto esse mesmo enlouquecimento está entrelaçado com o seu pensamento filosófico. Nesse aspecto, Türcke ressaltou palavras do filósofo em que este último parece ter consciência do quanto estão estreitadas a sua frágil saúde mental com a sua filosofia. Escreveu Nietzsche em “Crepúsculo dos ídolos”:

Este rapaz está ficando prematuramente pálido e sem vitalidade. Seus amigos dizem: a culpa é desta e daquela doença. Eu digo: que ele tenha ficado doente, que ele não tenha resistido à doença, foi já a consequência de uma vida empobrecida [vida empobrecida: “a morte de Deus”, o fim da metafísica: “Desaparece então toda verdade objetiva, na qual o intelecto humano poderia agarrar-se para fazer face à instabilidade da labuta cotidiana e a alma poderia encontrar repouso.” (Türcke).].

08. Escreve Nietzsche também em “Ecce homo”:

Se é que se tem de alegar alguma coisa contra a doença, contra a fraqueza, isto consiste no fato de que neste estado acaba se apagando no homem o próprio instinto de cura, ou seja, o instinto de defesa e de arma. Não se sabe desembaraçar-se de nada, não se sabe levar a cabo nada, repelir nada – tudo fere. Pessoa e coisa se envolvem demais, as vivências tocam por demais profundamente, a recordação é uma ferida purulenta. Estar doente é uma espécie mesma de ressentimento, [pois] nada consome mais depressa a gente do que o ressentimento [ressentimento: negação ou inversão dos valores, do que já está posto].

09. Como Nietzsche tem lucidez trágica de sua loucura, também Van Gogh a tem da sua, bem expressa, neste caso, em sua repulsa em viver, conforme a sua biografia por Ingo Walther, com os outros doentes mentais de hospitais psiquiátricos. É bem ver o mundo por cores ainda difíceis de comunicar para ser bem compreendido, sensação que o “Louco” da "Gaia ciência", de Nietzsche, em sua solitária constatação, balbuciou:

Venho cedo demais, ainda não é meu tempo. Esse acontecimento monstruoso está em curso e não chegou aos ouvidos dos homens.





Ao lado, um dos mais famosos quadros de Van Gogh: Noite Estrelada (Starry Night)



10. Por um poema cantado, talvez finalizemos melhor o que Van Gogh e Nietzsche viveram. Se daí vier alguma emoção é porque tivemos, penso eu, por um lapso que seja, a capacidade de revisitar a instância de nós mesmos da qual parece que não há como sair: como pode tanta confusão e loucura em tão clara luz?

Abaixo, AUDIOVISUAL
(Vincent, música, letra e interpretação de Don McLean):




7 de jan. de 2012

TEXTO XX: Sobre Estamira

Rodrigo Rodrigues Alvim

(O texto que ora lhes apresento foi elaborado depois que eu assisti ao filme-documentário "Estamira", de Marcos Prado, lançado em 2006, que encontra-se disponível no site www.estamira.com.br).





E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. (FRIEDRICH NIETZSCHE)




01. Ao dispormos letras, articulamo-las a partir de algo maior: as palavras, desde antes já em nós compostas, que agora “pré-tendemos” expor.

02. Ao dispormos palavras, articulamo-las a partir de algo maior: as sentenças, desde antes já em nós compostas, que agora “pré-tendemos” expor.

03. Ao dispormos sentenças, articulamo-las a partir de algo maior que nos ocorre por inteiro em nossas mentes e que agora “pré-tendemos” expor.

04. Toda essa trama de letras, palavras, sentenças redunda em texto, obra de um tipo de tecelão, o qual comumente chamamos de escritor...

05. Quando acolhemos palavras, sentenças, textos a nós expostos, “pré-tendemos”, por meio deles, alcançar este algo maior, o sentido que lhes dá unidade e compreensão, esforçando-nos, assim, enquanto seus leitores, para não perdermos o “fio da meada” e, então, tudo perder...

06. Alguém já comparou o próprio mundo a um grande livro aberto à nossa leitura, embora, inadvertidamente, tenha-o reduzido a caracteres apenas matemáticos...

07. Quanto tanto mais não conseguimos relacionar umas coisas e outras do que alguém nos diz, tanto menos reconhecemos compreendê-lo, tanto menos nos têm sentido as suas palavras. Logo, o sentido que nos permite (bem) compreender é pretensamente universal, porquanto como que perpassa e alinhava numa unidade a multiplicidade do dito, das coisas expressas e trançadas, das coisas manifestas... Tal universalidade do sentido faz deste inequivocamente uma questão para a filosofia.

08. Esta “tendência” ao universal, a algo sempre maior, observa-se em cada um de nós quando distraímo-nos que o sentido da nossa vida se inscreve, antes, como o sentido da própria vida. Mesmo a ênfase do humano como “ser em situação” em detrimento do universal simultânea e paradoxalmente sublinha o inteiro somente a partir do qual se pode rigorosamente compreendê-lo situado.

09. Devo compreender-me, pois e por exemplo, dentro do contexto do qual faço parte, bem como compreender o meu contexto dentro do contexto maior do qual o primeiro faz parte, que, não menos, faz parte de um contexto maior – e assim por diante. E tanto mais adiante, talvez eu melhor, enfim, compreenda-me a mim mesmo.

10. Os contextos mais proximamente de nós (nos quais estamos, pois, inseridos) e tanto mais proximamente de nós podemos chamá-los de “bolsões de sentido”. Aí mergulhados, por eles nos compreendemos a nós mesmos e nos aventuramos a dizer de tudo mais. Ressalta-se que à luz de tais compreensões se desenvolvem igualmente todas as nossas ações num continuum agregador de nosso indiviso social, a que comumente chamamos de responsabilidade, e que se articula dentro da dinâmica dos papéis reificados na unidade social, algo maior do qual nos sentimos partícipes.

11. Sendo propositalmente cheio de redundâncias, mas respeitando uma das mais antigas imagens com a qual a nossa cultura se elucida, podemos dizer que à luz de tal luz esclarecemos o mundo onde tudo é muito claramente iluminação. Se a isto associamos, como o dissemos outrora, que, quando alguém nos “dis-corre” palavras, sentenças e raciocínios, “pré-tendemos” por estes alcançar o sentido aí “pré-tensamente” veiculado e que lhes dá a sua unidade e compreensão, então deparamo-nos com o evento de que somente nos aparece lúcido o que se arranja às nossas “pré-compreensões”, fazendo-nos deixar todo o resto no “limbo” do sem sentido e da loucura.

12. É, pois, a captura dessa inevitabilidade de nossa “pré-situação” (e “pré-compreensão” ontológica ou existencial, como queiram!) que nos mergulha e nos emerge ao risco permanente do equívoco de somente tomar como lúcido o que está para dentro dos nossos “bolsões de sentido” e suspeitar de que o “sem sentido” pode não passar de somente um “sentido outro ou diferente” de um “bolsão” do qual não fazemos parte.

13. Não há dúvida de que toda e qualquer compreensão só se pode fazer tanto e mais os interlocutores, emissor e receptor, remetente e destinatário, “com-partilham” de um mesmo “bolsão de sentido”.

14. A circularidade compreensiva aqui se nos mostra do seguinte modo: por um lado, quanto mais participamos de um mesmo “bolsão de sentido”, universal relativamente a cada um de nós, tanto mais podemos nos sentir “comum-unidade”, mesmo na paradoxal compreensão de nossos dissensos (pois estes assim se definem pelo prévio consenso de nossa igual e “artificiosa” “pré-compreensão”, ou seja, é o singular universal que ratifica as singularidades individuais); por outro lado, tanto mais nos “compreendemos” e assim nos “con-firmamos”, tanto mais corrigimos e assim corroboramos o “bolsão de sentido” ou “unidade-comum” “pré-compreensiva” que somos (ou seja, são as singularidades individuais que ratificam o singular universal).

15. Conseqüentemente, à medida que escapamos aos “bolsões de sentido” amplamente partilhados, tanto menos somos rigorosamente “compreendidos” por outrem. E quanto menos ecoamos em outrem tanto menos podemos nos compreender a nós mesmos e nos sentimos, enfim, vítimas de grande confusão e “in-compreensão”.

16. Contudo, a ruptura de nossos “bolsões de sentido” comumente se dá em momentos pungentes de nossas vidas, quando já os “des-cobrimos” artifícios, artifícios então incapazes de lhes “dar sentido” (e eles não são senão por isso). Incapazes de “assimilar” experiências pungentes de nossas vidas, constatamo-nos “in-compreedidos” e, assim, “ab-solutos”, isto é, completamente sós ou emocionalmente abandonados. Na negação da “pré-compreensão” originante e a partir da qual nos vemos, enfim, compreendidos, rupturas de nossos “bolsões de sentido” nos lançam na solidão de se compreender tudo absolutamente, sem que nada possa nos “com-firmar” ou “des-abonar”.

17. Dizem muitos filósofos que o homem tem essa estranha capacidade de sair de si – por isso ele existe onde tudo o mais simplesmente é. Ele se compreende “pré-compreendido” porque misteriosamente saiu de si. Costumo me perguntar: mergulhado na natureza ou, melhor, constitutivo da natureza, como pode o homem se ver diante de, diante dela, diante de si mesmo? Como se pode tal dobra? Logo, “pré-compreendido”, o homem é, ao mesmo tempo, “in-compreendido”. Todo o seu esforço então se dá no sentido de como um que voltar para casa, para a sua “pré-compreensão”. Eis a delicadeza de toda a nossa manobra existencial, pois estamos por um triz e tudo pode como que falhar. Podemos definitivamente cair nessa nossa “in-compreensão”, neste vácuo existencial. Nosso “lugar” é, para nós, já originalmente pela negativa, por isso mesmo é “para-nós” e não “em-si”... Mas o queremos recuperar – e a nossa vida não passa de sempre tentativas, com maior ou menor sucesso, porém nunca definitivamente cumprida, pelo que nos negaríamos precisamente nesta “tensão” que nos faz ser como somos: esta tensão!

18. Como posso então compreender “Estamira”, se não estamos em mesmos “bolsões de sentido”? Como posso compreender “Estamira”, se ela se encontra em “bolsões de sentido” somente dela? Como dizer que aqui ela se faz lúcida às vezes, nesta ou naquela parte ainda, se tudo não passará de uma justificação a partir dos “bolsões de sentido” nos quais estou mergulhado?

19. “Estamira” me olha e eu apenas lhe devolvo o olhar.

6 de jan. de 2012

TEXTO XIX: Sobre a Tolerância Cristã

Rodrigo Rodrigues Alvim

A tolerância
a respeito dos que têm opiniões religiosas diferentes
é tão conforme com o Evangelho e com a razão
que parece monstruoso
haver homens afetados de cegueira
numa tão clara luz.
[JOHN LOCKE] (2).

01. O que aqui se oferecerá (1) é uma das múltiplas refrações que se manifestou no decorrer do desenvolvimento de um trabalho que pretendia esclarecer a confluência da razão moderna e da religião cristã no firmamento da atitude tolerante, dentro dos limites do pensamento de John Locke (3).

02. Como refração, não se pôde ter a pretensão de desenvolvê-la naquela oportunidade, o que a manteve dentro dos contornos de um mero agregado, de um simples “apêndice” ao que visávamos primeira e continuamente considerar naquele momento. Tratou-se, então, em seus contornos próprios, de se pensar a plausibilidade da tolerância como adequado critério de decisão pela verdadeira religião.

03. A fértil sugestão foi-nos deixada pelo próprio John Locke ao redigir as primeiras linhas de sua Carta sobre a tolerância, não obstante pareça-nos que nem ele mesmo tenha se dado conta da dimensão do seu significado. Segundo ele, é dentro da moralidade calcada na vida de Jesus, a quem recuperará, nessa sua obra, o devido título de "Príncipe da Paz" (4), que a atitude tolerante despontará como o mais alto preceito, a fim de se tornar "o principal critério da verdadeira Igreja" (5):

Se é necessário acreditar no Evangelho, nos Apóstolos, ninguém pode ser cristão sem a caridade, sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor (6).

04. Impõe-nos advertir que o imperativo de realização de tal tolerância cristã, para o pensador inglês, não se circunscreve, todavia, se verdadeira, àquela atitude que um cristão possui somente para com alguém que participa de sua mesma comunidade de fé, mas, além disso, deve igual e necessariamente se dirigir destes àqueles que porventura abracem distintas religiões. Logo, sem a caridade, sem a mansidão e sem a benevolência para com todos os homens em geral, ainda não se é cristão (7). Na passiva, conforme várias passagens do Evangelho, afirma Locke que os verdadeiros cristãos devem sofrer as mais graves perseguições e renunciar à vingança "setenta vezes sete", isto é, sempre (8); na ativa, que os verdadeiros cristãos "a todos devem exortar à caridade, à mansidão e à tolerância" (9).

05. Esta sugestão do filósofo enriquece-se ainda mais caso a esbocemos sobre o pano de fundo do pensamento geral ventilado nos tempos de Locke, o que faremos muito brevemente, a fim de apenas consolidar melhor a viabilidade desta proposta e mapear o itinerário dessa incursão filosófica que poderá ser trilhada ulteriormente, quando maiores forem os recursos apropriados para tanto.

06. Devemos, então, relembrar que havia uma idéia muito corrente entre os filósofos da modernidade clássica, segundo a qual vivemos no melhor dos mundos possíveis. Por sua propriedade inegavelmente metafísica, conseguiu ela ecoar sobremaneira nas mentes dos intelectualistas e fideístas, muito pouco ocupando o tempo dos céticos e empiristas.

07. Sua origem retroage à época dos teólogos medievais cristãos, que a deduziram da perfeição do Criador: sendo este perfeito, o mundo por ele feito também o deveria ser maximamente ao que se poderia destinar à sua condição de criatura. Por esta distinção ontológica entre o Criador e a sua obra, esta não é, pois, sumamente perfeita, sem o que se confundiria com o seu próprio Criador. No entanto, é ela o melhor dos mundos possíveis. Como autoridade, Agostinho é o arauto desse pensamento no medievo.

08. Nos primeiros séculos da era moderna, René Descartes adotou tal idéia. Aliás, a ela recorreu veementemente para justificar os próprios males que assistimos neste mesmo mundo, o melhor e, por isto, o existente e verdadeiro. Tal mundo é, em seu conjunto, o mais perfeito possível. Por conseguinte, todo mal particular é o menor na sua contribuição para um bem maior.

09. Gottfried Wilhelm Leibniz, entretanto, foi quem mais se dedicou à fundamentação metafísica desta idéia. Como grande logicista e matemático, partiu da idéia de que o bem pensar equivale ao que verdadeiramente é, concebendo o mundo, assim, como um grande sistema, onde cada parte tem a sua inteligibilidade pelo todo: o mundo seria como que uma harmonia já preestabelecida por Deus e, por isso, a mais alta especulação metafísica não pode ser denunciada vã como queriam os que temiam tirar a sua atenção dos dados empíricos, sempre particulares.

10. Logo, o ato da criação implicou a escolha dentre vários mundos potenciais, sendo este, no qual vivemos, o único atualizado por atender mais plenamente o critério divino: comportar o maior número de realidades possíveis, de compossíveis(10). Noutras palavras, a vida, a vida em abundância é o mais universal critério de decisão.

11. O mundo que se constituía de um maior número de realidades passíveis de coexistência, este era o mundo mais perfeito e digno de vir a ser. Ou seja, o verdadeiro e real seria como que o mais tolerante, o mais "compossível", termo que já traz consigo a importante noção da mutualidade e reciprocidade pacíficas.

12. John Locke, embora de tradição empirista, não deixou de embeber-se desta noção. Sua radical redefinição da razão, bem nô-lo demonstra, pois o que é ela senão, sucintamente, o "acordo ou desacordo" entre as partes?

[Ela] consiste em nada mais que a percepção da conexão que existe entre as idéias, em cada passo da dedução; por meio dela a mente chega a ver, quer o evidente acordo ou desacordo de duas idéias quaisquer, como na demonstração, na qual alcança o conhecimento; quer sua provável conexão, para a qual dá ou recusa seu assentimento, como na opinião (11).

13. Então, exemplificando, qual a exegese cristã propriamente racional senão aquela que se apresenta a mais capaz de concordar - fazendo então "compossíveis" - um maior número de partes bíblicas? Qual, senão aquela que mais tolera? (12).

14. Não obstante suas grandes diferenças com Leibniz, Locke nunca deixou de trabalhar, como este filósofo germânico, a favor da paz. E ao admitir a tolerância como o principal critério da verdadeira igreja, permite-nos perguntar se a verdadeira religião não seria aquela capaz de conviver com o maior número possível de religiões outras, de tolerá-las. Às vezes isto nem mesmo condiga com uma coexistência mecânica (ou por justaposição), mas com algo muito próximo daquilo que George-Wilhelm Friedrich Hegel chamou de suprassunção(13). Enfim, quanto mais intolerante uma religião, tanto mais inadequada ela é a um número maior de outras religiões.

15. Devemos nos perguntar, é claro, se tal critério não é ele mesmo intolerante, ao que responderíamos que a própria tolerância possui um limite intrínseco e insuperável, a saber, se se tolera o intolerante, trabalha-se a favor da intolerância; se não se o tolera, é-se intolerante. Conseqüentemente, nem mesmo a tolerância por excelência pode tudo tolerar, mas tão-somente tolerar o maior número possível.

* * *

16. Cabe-nos suspeitar se o critério de tolerância que se traduz em suprassunção, ainda que não o queiramos adotar como critério de decisão pela verdadeira religião, não se realiza independentemente de nossa vontade na história, sendo o índice de tolerância de uma religião a sua propensão à interação com as diversidades e adversidades, nisto residindo a sua sobrevida. Tal fôlego, podemos encontrá-lo no cristianismo, em sua história e em seu cerne, o amor, o que permitiu a Locke nele acreditar como a verdadeira religião e a dedicar-se aos seus preceitos revelados na Bíblia como em conformidade com a razão.

* * *

17. Enfim, apenas alguns dados acerca desta essência do cristianismo - o amor ou a tolerância - e de sua repercussão na história.

18. Se a insistência no amor ao próximo, fosse este escravo ou estrangeiro, é o cerne da boa nova proclamada por Jesus de Nazaré... Se o apelo deste carpinteiro residiu num amor que deveria recair, antes de tudo, sobre os “menores” da comunidade humana - pobres, mulheres, crianças – (14); se devemos, consoante o seu preceito, combater o mal, mas orar pelo inimigo: se é este o cerne da revolução promovida por Jesus e difundida pelos seus seguidores num tempo de dominação estrangeira e de extremas penúrias, mas capaz de, talvez por isto mesmo, arrebatar a tantos por todo o mundo ora conhecido, então não há como duvidar que a tolerância pode inclusive ser entendida como um retrocesso em comparação ao amor.

19. O amor acolhe o que a tolerância apenas deixa estar. Quiçá seja o amor radical apenas conforme ao divino ou ao homem que conseguir ultrapassar-se. Quiçá seja a tolerância uma atitude mais conforme as capacidades extremas de nossas condições atuais. Não nos pode a imaginação nos figurar o apóstolo Paulo de Tarso, cansado de tantas cartas sobre o amor e a caridade endereçadas às comunidades que se querem cristãs, mas que não conseguem dirimir as recorrentes artimanhas e intrigas no seu seio? Afinal, se é precipitado exigir que se acolham, que, pelo menos, se suportem. Não será a tolerância o melhor revés secular do amor sagrado?


20. Caso seja realmente o amor o cerne do verdadeiro cristianismo, quem poderá duvidar de que não é mesmo a tolerância o seu melhor correlato num mundo que se laiciza crescentemente? Pois se o amor é carregado dessa religiosidade cristã, de sentimentos, porque é ele verdadeiramente um sentimento, não será a tolerância o amor travestido de uma razão capaz de manter a existência do maior número possível de diversidades, promovendo, deste seu modo, a vida em abundância?

21. Entretanto, a tolerância mútua só pode ter seus alicerces na admissão de que todos são por princípio iguais e assim nascem, o que foge completamente ao que se apreende cotidianamente. Pode-se exclamar que os homens nascem iguais em dignidade, ao que não tardará a interpelação: Que dignidade? Qual o amparo desse valor tão abstrato, se em todo lugar entre os seres humanos só se vê diferenças desde o berço? Já aí não se poderá mais uma vez fugir do reconhecimento de que

A idéia [de igualdade] é de origem cristã (todas as almas têm a mesma dignidade, visto que todas, criadas por um mesmo Deus, foram remidas pelo sangue de Jesus Cristo). Ela é retomada sob uma forma tornada laicizante pela Revolução Francesa. A Declaração dos Direitos do Homem proclama que “todos os homens nascem iguais em direitos” (15).

22. Logo, embora a sociedade ocidental em secularização tenda, por este seu próprio movimento, repudiar e esquecer a sua dívida para com a religião cristã, este seu ato não somente é injusto com o seu passado, mas também com o seu próprio presente ainda radicado em valores religiosos cristãos, pois é dessa igualdade de filhos de um mesmo Pai, do qual somos todos à imagem e semelhança, que surge a liberdade, este outro valor do trinômio democrático francês, no qual todas as nações que se pretendem modernas se espelham. Quanto à sombra cristã da noção carregada pelo nome fraternidade, ela é tão óbvia que dispensa qualquer comentário em sua defesa.

23. São apenas algumas coletâneas de dados bem encadeados para entrevermos que o cristianismo, por ter em seu cerne o espírito de tolerância, historicamente elevado à sua consciência, mantém-se e manter-se-á quanto e tanto mais tolerante conseguir ser. É lúcido que isto lhe exige constantes mudanças, mas é por isto mesmo que o seu cerne e espírito tendem a perenizar-se: o amor ou a tolerância. Se o cristianismo não é dentre as religiões a que mais cresce atualmente, não o deixa de compensar sorrateiramente em seu viés secular, na própria ocidentalização do oriente. Afinal, consoante a noção de suprassunção hegeliana, tem-se que se perder para ganhar - laicização, possivelmente, da semente que tem que morrer para produzir frutos, segundo os termos de Jesus de Nazaré. Quem sabe assim o cristianismo institucional também se comprometa para definitivamente se radicar e se espraiar em toda a tessitura do mundo?

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(1) Artigo publicado na Rhema - Revista de Filosofia e Teologia - com o mesmo título.
(2) LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Tradução de João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 91.
(3) Dissertação de mestrado do autor, titulada A tolerância como confluência da racionalidade moderna e da religião cristã no pensamento de John Locke e defendida no início do ano de 2001, que pode ser encontrada nos arquivos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião do Departamento de Ciência da Religião do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais.
(4) LOCKE. Op. cit. p. 91.
(5) Destaques nossos. Ibidem, p. 89.
(6) Ibidem.
(7) Cf. ibidem.
(8) Cf. ibidem, p. 96 e 100.
(9) Ibidem, p. 100.
(10) Para se adquirir um comentário mais largo e rigoroso da idéia leibniziana de compossível, pode-se fazê-lo inicialmente através das notas afins do filósofo, matemático e logicista inglês Bertrand Russell (RUSSELL, Bertrand. Leibniz. In: História da filosofia ocidental. Tradução de Brenno Silveira. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1967, v. 3, p.).
(11) Ibidem, p. 297. Por este modo de trazer à razão a "disciplina do crer" ou, mais amplamente, todas as questões humanas, para muito além, portanto, do campo das matemáticas e das ciências naturais, estudiosos como Nicola Abbagnano interpretam este uso lockeano da razão como uma "reforma radical" do seu conceito (ABBAGNANO, Nicola. Locke. In: __________. História da filosofia. Tradução de António Ramos Rosa e António Borges Coelho. 2. ed. Lisboa: Presença, 1978, v. 7, p. 80).
(12) Tal critério racional de John Locke não pode deixar de se expressar no próprio mundo ou natureza, pois, apesar deste filósofo não se demorar em tais questões metafísicas, não evitou sustentar que a vontade de Deus se expressa em sua criação, nas leis da natureza, capazes de se deixarem apreender pela reta razão humana.
(13) Perpassado pelas obras de Hegel, pode-se abstrair três sentidos básicos no seu uso do termo suprassunção, aparentemente excludentes, mas, ao modo dialético do próprio, filósofo, concludentes enfim, o que se ressalta quando como que, pela “interpenetração dos contrários”, uma síntese acontece, num “superar no sentido de que é ao mesmo tempo o “tirar-e-conservar” (REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia. Tradução de Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1991, v. 3, p. 107), expressão contraditória que se usa para bem expressar o significado hegeliano mais maduro e original de suprassumir (aufheben). Quanto aos seus três sentidos, dados analiticamente, isto é, em separado e sem movimento, são eles: 1) “levantar, sustentar, erguer”; 2) “anular, abolir, destruir, revogar, cancelar, suspender”; 3) “conservar, poupar, preservar” (MICHAEL, Inwood. Dicionário Hegel. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 302). Caso se queira um estudo mais exaustivo do conceito, deve-se seguir na leitura das páginas sucessivas).
(14) Esclarece Kenneth Minogue: "A religião e a filosofia de gregos e romanos eram, devemos lembrar, altamente elitistas. A plena humanidade só era possível ao herói ou ao filósofo, ao passo que os escravos e em certa medida as mulheres constituíam espécimes inferiores de um ideal. O cristianismo muitas vezes reverteu esse juízo: os humildes é que estavam mais próximos do espírito amoroso que se supunha exigido por Deus. Isso incluía particularmente as mulheres, que ficaram entusiasmadas com uma fé que pregava a paz e o amor" (MINOGUE, Kenneth. Política: uma brevíssima introdução. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 43).
(15) HUISMAN, Denis, VERGEZ, André. Compêndio moderno de filosofia: a ação. Tradução de Lélia de Almeida Gonzalez. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982, v. 1, p. 251.