Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





28 de fev. de 2012

TEXTO XXVI: Pelos Olhos de um Jovem Teólogo: Dietrich Bonhoeffer


Rodrigo Rodrigues Alvim


01. O que ora escrevo foi-me inspirado pelo artigo de um amigo meu, Altamir C. de Andrade, sob o título “Alguns Desanimados na Bíblia”. Como se poderá facilmente comprovar, minhas considerações são uma tangência, ou seja, em nenhum momento o autor do artigo que me inspirou fez qualquer menção, direta ou indireta, relativamente ao que aqui considero. Não responde, certamente, pelo que imponderavelmente possa ocorrer na mente de um leitor qualquer como eu, intrometido em assuntos de teólogos. Enquanto ele nos apresenta um artigo de cuidado exegético, ver-se-á que eu apresento, apenas e muito brevemente, um “repente”.

02. O artigo ao qual me refiro tem seus dois parágrafos conclusivos apresentados no blogMeus Rascunhus” (altamirandrade.blogspot.com), mas, integralmente (como aí já também se diz), pode ser encontrado na Rhema – Revista de Filosofia e Teologia, Juiz de Fora, v. 10, n. 33, p. 79-86, jan./abr. 2004. ISSN 1516-3954.

03. Em 1995, Richard Elliott Friedman, publicou “The disappearance of God: a divine mystery” (o desaparecimento de Deus, um mistério divino) (1). Friedman é teólogo e professor como Altamir e, no primeiro terço do seu livro, deseja nos fazer observar que no decorrer dos próprios textos bíblicos, Deus vai deixando de se manifestar, não somente pelo quantitatis prospectu, mas também pela perspectiva qualita. Se atentos, um incômodo já deveria se fazer, quando se entende que fazer teologia implica fé e, geralmente, fé na existência de um Deus que se revela e não escondido (ao modo raro dos que defenderam a sua radical transcendência e inacessibilidade à condição humana). E dos poucos que defendem o “Deus Absconditus” à miserabilidade humana, parte significativa, por isso mesmo, justifica a necessidade da revelação divina ao homem, reforçando-a, pois. Caso um incômodo já não se dê por isso, poderia se dar entre o título e o subtítulo que Friedman propõe à sua obra: o desaparecimento de Deus é um mistério que ele atribui ao mesmo Deus.

04. O mote da obra de Friedman prontamente me trouxe à mente a intuição do teólogo protestante luterano Dietrich Bonhoeffer, condenado pelos nazistas à forca cinquenta anos antes, aproximadamente, da obra de Friedman. Apesar de Bonhoeffer ter sido referência dos “teólogos da ‘morte de Deus’”, tema que interessa, sobretudo, ao termo do segundo terço do livro de Friedman, este só o cita – e muito rapidamente – em dois momentos, dando-lhe, aliás, pouca importância. Apesar de sua morte prematura em 1945, aos 39 anos de idade, Bonhoeffer deixou essa sua intuição refletida em sua “Ética” e, sobremaneira, em “Resistência e rendição” (esta última como uma coletânea de cartas escritas durante a sua prisão) (2). Teria, indubitavelmente, desenvolvido-a melhor, tivesse sobrevivido por mais tempo.

05. É certo que Bonhoeffer não é um “teólogo da ‘morte de Deus’”, negativa da qual Friedman compartilha numa daquelas duas páginas em que o cita, pois essa “teologia radical” foi um movimento posterior, situado principalmente na década de 60. Contudo, a “morte de Deus” é uma concepção da obra filosófica de Friedrich W. Nietzsche (um leitor de Fiódor M. Dostoiévski), uma metáfora do processo moderno de secularização que abala definitivamente todo pretenso “sagrado”, “absoluto” e “transcendente”, manifesto no mundo ou não, afirmando o valor do mundo humano por si mesmo. Nesse sentido, a “noção de ‘chegada à maioridade do homem’” de Bonhoeffer não é “fenomenologicamente” diferente da “morte de Deus” nietzschiano: “já está bastante evidente que tudo pode caminhar sem ‘Deus’ e não menos bem que antes”, escreveu Bonhoeffer. Portanto, para este e Nietzsche, não mais está em disputa a questão metafísica se Deus existe ou não. A certeza comum a ambos é que o homem moderno não necessita mais crer na existência de Deus para continuar sendo, como antes, e, na verdade, não mais crê, sendo, como nunca, responsável pela sua própria condição e futuro – alguém que, enfim, alcançou a sua maioridade e emancipação.

06. Livre assim, mas diante de desafios que parecem tão altos às suas forças, “alguns [antes] desanimados [da Bíblia]” se tornaram, hoje, muitos, o que bem se expressa no temor da loucura (em vários nomes de nossas patologias psicológicas e psiquiátricas possíveis ou tormentos existenciais) e na perspectiva otimista que o suicídio vai tomando nesse mesmo tempo (destacadamente na literatura existencialista e niilista).

07. Não obstante tudo isso, ainda que se tome a “morte de Deus” como motivo “fenomenológico”, há em Bonhoeffer, porque teólogo (e para não perder essa denominação), uma retroação que não se manifesta em Nietzsche, a saber, que tal “fenômeno” está nos propósitos da própria divindade – tal como Friedman veio a sustentar, como vimos, já desde o título da sua obra que citamos. Escreve Bonhoeffer: “o próprio Deus nos ensina que a nossa vida de homens deve prosseguir como se ele não existisse”. Se a “morte de Deus” é factualmente constatável, o seu acontecimento como vontade divina não é “falsificável”, mas implica aquela “fé” que dissemos ser ingrediente imprescindível a toda teologia. Ademais, é neste particular uma fé “radical”, sem a qual seria realmente absurdo tomar a “morte de Deus” como afirmação teológica, como historicamente ocorreu nos anos 60. Essa inevitável fronteira metafísica da teologia deve ser, contudo, o mínimo de concessão ao “se Deus quiser” para se evitar a falta do engajamento que Bonhoeffer notou na maioria dos membros da comunidade protestante alemã na época da ascensão de Hitler ao poder e mesmo durante o recrudescimento das invasões e perseguições aos judeus, que o fez manifestar-se publicamente contra o Führer e participar da Resistência Alemã contra o nazismo e da construção de uma estratégia de atentado contra a vida de Hitler, ato limítrofe que se fez compreender pela sua famosa frase: “é melhor fazer um mal do que ser mal”.

08. Bonhoeffer passou, então a advertir a Igreja quanto ao perigo de se tentar cooptar adeptos por uma esperança num Deus que denominou “tapa-buracos”, ou seja, numa intervenção divina que, na verdade, segundo ele, só condena o homem à menoridade e subserviência. Teologicamente, enfrenta esse problema rediscutindo a tese de Lutero da “justificação da graça” suficiente, apelando à obra humana que se dirige aos sofridos por amor aos próprios sofridos. Estabelece, enfim, que “o único modo de ser honesto é reconhecer que devemos viver no mundo etsi deus non daretur, ou seja, como se Deus não existisse”. “Como se” expressa, mais uma vez, a fronteira teológica para se tratar da “morte de Deus” na modernidade. Tal consideração recoloca, ao teólogo cristão, o Jesus que enfrenta a morte humanamente. Nesse sentido, a pergunta que Jesus faz no alto da cruz, antes de “entregar o seu espírito”, torna-se paradigmática: “Meus Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” É essa condição que nos permite nos identificarmos com ele e por ele restauramos a nossa responsabilidade por nós mesmos, pelos nossos atos e uns pelos outros. Bonhoeffer está seguro de que somente assim os cristãos se engajariam em obras, em exemplos, em testemunhos práticos que possam interessar à contemporaneidade.

09. Paradoxalmente – percebo –, é quando desse abandono do homem à sua própria humanidade ontologicamente limitada, individual, mas também comunitariamente, que o mesmo homem se faz suscetível ao transcendente que possa lhe “salvar”. Paradoxo é o cansaço mesmo – como aqueles “alguns” na Bíblia desanimados. E, enfim, depositamos toda a nossa confiança novamente em Deus e somente nele esperamos. No mesmo momento em que a cultura parece prescindir-se de um Deus que possa vir ao nosso socorro (pois desacreditado), sente-se confortada e facilmente se adere a um texto como “Pegadas na areia”, que vemos se multiplicar pela Internet, fazendo como que nossas as palavras de Dostoiévski: Sou filho da descrença e da dúvida até ao presente ou mesmo até à sepultura. Que terrível sofrimento me causou, e ainda me causa, a sede de crer, tanto mais forte na minha alma quanto maior é o número de argumentos contrários em que em mim existe! Nada há de mais belo, de mais profundo, de mais perfeito do que Cristo. Não só não há nada, mas nem sequer pode haver”.


10. Não sabemos como tudo vai terminar. Só podemos responder pelas nossas escolhas aqui e agora. Lembro-me de uma conversa minha com o Altamir em que ele me apresentava (e a outros mais) a dupla redação que se tem, no livro do Gênesis, quanto à expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden: uma incidiu na interpretação dominante de uma “queda” da humanidade, uma vez que se afastou do mandato divino; outra, menos difundida, que permite a interpretação de que o homem se afastou do mandato divino justamente porque se elevou, se já não à condição de Deus, à uma condição mais próxima do Criador, pela capacidade de, por si mesmo, depois de comer do fruto da “arvore do conhecimento”, distinguir entre o bem e o mal, uma emancipação. Tal maioridade, liberdade e responsabilidade são, no entanto, o que permitiu ao homem tanto sonhar quanto ter os seus mais terríveis pesadelos.

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(1) Uma tradução para língua portuguesa surgiu em 1997, de Sonia Moreira, pela Editora Imago, 364 p.
(2) Ambas têm sua tradução para língua portuguesa feita pela EST (Escola Superior de Teologia), Editora Sinodal. A “Ética” foi traduzida por Helberto Michel, 1988, 218 p., e “Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão” foi traduzida por Nélio Schneider, 2003, 638 p.

24 de fev. de 2012

TEXTO XXV: Por entre a Idade Média e a "Filosofia Cristã"


Rodrigo Rodrigues Alvim

I – A NOVIDADE

01. A parte do Oriente Médio, então habitada pelos judeus, a Palestina, também foi conquistada pelos romanos, que a denominaram “Judeia”. Foi nessa nova província romana que nasceu uma criança, a quem seus pais chamaram “Jesus”, nome não muito incomum. Não seria de se esperar muita coisa de alguém nascido nesse rincão do mundo greco-romano. Sua família era pobre, mas não tão pobre como ainda se poderia ser, uma vez que seu pai tinha uma profissão, a de carpinteiro, mão de obra qualificada e muito necessária à expansão e à construção de novas cidades. Filho de carpinteiro, muito provavelmente Jesus também exerceu as habilidades do pai, como era de praxe acontecer, daí tirando o seu sustento desde moço ainda. Por volta dos trinta anos de idade, reuniu em torno de si um grupo de homens e mulheres, ele na condição de seu mestre. Não era o único. Muitos assim viviam e eram tomados por “sábios” e “profetas”, dando continuidade à tradição judaica de organização de mundo à luz de considerações religiosas, em mesmo tempo que inevitavelmente político-ideológicas.

02. Apesar de sua morte prematura e “vergonhosa”, pois morreu ao modo dos criminosos condenados (ou seja, crucificado), impressionou por suas palavras e modo de vida os seus discípulos. Como estes não eram pessoas influentes e, no entanto, não se intimidaram em propagar a mensagem do seu mestre, mesmo em momentos de grande perseguição aos “cristãos”, como passaram a ser designados em virtude do cognome “cristo” (do grego Χριστός, Khristós, ungido) que atribuíram a Jesus [vindo de “messias” (do hebraico מָשִׁיחַ, Māšîa), aquele que, segundo profecias, haveria de vir protegido pelo óleo divino e realizaria grandes feitos], pode-se concluir que, independentemente de sua “divindade”, certamente Jesus fora alguém impressionante: a mensagem de amor que se propagou em seu nome, de conceder a outra face quando lhe batem e de oração pelos inimigos em tempo tão beligerante (de todas as partes), tomou eco, paulatinamente, em pessoas de diferentes povos, condições materiais de vida e de pensamento.


03. O modo de vida de Jesus e suas palavras ecoaram em muitos, através do engajamento de seus discípulos, fundando assim comunidades que o tomaram como “o Caminho”, comunidades relativamente autônomas, embora todas pretendentes à filiação de um daqueles que com ele haviam convivido pessoalmente, testemunhas oculares que a elas transmitiram, oral e diretamente, as palavras daquele mestre.

04. Contudo, com a morte, no decorrer do tempo, desses primeiros porta-vozes da mensagem e feitos de Jesus, as comunidades passaram a registrar, pela escrita, o testemunho desses homens. Tratava-se de obra que garantisse a memória e tradição à posteridade, comumente reescrita, por acréscimos, substituições e supressões, promovidos pela repetida leitura de muitos, membros dessas comunidades originárias da conversão, adesão e afinidade de vida, pelo menos pretendida, aos passos de Jesus. Portanto, já no final do primeiro século, estimado desde o nascimento de Jesus, os textos que o têm por motivo, denominados “Evangelhos” (do grego ευαγγέλιον, euangelion, boa mensagem), são muitos e filiados à autoridade, senão do próprio Jesus, a de seus discípulos e apóstolos (o "Evangelho de Mateus", o "de Tiago", o "de Judas"...). Como estes, são também confeccionados escritos referentes ao que se segue à vida de Jesus, mas tão-só importantes por sua causa dessa mesma vida, como o “Apocalipse” (do grego αποκάλυψις, apokálypsis, "revelação"), os “Atos” (do grego Πράξεις, praxeis, feitos – "dos Apóstolos", "de Filipe"...), as “Cartas” ou “Epístola” (também do grego πιστολή, mensagem enviada ou ordenada), dos apóstolos às comunidades.

05. O inacreditável crescimento do número de adeptos a esse novo movimento não pode, assim, deixar de chamar a atenção das autoridades políticas do império romano, bem como das autoridades político-religiosas judaicas. Como sói acontecer às autoridades constituídas, toda novidade é uma ameaça potencial ao estado estabelecido e, por conseguinte, deve ser vigiado. Tomando volume, deve ser contido. Por conseguinte, não tardou o acirramento da perseguição aos cristãos, que nem por isso deixaram de se multiplicar. Ao contrário, o martírio de muitos fomentou a conversão de muitos outros que, admirados com a coragem desses que não abdicavam de sua fé nem diante da morte, convenceram-se de que se devia tratar de obra de um deus verdadeiro. Enfim, na clandestinidade durante o dia e na reunião em catacumbas durante a noite, as comunidades cristãs se multiplicavam, se avolumavam, se consolidavam.

II – A INSTITUCIONALIZAÇÃO

06. Em lutas intestinas para a conquista do trono de Roma, Constantino venceu o seu rival, mas não sem grandes preocupações e tormentos. Em desvantagem na disputa, manifestou sua esperança, traduzida em vozes e visões, confessadas a Eusébio de Cesareia, importante historiador da época: Meus pace est cum Vos... In hoc signo vinces (Minha paz está contigo... com este sinal vencerás). O sinal extraordinariamente apresentado foi traduzido no lábaro de Constantino, uma figura formada pelas duas primeiras letras, o Chi (χ) e Ro (ρ), sobrepostas, da palavra Χριστός (Cristo). Embora improvável, a vitória de Constantino aconteceu e, mais tarde, graças à liberdade de manifestação que os cristãos alcançaram em razão desse desfecho, o lábaro de Constantino se tornou um dos grandes símbolos do ideal ulterior da cristandade.

07. Era corrente aos imperadores buscar divindades que os amparassem em seus empreendimentos de guerra. A novidade, talvez, no caso de Constantino, foi tê-lo buscado no deus único cristão. Talvez o tenha feito porque igualmente impressionado com a expansão do cristianismo, apesar das perseguições contra ela promovidas pelas autoridades romanas, interpretadas como grande força de seus adeptos e desse deus pelo qual eram capazes de dar a própria vida. Ainda que a conversão pública de Constantino tenha sido motivada por estratagema sua de trazer para junto de si a força desses homens, muitos dos quais certamente pertencentes ao contingente de seu próprio exército, sem poderem, no entanto, assim se manifestar livremente, alguns estudiosos interpretam que a sua conversão realmente se deu, pouco a pouco, no decorrer de sua vida e principalmente sob a influência de sua mãe.

08. Ao se converter, o imperador Constantino se aproximou de uma das comunidades cristãs, que, como antes dissemos, eram muitas. Com isso, predomina a preocupação com a unidade das comunidades cristãs que acompanhasse a permanente preocupação de manutenção da própria unidade do Império Romano. Tal empenho fará com que a comunidade com tal preocupação seja chamada, desde cedo, de “católica” (do grego καθολικος, que significa “universal”), que se organizará paulatinamente através de forte hierarquia, disposta geopoliticamente ao modo do Império, ou seja, por regiões, dioceses (do grego διοίκησις, dióikessis), subdivididas em distritos (mais tarde chamados de “paróquias”), com suas sedes geralmente em cidades de maior porte. Toda diocese estaria sob direção de um bispo e cada paróquia sob a direção de um padre ou pároco. As dioceses maiores se denominariam “arquidioceses” e seus responsáveis, “arcebispos”. Contudo, todas essas autoridades episcopais estariam submetidas ao primado do bispo de Roma (a “cidade eterna”), o Papa.

09. Uma outra importante expressão da preocupação de Constantino com a unidade das comunidades cristãs foi a elaboração de uma profissão de fé nos estritos limites daquilo que todos os bispos cristãos pudessem estar de acordo entre si, o que foi promovido a partir da convocação, pelo imperador, do Concílio de Niceia, donde o nome pelo qual essa profissão ficou conhecida: Credo Niceno. Mais tarde, em 381, essa profissão de fé foi revista e confirmada no Concílio de Constantinopla, nos seguintes termos:

Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso,
Criador do céu e da terra,
de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,
Filho Unigênito de Deus,
gerado do Pai antes de todos os séculos,
Deus de Deus, Luz da luz,
verdadeiro Deus de verdadeiro Deus,
gerado, não feito,
da mesma substância do Pai.
Por Ele todas as coisas foram feitas.
E, por nós, homens,
e para a nossa salvação,
desceu dos céus:
se encarnou pelo Espírito Santo,
no seio da Virgem Maria,
e se fez homem.
Também por nós foi crucificado
sob Pôncio Pilatos,
padeceu e foi sepultado.
Ressuscitou dos mortos ao terceiro dia,
conforme as Escrituras,
e subiu aos céus,
onde está assentado à direita de Deus Pai,
donde há de vir, em glória,
para julgar os vivos e os mortos;
e o Seu reino não terá fim.
Creio no Espírito Santo,
senhor e fonte de vida,
que procede do Pai (e do Filho);
e com o Pai e o Filho
é adorado e glorificado:
Ele falou pelos profetas.
Creio na Igreja
Una, Santa, Católica e Apostólica.
Confesso um só batismo para remissão dos pecados.
Espero a ressurreição dos mortos
e a vida do mundo vindouro.
Amém.

10. Inevitavelmente, o desejo de unidade do cristianismo reavivou as perseguições religiosas entre os próprios cristãos. A concepção de um cristianismo “oficial” e “católico” colocava todo resto pretensamente cristão sob a insígnia da “heresia” (αρεσις, em grego; haerĕsis, em latim: escolha – no caso, opção pelo não verdadeiro).

11. Se em 313, pela sua conversão ao cristianismo, Constantino, pelo Édito de Milão, garantiu liberdade religiosa aos cristãos até então perseguidos, foi somente no apagar das luzes do século IV que o último grande imperador romano, Teodósio I, proclamou o cristianismo como religião oficial do Império Romano.

III - REORGANIZAÇÃO DO MUNDO

3.1 – A Filosofia Cristã

12. Nesse encontro da cultura greco-romana com a cultura judaica e a mensagem cristã, uma organização do pensamento também se fazia necessária. Muitos desde cedo se empenharam nisso. Paulo de Tarso, em virtude de sua exemplar formação dentro dos costumes e pensamento judaicos, exerceu, durante a sua vida, um papel inigualável no entrecruzamento do judaísmo com a “boa nova” de Jesus, além de cedo ter compreendido que esta, diferentemente daquela, não se destinava a um povo apenas, mas a todos os homens, empreendendo esforços nesse sentido, como nos mostra o seu encontro em Jerusalém com os discípulos de Jesus, na defesa de que, sendo a “boa nova” do Cristo para todos, não precisavam os gentios (os estrangeiros convertidos à nova fé) submeterem-se às práticas da tradição judaica, como a circuncisão. Também foi Paulo que se deparou com os gregos, guardiões da cultura ainda predominante àquela época, como nos mostram os Atos dos Apóstolos e as suas Cartas (Epístolas) dirigidas às comunidades cristãs de Atenas, Corinto e Éfeso, experimentando diretamente as dificuldades dessa empreitada.


13. Com a morte dos discípulos e dos primeiros apóstolos, vieram os seus sucessores, denominados “bispos” (επίσκοπος, em grego, ou seja, administrador), auxiliados por outros ministros de diferentes denominações e atribuições dentro das comunidades cristãs. Dentre estes, muitos dos quais convertidos ao cristianismo em sua juventude ou idade adulta e, portanto, educados ao modo da tradição greco-romana, assumiram o desafio de compatibilizar tal tradição à mensagem de Jesus. Mais tarde chamados de “primeiros padres”, deram, por esse título, nome ao primeiro período de sistematização de uma “filosofia cristã”, a saber, “patrística”.

14. Nota-se, pois, a grande dificuldade que será, nesse período, separar o pensamento filosófico do pensamento religioso cristão e teológico, do mesmo modo que não se compreende bem a sua política, a sua economia e a sua arte, se quisermos separá-las da cosmovisão religiosa cristã.

Aurélio Agostinho
15. Inúmeros são os filósofos patrísticos e não temos a pretensão de desenvolvê-los aqui, até porque somente um conseguiu produzir uma obra filosófica de ampla sistematização: Aurélio Agostinho. É ele o autor da primeira teologia cristã que, tendo nascido na transição do século IV para o século V, ultrapassará muitos séculos. Mesmo Tomás de Aquino, maior responsável por uma nova teologia, que predominaria somente a partir do século XII, ainda havia se formado sob a exclusiva orientação da teologia patrística agostiniana. A vida de Agostinho, ele mesmo nô-la apresentou em obra que, apesar de seu perfil autobiográfico, se tornou texto filosófico de suma importância. Em outras obras suas, estabeleceu diálogo com diversas vertentes filosóficas, apresentando argumentos inovadores na compreensão de mundo, sempre tendo, como pano de fundo, a escritura bíblica. Embora de tendência platonizante, sua obra inovou sobre a questão do mal no mundo, sobre a aquisição do conhecimento, sobre o sentido da história, sempre promovendo um intenso diálogo entre a filosofia antiga, as vertentes de pensamento dominantes no seu tempo e os textos sagrados ao cristianismo.

16. Conta-nos ele mesmo de seu compromisso com a busca da verdade. Instigado por sua mãe, Mônica, à leitura da Bíblia, rejeitava-a como alguma coisa séria e digna de maiores atenções. No entanto, recém chegado a Milão como professor de retórica, toma, nesse sentido, ciência das habilidades presentes nas pregações de Ambrósio, bispo da cidade. Interessado em averiguá-las, passa a freqüentar os sermões ambrosianos. Conta-nos ele:

Ardorosamente o ouvia quando pregava ao povo, não com o espírito que convinha, mas como que a sondar a sua eloqüência para ver se correspondia à fama, ou se realmente se exagerava ou diminuía a sua reputação oratória (1).

17. Esse acontecimento foi decisivo à posterior conversão de Agostinho ao cristianismo, pois, imperceptivelmente, Ambrósio reeducava o seu olhar para as Escrituras Bíblicas, como Agostinho mesmo nos relata em suas Confissões:

Ambrósio de Milão
Alegrava-me também de ver que já me não propunham a leitura dos antigos escritos da Lei e dos Profetas, com a mesma panorâmica em que, tempos antes, me pareciam absurdas tais doutrinas, quando arguía os vossos santos, na suposição de que os interpretavam como eu julgava, quando na verdade os não interpretavam assim. Cheio de gozo, ouvia muitas vezes Ambrósio dizer nos sermões ao povo, como recomendar, diligentemente, esta verdade: “A letra mata e o espírito vivifica” (2).

18. Deixando a literalidade de muitos dos textos bíblicos e buscando seu sentido nas entrelinhas, Agostinho encontra uma chave de leitura que lhe permite compreender os textos bíblicos que antes desprezava. Mesmos textos, mas outros olhos!

19. A “gota d’água” para sua conversão acontece quando ele abre aleatoriamente uma das Epístolas de Paulo que se encontra no jardim de sua casa, enquanto lhe vem uma canção que lhe solicita a leitura. Então, seus olhos caem no seguinte trecho: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites” (3).

20. Como exemplos de originalidade da sua filosofia, podemos selecionar dois trechos de seus escritos, um, no qual ele reflete sobre o que é o mal, e outro, no qual reflete sobre o que é o tempo:

(Primeiro): Sobre o mal:

Vi Claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse.
De fato, a corrupção é nociva, e, se não diminuísse o bem, não seria nociva. Portanto, ou a corrupção nada prejudica – o que não é aceitável – ou todas as coisas que se corrompem são privadas de algum bem. Isto não admite dúvida. Se, porém, fossem privadas de todo o bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e já não pudessem ser alteradas, seriam melhores porque permaneceriam incorruptíveis. Que maior monstruosidade do que afirmar que as coisas se tornariam melhores com perder todo o bem?
Por isso, se são privadas de todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem, são boas. Portanto, todas as coisas que existem são boas, e aquele mal que se procurava não é uma substância, pois, se fosse uma substância, seria um bem. [...].
Em absoluto, o mal não existe em Vós, nem para as vossas criaturas, [...]. Mas porque, em algumas de suas partes, certos elementos não se harmonizam com outros, são considerados maus. Mas estes coadunam-se com outros, e por isso são bons (no conjunto) e bons em si mesmos (4).

21. O problema do mal no mundo é uma das questões mais embaraçosas para a humanidade, porém especialmente para os cristãos que professam um Deus único, sumamente bom, criador de todas as coisas. Afinal, se assim é, donde provém o inconteste mal que presenciamos no mundo por ele criado? Pelo trecho de Agostinho, dado imediatamente acima, temos uma boa amostra da força argumentativa desse filósofo, bem como de sua capacidade intuitiva, expressa na sua tese de que o mal não é uma substância, mas uma privação de substância, ou seja, o mal não é um bem, mas uma privação do bem. Ora, em si mesmo, o mal não é, não existe e, por conseguinte, não exige criação.

22. Por fim, considera Agostinho sobre o mal:

Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de Vós, ó Deus - [...] (5).

(Segundo): Sobre o tempo:

Senhor, não houve um tempo em que nada fizeste, porque o próprio tempo foi feito por ti. E não há um tempo eterno contigo, porque tu és estável, e se o tempo fosse estável não seria o tempo. O que é realmente o tempo? Quem poderia explicá-lo de modo fácil e breve? Que poderia captar o seu conceito, para exprimi-lo em palavras? No entanto, que assunto mais familiar e mais conhecido em nossas conversações? Sem dúvida, nós compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. Por conseguinte, o que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; porém, se quero explicá-lo a quem me pergunta, então não sei. No entanto, posso dizer com segurança que não existiria um tempo passado, se nada passasse; e não existiria um tempo futuro, se nada devesse vir; e não haveria o tempo presente, se nada existisse. De que modo existem esses dois tempos – passado e futuro –, uma vez que o passado não mais existe e o futuro ainda não existe? E quanto ao presente, se permanecesse sempre presente e não se tornasse passado, não seria mais tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente, para ser tempo, devesse tornar-se passado, como poderemos dizer que existe, uma vez que a sua razão de ser é a mesma pela qual deixará de existir? Daí não podermos falar verdadeiramente da existência do tempo, senão enquanto tende a não existir (6).

23. A questão do tempo também é imposta ao cristianismo em virtude de sua profissão de um Deus criador, mas eterno. Se Deus é antes da criação do mundo, antes implica tempo e tempo também em Deus, comprometendo a sua imutabilidade. Agostinho, então, trata do tempo como condição apenas do mundo (da criatura) e, portanto, nossa. Daí que a sua abordagem, por coerência, ser “psicológica” (ou seja, como as coisas no tempo e o próprio tempo nos aparecem) e não ontológica (ou seja, o que é o tempo em si mesmo – o que nos seria indizível pela nossa própria condição já temporal). Daí que ele associa o passado à nossa memória já em nós (enquanto presente do passado), o futuro à nossa expectativa igualmente já em nós (enquanto presente do futuro) e o presente à nossa intuição (dado imediato) (enquanto presente do presente). Assim passado, presente e futuro certamente são em nós e da nossa condição e desde o mundo criado por Deus. Deus não está, enquanto criador e não criatura, submetido ao tempo. Se teimarmos em tratar de Deus relativamente ao tempo, só poderíamos dizer, então, que Deus é “sempre presente”. Rigorosamente, o tempo em si mesmo é indizível por nós, do mesmo modo que rigorosamente não podemos falar de Deus (é este que se nos revela; não somos nós quem o revelamos).

24. Nascido no norte da África, numa província romana, para lá retorna após sua conversão, sendo aclamado presbítero e, algum tempo depois, bispo pela comunidade da cidade de Hipona.

Entrada de Alarico em Roma
25. Com a morte de Teodoro I e a divisão do Império Romano (ocidental e oriental) entre os seus filhos, Alarico (o “bárbaro”, considerado o primeiro rei visigodo) cercou a cidade de Roma e a saqueou. Este acontecimento foi pungente nos espíritos da época, que acreditavam na invencibilidade da cidade, à qual concediam o predicado de “eterna”. Com o alcance da identidade da Igreja Cristã e do Império Romano, os cristãos, romanos ou não, também ficaram apreensivos com o ocorrido. E para agravar ainda mais a situação, alguns romanos não-cristãos levantaram a hipótese de que esse fato só foi possível por causa dessa união, que esmoreceu o antigo ânimo aguerrido do Império por um espírito esmorecido pelo mandamento cristão de amor ao próximo. Foi essa acusação aos cristãos que levou Agostinho a desenvolver uma defesa do cristianismo, que redundou numa filosofia da história, obra à qual se deu o título de A cidade de Deus.

26. A defesa busca os seus aportes, como não poderia deixar de ser, numa livre interpretação dos textos bíblicos. Segundo ela, a “cidade de Deus” não é Roma. Portanto, não é Roma a cidade eterna. Roma é uma das manifestações da “cidade dos homens” e, portanto, suscetível a quedas. Sua queda em causa, ao contrário da acusação que se fez aos cristãos, se deveu, na verdade, para Agostinho, ao fato de Roma ter tardado em abraçar o cristianismo e de ainda não tê-lo feito completamente. A “cidade de Deus” não é Roma e nem outra cidade visível. A “cidade de Deus” é, isto sim, uma cidade invisível, da qual fazem parte todos os homens de bem e que amam uns aos outros. Não obstante a sua invisibilidade, ela se constrói e é ela que triunfará. Ela, sim, é a cidade verdadeiramente eterna e a que, portanto, nenhum mal pode prevalecer.

27. Nesta esperança, morre Agostinho, em 430, com a sua cidade, Hipona, também cercada por bárbaros, da comunidade dos vândalos, que ocuparão todo o norte da África.

3.2 – A Europa

28. Com sucessivas e concomitantes invasões de diferentes comunidades “bárbaras”, o Ocidente foi escapando das mãos dos romanos. Apesar dos esforços do Império Romano do Oriente de reconquistá-lo, a dificuldade e demora na realização desse intento fez com que essas duas partes do antigo Império Romano fossem se tornando cada vez mais diferentes entre si. Como os “bárbaros” visavam o saque de cidades, onde se concentravam as riquezas produzidas, a população ocidental buscou, maciçamente, refúgio e proteção no campo, que foi se dividindo e se subdividindo numa complexa rede de suserania e vassalagem: o vassalo (não detentor de terra), mas em busca de proteção no campo, oferece-se para trabalhar a terra de outrem (o suserano), a este oferecendo em troca sua fidelidade e substancial parte de sua produção. Este ordenamento sócio-econômico ficou conhecido como “sistema feudal”.


29. Paralelamente a isso, o politeísmo das gentes “bárbaras” fez com que fossem relativamente tolerantes às diferentes manifestações religiosas. Nesse sentido, as lideranças religiosas cristãs, às vezes conseguiam avançar onde as lideranças seculares romanas falharam. Sem os pormenores, os diversos povos bárbaros nômades foram lentamente se convertendo ao cristianismo e a Igreja foi a instituição capaz de acomodar esses povos, então nômades, em uma nova geopolítica que incidirá no que atualmente conhecemos como Europa.

30. Mal fizera a Igreja essa reacomodação, surgiu, no século VII, um novo e forte movimento político-religioso, de origem árabe, e que também ameaçará as fronteiras da cristandade europeia ocidental: o islamismo.

Carlos Martel em Poitiers
31. Mas, para fazer justiça a toda essa reorganização, nesse período, de “bárbaros” cristãos, de contenção e conversão ao cristianismo de “bárbaros” ainda pagãos (sobretudo saxões) ao cristianismo, de detenção do avanço dos muçulmanos (que, depois de conquistar todo norte da África, invadiram a Península Ibérica, com pretensões e sólidas condições de avançar por toda a Europa cristã ocidental) e de uma administração feudal calcada num respeito à hierarquia de barões, condes, duques e rei, um nome mereceria um texto à parte: Carlos Martel. Carlos Martel foi uma dessas figuras que consideramos improváveis para sua época. Como uma espécie do mordomo-prefeito da dinastia merovíngia que governava os francos (um dos povos germânicos que invadiram todo o Império Romano Ocidental, como já vimos), sua importância à Europa cristã ocidental foi reconhecida já em seu próprio tempo e, na literatura europeia subsequente e hodierna, sua vida e feitos são considerados um épico (não obstante, por seus interesses internos de conquista, alguns historiadores tentem hoje minimizar esse seu feito). E, mesmo depois de sua morte, um dos seus filhos, Pepino (o Breve), e seu neto, Carlos Magno, inauguraram uma nova dinastia, a carolíngia, consolidaram o sistema administrativo, político e econômico feudal e terminaram de expulsar os muçulmanos definitivamente do extremo oeste da Europa ocidental. Para muitos, foi como o restabelecimento do Império Romano do Ocidente, sob o título de Império Carolíngio (ou “Carlovíngio”, nome que Pepino sugeriu em homenagem ao seu pai), período no qual à Igreja foram doadas muitas terras, dela fazendo, além de guardiã da unidade espiritual do Ocidente, uma forte instituição político-econômica, como nunca antes. Carlos Magno também mereceria um texto à parte, pois, embora analfabeto, promoveu um movimento cultural a que demos o nome de “Renascimento Carolíngio” (com abertura de várias escolas de pesquisa e combate ao analfabetismo, amparo de filósofos e artistas, investimento em publicações de obras “clássicas”, através do trabalho de inúmeros “copistas”, o que certamente contribuiu para que muito do patrimônio cultural ocidental não se perdesse). Com a morte de Carlos Magno e sua sucessão por Luís (o Piedoso), este dividiu o Império entre os seus filhos, ficando um responsável pela Germânia, outro pela França, e o terceiro pela Itália, já esboçando, assim, o que se tornarão alguns dos Estados Nacionais Modernos.

IV – ÚLTIMOS SÉCULOS

32. A subdivisão da história em três “eras” ou “idades” foi proposta pelos primeiros “modernos”. Inicialmente, pensou-se apenas na era que os antecedeu, a “Idade Antiga”, e a era na qual se encontravam, a “Idade Moderna”. Contudo, a “Idade Antiga” que lhes interessava no berço da modernidade, que redescobriam e faziam assim “renascer”, era muito mais remota: o tempo da cultura helênica. Reavivada, deram-lhe o nome de deram-lhe o nome de “Renascimento”. Em seu próprio lugar, reservaram-lhe o nome “Idade Antiga”. Assim, ao que lhes era imediatamente passado e que, dessa forma, ficava entre aquele tempo mais longínquo e o seu próprio tempo, chamaram de “era do meio”, de “era mediana”, de “Idade Média” – que, naquele momento, em nada lhes interessava, desprezando-a (apesar de seus mil anos) –, de “Idade das Trevas” ou “Era Obscurantista” (um preconceito que durou por toda a modernidade e contemporaneidade e que, ao menor interesse, condenavam como tendência “conservadora”). Somente mais recentemente, historiadores, sociólogos e filósofos têm recuperado e mostrado a riqueza e a importância desse período.

Carlos Magno
33. Relativamente a esse período medieval, em particular, convencionou-se chamar os seus primeiros séculos de “alta Idade Média” e os seus últimos séculos, de XII a XV, de “baixa Idade Média”. Logo, essa segunda parte do período feudal é marcada pelo auge das expedições militares cristãs ocidentais que pretendem reconquistar as “Terras Santas”, a antiga província romana da Judéia, especialmente a cidade de Jerusalém, sob posse dos turcos muçulmanos. Porque os militares ocidentais se veem como “soldados de Cristo”, passaram a chamar essas suas expedições de “Cruzadas” e que, a bem da verdade, tiveram início no século XI, com contingentes advindos principalmente do que fora o Império Carolíngio.

34. Desde as Cruzadas, mudanças significativas vão acontecendo no Ocidente, que levarão, no decorrer de alguns séculos, ao fim do modo de produção feudal e surgimento do modo de produção ainda atual: o capitalismo. As próprias Cruzadas implicaram a superação de uma economia de subsistência, como, até então, se tinha: primeiramente, o excedente se tornou necessário para o abastecimento dos contingentes cristãos-militares que se encontravam nas fronteias lestes combatendo os muçulmanos; em segundo lugar, apesar das Cruzadas terem durado aproximadamente do século XI até o século XIII, muito desse período era intercalado por tréguas e breves acordos de paz que permitiam uma convivência entre cristãos e muçulmanos, pela qual o intercâmbio de artigos foi se intensificando. Como o interesse pelos produtos orientais no Ocidente foi crescendo, foi preciso um excedente de produção entre os cristãos europeus que pudesse garantir esse comércio. Além disso, em resumo, começou-se a abrir estradas para esses intercâmbio e, por fim, onde tais estradas se entrecruzavam no Ocidente, passou-se a se estabelecer hospedarias e feiras de troca, a que se deu o nome de “burgos” (do latim burgus, fortaleza, povoado), que se tornarão cidades fora dos muros da sede dos feudos (castelos ou mosteiros). Daí também o nome “burguês”, dado àqueles que se aventuraram nas transações comerciais e que se tornarão os protagonistas do modo de produção capitalista nascente.

35. Data-se também do século XII, o nascimento das universidades que nos levou ao modelo que ainda hoje temos. Todavia, muitas delas advieram daquelas escolas inauguradas por Carlos Magno, anteriormente citadas. Fundadas, direta ou indiretamente, sob os auspícios da Igreja, inicialmente ofereciam estudos especializados de Direito, Medicina e Teologia, mas já desde o ensino básico literário [gramática, retórica e lógica (dialética)], seguido do científico [aritmética, geometria, música e astronomia], motivaram os espíritos da época à especulação, aos debates e ao intercâmbio de resultados de pesquisas.

36. Buscando acompanhar o “espírito crítico” dessas escolas, a “filosofia cristã” tomou, por isso mesmo, o nome de “escolástica”. Considera-se seu fundador, Anselmo, arcebispo de Cantuária, falecido em 1109, e o seu maior expoente, Tomás de Aquino, sacerdote e professor na Universidade de Paris, falecido em 1274, cujos pensamentos serão aqui um pouco apresentados.

4.1. Anselmo de Cantuária: Argumento Ontológico da Existência de Deus


37. Em sua obra Proslógio (7), Anselmo desenvolve um famoso raciocínio sobre a existência de Deus. Sua repercussão na filosofia se deve aos seus contornos puramente conceituais, ou seja, é um argumento a priori acerca da existência divina.

38. Anselmo parte da noção, que todos os homens, porque racionais, têm de “aquilo do qual não se pode pensar nada maior”. Bem expressado, não se trata de “o que é” “aquilo do qual não se pode pensar nada maior”, mas apenas da sua noção: trata-se somente de um conceito que nos ocorre mentalmente.

39. No entanto, adverte Anselmo, nem tudo que se pensa existe. Se assim é, poderíamos propor:

- “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” como existindo;

X

- “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” como não existindo.

40. Diante dessas duas possibilidades, porém, qual delas é verdadeiramente “aquilo do qual não se pode pensar nada maior”?

41. A resposta é inevitável: é “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” como existindo, pois tem, em relação à outra possibilidade, a existência, ou seja, algo a mais (um predicado) que o faz “maior”.

42. Ora, “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” é o que os cristãos denominam “Deus”. Logo, Deus existe necessariamente.

4.2. Tomás de Aquino: Argumentos A Posteriori da Existência de Deus

43. Por trabalho dos árabes ou pelos copistas medievais, as obras de Aristóteles foram sendo reintroduzidas no Ocidente. Logo a sua força se fez sentir à teologia agostiniana predominante, de traço marcadamente neoplatônico. Tomás de Aquino toma, pois, a incumbência de avaliar o quanto a filosofia aristotélica se conforma ou não com o pensamento cristão. Mais do que isso, entretanto, Tomás de Aquino vai sistematizar o pensamento de Aristóteles à “filosofia cristã”, que, segundo muitos consideram, foi mais do que uma simples sistematização, mas uma obra de luz própria, se transformando num movimento de pensamento: o tomismo.

44. Como, para Aristóteles, o conhecimento é “adequação do intelecto à coisa” (que se pretende conhecer) e “nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos” – o que faz dele um empirista que apela à fundamentação sensível dos conceitos, Tomás de Aquino não pode aceitar a assepsia conceitual do argumento da existência de Deus, elaborado por Santo Anselmo, sugerindo cinco vias que nos demonstram a existência divina, partindo do que se pode observar no mundo. Vejamo-las literalmente:

A primeira via [do movimento] é esta: tudo aquilo que se move é movido por outro (VII Física [de Aristóteles] 21, 241b; Cmt 1). É evidente aos sentidos que algo se move, como, por exempo, o Sol. Logo, deve ser movido por outro movente.
Ora, esse outro movente ou é movido ou não é.
Se não é movido, confirma-se o nosso intento, isto é, o que é necessário afirmar-se que há um movente imóvel. A este denominamos Deus.
Se, porém, é movido, então o é por outro movente. Assim sendo, ou se deve proceder indefinidamente, ou se deve chegar a um movente imóvel. Mas como não se pode proceder indefinidamente, é necessário por um movente imóvel.
(...).

A segunda via [do movimento] é a seguinte: se todo movente se move, tal proposição é verdadeira ou por si mesma ou por acidente.
Se é verdadeira por acidente, não é necessária, visto que o verdadeiro por acidente não é necessário. Por conseguinte, que nenhum movente se mova é contingente. Mas se o movente não se move a si, também não move a outro, (...). Logo, é contingente que nada seja movido, pois se nada se move, nada é movido. Porém, Aristóteles afirma ser impossível que em algum tempo não tenha havido movimento algum (VIII Física 1, 250b-252a; Cmt 1-3, 991). Logo, o primeiro movente [que denominamos Deus] não foi contingente, porque de uma inverdade contingente não se conclui uma inverdade impossível. E, assim, esta proposição “todo movente é movido por outro” não é verdadeira por acidente.
(...).

Segue ainda o Filósofo [Aristóteles] (II Metafísica 2, 994ª; Cmt 2,299s) uma outra [terceira] via [da causa eficiente] para provar que não se pode proceder indefinidamente nas causas eficientes, mas que se deve chegar a uma causa primeira que é Deus. Trata-se da seguinte via: em todas as causa eficientes ordenadas, o primeiro é causa do intermediário, e o intermediário é causa do último, que haja só um ou muitos intermediários. Ora, removida a causa, removido também será aquilo de que ela é causa. Logo, removido o primeiro, o intermediário não poderá mais ser causa. Procedendo-se, porém, indefinidamente em causas eficientes, nenhuma delas será a primeira. Logo, todas as outras seriam removidas, visto serem intermediárias. Mas isto é evidentemente falso. Portanto, necessário é afirmar-se que há uma primeira causa eficiente, que é Deus.

Dos textos de Aristóteles, pode-se tirar um outro argumento [quarta via, dos graus de perfeição]. Mostra ele (II Metafísica 993b; Cmt2, 295ss) que as coisas ao máximo verdadeiras são também entes ao máximo. Mas (IV Metafísica 4, 1008b; Cmt 9, 695) ele mostra que há algo máximo verdadeiro, concluindo isso de que, por haver duas coisas falsas, sendo uma mais que outra, deve haver também uma mais verdadeira que a outra, conforme esteja mais próxima daquilo que é ao máximo e simplesmente verdadeiro. Infere-se daí haver algo que é ente ao máximo. Este algo dizemos ser Deus.

Para provar o mesmo, Damasceno (I A Fé Ortodoxa 3; PG 94, 795C-D) aduz um outro argumento tirado do governo das coisas [quinta via, da causa final], indicado também pelo Comentador (II Física; Averróis c. 75). É o seguinte: é impossível que as coisas contrárias e dissonantes estejam sempre, ou muitas vezes, concordes em uma só ordem, a não ser que estejam também sob o governo de alguém pelo qual é dado a todas e a cada uma dirigirem-se para determinado fim. Ora, vemos no mundo as coisas concordes em uma ordem, não raramente nem por acaso, mas sempre e na maioria das vezes. Deve, por conseguinte, haver alguém por cuja providência o mundo é governado. E a este chamamos Deus (8).

45. Apesar dos dados sensíveis do mundo, conforme Tomás de Aquino, serem imprescindíveis para o conhecimento, não são, contudo, suficientes. O simples acúmulo de dados sensoriais não justifica as nossas concepções. Por isso, mais uma vez seguindo a tradição aristotélica, defende que há no homem um “intelecto ativo” capaz de ideias universais e necessárias, capacidade esta que se exerce sobre os dados particulares adquiridos pelo “intelecto receptivo” e ao qual denominamos “reflexão”.

46. Para as nossas linhas gerais, é importante dar relevo à autonomia que esse pensador aquinense reconhece da razão e da filosofia em relação à fé e à teologia, principalmente quando se observa que a tradição cristã, embora valorizasse a filosofia, tendia a fazê-lo como “auxiliar da teologia” e, mais raro, por dignidade própria. Ao contrário! Se já não subserviente, a pura razão sempre foi encarada, em potencial, como uma ameaça à fé.

47. Nos últimos anos do período medieval, a escolástica esteve envolvida sobremaneira com a “questão dos universais”, ou seja, com a pergunta se os conceitos (“humanidade”, por exemplo) são reais (como defenderão os “realistas”, num extremo) ou apenas mentais (não passando, então, de “nomes” que nos conduzem a um predicado comum a um grupo de indivíduos, estes sim reais, como defenderão os “nominalistas”, noutro extremo). Abrindo as portas para um novo tempo, os “realistas” redundarão no racionalismo moderno, assim como os “nominalistas” se atualizarão no empirismo moderno. A “questão dos universais” é importante, quando se percebe que “Deus” é um conceito por excelência. Assim, os “realistas” querem garantir diretamente a sua realidade, enquanto os “nominalistas” (tomando-os, naquele contexto, como homens de fé na existência divina) querem furtá-lo ou protegê-lo da inspeção das novas ciências empíricas que estão surgindo e que tomarão como importantes para si somente conceitos que tenham fundamentação na experiência sensível dos entes mundanos individuais. Deus não seria, assim, uma questão para os procedimentos científicos, mas uma questão muito específica, somente destinada à fé numa revelação fora do ordinário.

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(1) AGOSTINHO, Aurélio. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 85.
(2) Idem, p. 92.
(3) Rom 13, 13.
(4) AGOSTINHO. Op. Cit. p. 118.
(5) Idem, p. 120.
(6) AGOSTINHO. Op. Cit. p. 217-218. Optei, no entanto, pela tradução para o português sugerida em: PEGORARO, Olinto. A. Sentidos da história: eterno retorno, destino, acaso, desígnio, inteligência, progresso sem fim. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 104.
(7) CANTUÁRIA, Santo Anselmo de. Proslógio. Tradução e notas de Angelo Ricci. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 95-123.
(8) AQUINO, Tomás. Suma contra os gentios. Tradução de Odilão Moura e Ludgero Jaspers. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes (Sulina); Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990. v. I. p. 37-44.

7 de fev. de 2012

TEXTO XXIV: Ciência e Mito num Diálogo Possível da Filosofia com a Antropologia Cultural

Rodrigo Rodrigues Alvim

1 – A Importância da Questão do Mito

01. Talvez alguns etnólogos ainda estranhem um interesse pelo estudo da possível correlação entre mito e Epistemologia na esfera da Antropologia Cultural, pelo mesmo motivo que alguns filósofos também advogariam tal investigação à esfera de uma Metaciência (1). Esta estranheza, no entanto, só poderia advir de um espírito demasiadamente marcado por uma postura positivista que restringe a cada ciência um objeto e uma metodologia absolutamente específicos e, portanto, claramente distintivos, não reconhecendo assim temas limítrofes entre uma esfera científica e outra; de um espírito que desconhece a postura transdisciplinar, a partir da qual hoje (e quiçá sempre) os objetos de investigação requerem tratamento adequado. Além disso, devemos fazer notar que todos os grandes antropólogos, assim reconhecidos, sempre propuseram, ao lado das inúmeras considerações específicas acerca da sociedade exótica para a qual se atentavam, problematizações concernentes à delimitação do seu objeto e à sua metodologia, que valeriam, de um modo geral, para toda a Ciência Etnológica, estabelecendo, pois, um intenso diálogo com todas as ponderações em mesmo sentido levantadas pelos antropólogos do passado. Ou seja, não se detendo no simples fazer antropológico de campo como determinava a tradição, mas discursando sobre o próprio fazer da Ciência Antropológica, estes homens se tornaram renomados sobretudo pela sua Metaciência, construída, todavia, não somente a par de um diálogo com os etnólogos do passado, mas também a par dos desafios que enfrentavam em campo.

02. Em verdade, Filosofia e Etnologia sempre estiveram juntas, porque formalmente diversas, em toda a contemporaneidade (2). Não há filósofo que atualmente se faça ouvir sem que perpasse o seu pensamento pela diversidade cultural sublinhada pelos trabalhos antropológicos e sem que por esta se deixe perpassar. Por outra parte, reconhece-se presentemente que os estudos etnográficos só se justificam à luz de uma teoria de fundo que os possa fazer o mais amplamente inteligíveis e em grande medida comensuráveis entre si.

03. Assim rapidamente esboçado e brevemente justificado o nosso tema, gostaríamos ainda de destacar a interação entre Filosofia e Etnologia através das palavras de Marcel Detienne ao se deparar com a declaração confidencial de Marcel Mauss à Sociedade Francesa de Filosofia, segundo a qual "não nos basta descrever o mito; seguindo os princípios de Schelling e dos filósofos, queremos saber o que ele traduz" (MAUSS, 1969: 161):

(...), sendo a questão de natureza filosófica, é da Filosofia que deve vir a resposta. Schelling já havia percebido há muito tempo: a filosofia da mitologia é a verdadeira ciência da mitologia. E a empreitada de [Ernest] Cassirer (em La philosophie des formes symboliques, publicada na década de 1920) homenageia as intuições de L'introduction à la philosophie de la mythologie (1856) [Obra de Shelling]. (...). Os inúmeros coletores de mitos são recompensados por seu trabalho e a filosofia neokantiana põe termos aos tormentos de Mauss: ela se encarrega de enunciar a 'essência pura' da função mítica (DETIENNE, 1992: 187-188).

04. Foi impulsionado por esta mesma esperança de se encontrar tal "essência pura" ou estrutura última dos inumeráveis modos de se sentir, de se pensar e de se fazer, que o mais famoso antropólogo do século XX, Claude Lévi-Strauss, ergueu todo o seu trabalho etnográfico e etnológico, o que revigora ainda mais a atualidade do tema que ora propomo-nos aqui apenas introduzir (3).

2 - Colocação da Questão do Mito

05. Há uma lei que se impõe a todo conhecimento que se queira obter ou, mais extensivamente, a toda e qualquer exploração que se almeje fazer: "é preciso proceder do conhecido ao desconhecido" ou, recodificando, "conhecer é reduzir o desconhecido ao conhecido" (IDE, 1997: 2-5; ALVES, 1993: 45). Imediatamente, nenhum pensador se demora em nos multiplicar exemplos do nosso próprio cotidiano que nos confirmem esta lei. Contudo, basta que procuremos percorrer em regresso esta cadeia relacional que se quer para depararmo-nos com uma questão muito embaraçosa, frontalmente contraditória ao caráter universal desta mesma lei: caso não queiramos regressar infinitamente nesta cadeia, deveremos, em tese, finalmente nos deter, em algum instante, em um conhecimento primeiro, nem nunca outrora desconhecido e que, portanto, jamais requisesse a antepostagem de um já conhecido, que, do contrário, reinauguraria aquele interminável regresso que se quer vencer. Deveríamos, pois, nos deter em algo que nos fosse por si próprio e como que já impresso em nós mesmos, em algo dado aprioristicamente, em cuja evidência, portanto, reduziríamos e venceríamos todo o caos com o qual viemos a nos deparar aposterioristicamente.

06. O sociologismo durkheimiano sugere-nos que esse parâmetro dado ao indivíduo seria fruto de sua formação social, recebida por ele desde muito antes do indivíduo exercer a sua capacidade reflexiva. Entretanto, esta resposta só encontra satisfação no interior de uma sociedade hermética. Por isto, ao contrário do estudo sociológico, a investigação etnológica se preocupará com a comensurabilidade entre as mais distintas sociedades, confiando, como os primeiros filósofos gregos, na existência de um mesmo arqué, através do qual, para os antropólogos, os grupos humanos se expressariam de variados modos (4). Somente uma estrutura original perfiladora do humano seria capaz de assegurar a compreensibilidade por parte do próprio estudioso - formado numa precisa sociedade - do seu "objeto" (uma sociedade exótica); somente esta estrutura original seria capaz de assegurar à antropologia sair do simples "descritivismo" - que apenas sub-repticiamente convence-nos que pode oferecer-nos o pleno mostrar-se do próprio "objeto" e somente dele mesmo (5) -; sair do "descritivismo" sem que se perca a objetivação da investigação. Se não há a mediação dessa estrutura originante de todas as culturas, somente restaria ao etnólogo conter-se numa etnografia do sujeito tabula rasa, embora possa se reconhecer de antemão a impossibilidade dessa postura abertamente defendida pelos positivistas. Os estruturalistas levistraussianos, assim, propõe-nos não a absoluta negação da sugestão do sociologismo durkheimiano, mas lançam, para além dos precisos contornos de uma dada sociedade, o parâmetro que enseja não apenas estes contornos (da sociedade complexa européia, por exemplo) e, sim, mais amplamente, de todas as sociedades existentes, amostras atualizadas dentre os inúmeros possíveis de um universal, que pode ser entrevisto nas relações de parentesco ou nos muitos mitos existentes.

07. Por conseguinte, os antropólogos se vêem - eles mesmos, que se deparam com uma infinita constelação cultural - preocupados com o universal que lhes possibilite alinhavar, mediar, ordenar e compreender o que foi colhido dispersamente. Tão somente assim é possível a tradução das tradições e a extradição em todas as direções que perfazem o amplo e único tecido humano, tecido que denominamos fundamentalmente antropológico. Tal exigência da Ciência Antropológica ou "condição de possibilidade" da atividade reconhecidamente humana e cultural coincide com a mesma exigência ou "condição de possibilidade" epistemológica de toda ciência física ou biológica e a sua detecção mais próxima encontra-se na expressão mitológica, uma vez que o universal que se procura coincide com o próprio mito. Isto é o que procuraremos entrever.

3 - O Mito como "Conhecimento" Primacial

08. Do que afirmamos acima, a necessidade de um conhecimento primeiro que não requeira demonstração, mas que se faz parâmetro a partir do qual todos os demais conhecimentos poderiam se construir, se demonstrar e se correlacionar, deve ter-nos parecido uma exigência razoável, mas impossível de se obter. Porém, em verdade, como também anteriormente já o dissemos, este conhecimento é um dado, não uma conquista. Por ser distinto dos outros conhecimentos, diríamos, como Immanuel Kant, que ele estaria muito mais para um pensamento do que para um conhecimento propriamente dito.  Para muitos, inclusive, ele estaria assentado na própria estrutura mental humana, como propôs-nos Sigmund Freud. E por não prescindir-se de demonstração, diríamos que ele se nos vem como crença. Freud tentou elucidar tal estrutura mental em sua porção a priori mediante os mitos. E os mitos são fundamentalmente crença. Embora por um traçado tão breve, o que desejamos ponderar é que aquele "conhecimento" original e basilar é mítico e que não requer comprovação como os demais conhecimentos porque é crença, é dado - malgrado o nosso querer -, é constitutivo de nossa humanidade, é, aliás, o que nos faz humanos e diferentes dos demais animais, ou seja, seres de cultura.

09. Logo, não obstante os inúmeros trabalhos antropológicos de campo tenham contribuído para denunciar o etnocentrismo europeu e norte-americano - atributo aliás pertencente a todas as sociedades (LÉVI-STRAUSS, 1989 a: 15-16) -, o princípio universal que sempre assombrou os epistemólogos nunca abandonou a Etnografia, nem mesmo quando esta se baseou num só caso (6). O contato com outras sociedades fez com que, paulatinamente, ficasse insustentável aos próprios europeus se considerarem a cultura per excellence, a "civilização" modelo para todos os demais povos. Mas esta crise que abalou irreversivelmente a supremacia das leis, dos hábitos e dos costumes da Europa ainda persiste na tentativa de comprometer definitivamente a referência a um universal, que, se não mais se expressa tal e qual numa cultura em particular, faz-se presente no mais detrás de todas as sociedades, nos interstícios de cada particularidade social.

10. Na esfera antropológica, Claude Lévi-Strauss se tornou o maior porta-voz dessa inquietude. Não se pode conhecer o que está em constante transformação ou indefinidamente múltiplo (ALVES, 1993: 40-41). Esta antiga consideração, donde se despontou o nosso discurso racional (7) - sempre tão caro aos ocidentais -, encontrou hodiernamente a sua primeira exceção no estudo sobre o homem, proposto pela filosofia existencialista. Irredutível em seu ser no mundo, cada homem seria, então, dotado da mais completa singularidade, fruto, por sua vez e em última instância, de sua condição de ente dotado de liberdade. Na extrema consideração de Jean-Paul Sartre, a única característica comum e determinantemente irrevogável de todos os homens seria paradoxalmente a sua condenação a ser livre (SARTRE, 1987: 9-19). Frente a essa corrente de pensamento, que tão logo se popularizou na Europa, o estruturalismo antropológico levistraussiano foi acusado de "matar o homem" para dele poder fazer ciência, negando-lhe assim o que este homem pensa ter como atributo distintivo: a tarefa de escolher sua essência absolutamente particular, uma vez que esta não estaria previamente estabelecida por nenhuma natureza ou estrutura (8). Foi, no entanto, bem percebido que, se se quiser desenvolver uma teoria geral das culturas, a aposta de uma estrutura basilar e universal sobre a qual todas elas se assentam é uma correlata inevitável. E deve-se esperar que, numa sociedade científica crescentemente laica e materialista como a atual, este fundamento dos fundamentos venha a ser procurado numa redução dos processos culturais aos processos psíquicos estruturais, dos processos psíquicos estruturais às funções de cunho neuro-biológico e destas às combinações físico-químicas, como bem sugeriu o próprio Claude Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 280; 285 e 292). É em virtude dessa hipótese que ele delimitará o papel das ciências exatas e naturais, a saber:

(...) reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas. (...). O dia em que chegarmos a compreender a vida como uma função da matéria inerte, será para descobrir nestas propriedades muito diferentes das que lhe eram atribuídas anteriormente (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 275-276).


11.A influência que Lévi-Strauss sofre de Immanuel Kant é incontestável. À Antropologia caberia perseguir um substrato sócio-humano "trancendental", no sentido rigoroso do termo, que pouco a pouco, portanto, superasse a aparente dispersão do material colhido pela Antropologia Empírica (9). Os estabelecimentos da Antropologia Transcendental, não obstante sejam dados a priori, não nos são, contudo, dados conscientemente a priori, mas exigem-nos um esforço de abstração ("tirar de") para depurá-los de suas inúmeras expressões a posteriori (culturais), o que é possível através de vários entrecruzamentos comparativos. Pretender radicá-los em mecanismos biológicos (estrutura do cérebro, lesões, secreções internas) - como o faz Lévi-Strauss - é apenas uma atualização do pensamento kantiano à ciência moderna, que este mesmo prestigiou, em seus aproximadamente duzentos anos - na sua "Crítica da Razão Pura".

12. De bom grado, como lemos n'O Pensamento Selvagem, Lévi-Strauss aceitou-se como "materialista transcendental e esteta", designação originária da crítica de Sartre ao seu pensamento e não escondeu que, no que tange à epistemologia, ele se sentia cada vez mais kantiano (URDANOZ, 1985: 293-294). Esta proximidade não poderia ser mais feliz, visto que a Antropologia Cultural hoje desenvolve exatamente o que Immanuel Kant propôs à Filosofia, promovendo nesta última, por isto mesmo, uma revolução de inestimáveis repercussões. O século XVII ficou conhecido como "o século do método", mas indubitavelmente foi somente nos finais dos oitocentos que a divisão de águas no campo da Epistemologia se deu. Até Kant, os filósofos apressavam-se basicamente na delimitação ou definição do objeto que se pretendia conhecer. Kant, então, deslocará a atenção filosófica deste objeto (do qual se fala) para o sujeito (que fala), perguntando pela sua delimitação, ou seja, pelas condições de possibilidade a priori do sujeito cognoscente. Somente este simples deslocamento já instaura grande parte da revolução kantiana, posto que subitamente denuncia a existência de limites às capacidades humanas, no que se refere ao conhecimento. Apesar de hodiernamente esta finitude não nos causar mais qualquer surpresa, há apenas duzentos anos atrás os próprios filósofos, racionalistas ou empiristas, encontravam-se imersos num "realismo ingênuo", calcado num antropocentrismo não menos ingênuo, por acreditar na onipotência do sujeito cognoscente. Com a necessidade de antes definir ou "dar os precisos contornos" daquele que fala, nasceu a Antropologia como disciplina filosófica e fincou-se o marco inaugural do Pensamento Contemporâneo.

13. Desde então, o mundo em si e por si mesmo estará para sempre perdido, pois o sujeito, que com aquele se correlaciona, não é uma tabula rasa que a aquele pode-se conformar plenamente, porém é algo, antes de qualquer experiência, constituído de limitadas capacidades - ainda que, sob determinados aspectos, bastante amplas -, capacidades pelas quais o sujeito conforma o mundo ou com as quais ele filtra o mundo. Este mundo, por conseguinte, não é mais como em si mesmo, mas para um dado sujeito, em interação com este, ao modo deste, como este. O mundo não é o mesmo para todas as espécies que o captam, mas pode ser o mesmo para os indivíduos de uma mesma espécie que o captam. O mundo em si, como a própria expressão já o diz, não é para o homem, mas o mundo na sua relação e interação com os indivíduos da espécie humana ainda pode assegurar-se uma certa objetividade, se estes mesmos indivíduos suspenderem as suas particularidades emocionais e as suas experiências vividas outrora singularmente. Não é mais uma objetividade que se apoia no pólo "objeto" da tradicional relação da Teoria do Conhecimento (S-O), mas na interpenetração de ambos os pólos.

14. O "Eu transcendental de Kant", que se identifica com cada eu particular em sua estrutura a priori, sobreviveu bem ao cenário europeu. E não obstante tenha recebido incontáveis críticas no âmbito filosófico, foram exatamente os trabalhos etnográficos, mormente de outras sociedades e culturas, que lhe impuseram os seus maiores desafios e quase o golpearam fatalmente mediante os diferentes modos de se pensar e conhecer, relatadas pelas expedições antropológicas.

15. Mas a reação não demorou fazer-se sentir. Com a descrição de modos de cultura tão diversos, a própria Antropologia Cultural ressentiu-se da importância da existência de um aparato comum e substantivo a todos estes materiais coletados e que os fizessem inteligíveis entre si. Foi por este prisma que recuperamos até aqui um itinerário antropológico que tende a ficar à sombra de um "relativismo cultural" mais vulgar ou vulgarizado, isto é, mais apaixonadamente difundido pelos próprios acadêmicos, que não percebem nisto um irracionalismo que compromete principalmente o exercício a que são chamados.

16. É contra esta tendência que Claude Lévi-Strauss mais atualizou esforços. A princípio não fala como Kant de uma estrutura de pensamento, mas encanta-se com a estrutura linguística, sobremaneira a par dos trabalhos de Ferdinand de Saussure, fazendo uma transposição do método fonológico à Etnologia. Coincidentemente, a Filosofia Contemporânea, de uma maneira especial na sua vertente "analítica", passou a considerar o próprio pensamento como linguagem, o que poderia em alguma medida justificar um inevitável encontro ulterior de Lévi-Strauss com Kant e a sua grande afinidade para com a obra deste.

17. Na busca de invariáveis universais, a Antropologia Cultural encontra-se, portanto, com a Filosofia. E pela sua tenra idade, também não escapa de demoradas preocupações metacientíficas. E, de fato, a sua contribuição para a reavaliação e redefinição de método(s) no seio das Ciências Humanas e das próprias Ciências em geral não podem ser economizadas em sua grandeza. A prática atualmente tão banal da interdisciplinaridade, por exemplo, é conseqüência do vitorioso caminho já trilhado pela Etnologia desde um tempo em que o sectarismo positivista entre as Ciências consolidadas ainda era hegemonicamente recomendado. Foi nesse seu percurso que inevitavelmente a Antropologia Cultural se deparou com uma questão de primeira ordem no campo epistemológico: ao do fundamento primeiro e último das Ciências, dela mesma especialmente, questão que ela estenderá ao seu próprio objeto de investigação, que, enfim, abarcaria estas mesmas Ciências como subfenônomenos seus: a(s) cultura(s).

18. Os resultados advindos do tratamento dessa problemática são múltiplos, mas todos superam a linearidade e simplicidade da resposta neopositivista. A evidência por detrás de todo aparato epistemológico e cultural, desde onde começa, termina e se mantém inclusive a mais rigorosa demonstração científica ou sistema social - relembremos os procedimentos do método fonológico, destacadamente o segundo e o terceiro, que capacita as Ciências Sociais a formular as relações necessárias latentes em seu objeto (10) - indica-nos uma estrutura inconsciente, visto que o mais evidente é, contraditoriamente, o menos vidente. Logo as suas manifestações mais basilares têm estatuto de crença, como o mito ou a religião. Não se pretende diante disso avaliar tais fenômenos humanos como pejorativamente inferiores às manifestações de traços denominados técnico-científicos. Afinal tudo emerge de uma mesma matriz. Contudo, aqueles fenômenos são diacrônica, lógica e ontologicamente inferiores, ou melhor, anteriores (no sentido de primaciais e, conseqüentemente, fundamentais à ciência). Também em outros campos do saber, muitos estudiosos entreveram isto. Na famosa carta, de 1932, que o pai da Psicanálise escreve a Albert Einstein, Freud interpela ao grande físico: "Não será verdade que cada Ciência, no fim, reduz-se a um tipo de mitologia?" E muito mais próximo da Antropologia Cultural, o positivista d'As Regras do Método Sociológico, Émile Durkheim, conclui em sua última obra: "(...) até as noções essenciais da lógica científica são de origem religiosa" (DURKHEIM, 1989: 507). E noutra parte: "A Ciência é fragmentária, incompleta; avança muito lentamente e jamais está concluída; mas a vida não pode esperar" (DURKHEIM, 1989: 509). Portanto, o cabedal mítico-religioso é um todo compacto e totalizante, primeiro estamento humano que se acha colado à estrutura íntima das coisas, confundindo-se mesmo com esta; dá unidade, organização e sentido à vida humana, antes que a Ciência se gere, posteriormente, em sua dissecação.


19. Tais considerações ressaltam, então, a importância da participação primacial do mito na formação do mundo humano, seja natural seja cultural, e, particularmente, por inclusão, na formação da Ciência, como instituição igualmente humana, ou de qualquer outra instância gnoseológica. Ocupando também aí um lugar central, o mito deve receber de todas estas uma atenção que a "assepsia" positivista simplesmente lhe negou por acreditar que, se assim o fizesse, estaria comprometendo a plena objetividade do conhecimento científico, objetividade esta completamente ilusória, se estamos convencidos de que o saber humano, exatamente porque humano, jamais poderá verdadeiramente prescindir-se do sujeito como um dos pólos intrínsecos a todo constructo epistemológico que efetivamente se possa ensejar.

Referências

ALVES, Rubem. Filosofia da ciência. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
DETIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: UnB, 1992.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
IDE, Pascal. A arte de pensar. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d.
____________. Raça e história. In: Antropologia cultural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 (a).
____________. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989 (b).
MAUSS, Marcel. Œuvres. Paris, 1969, v. 2.
MELLO, Luiz Gonzaga. Antropologia cultural. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
REDFIELD, Robert. Introdução. In: MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Edições 70, 1988.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
URDANOZ, Teofilo. Historia de la filosofia. Madrid: Catolica, 1985, v. 8.


(1) A Metaciência foi o único espaço que os próprios neo-empiristas ou neopositivistas (guardiães da ciência moderna clássica) ainda reservaram à Filosofia. Esta não passaria, portanto, de uma discurso analítico sobre o discurso científico, diverso dos discursos religioso e "metafísico" ou da expressões mítica e artística. A Filosofia resumiu-se, então, numa simples filosofia da linguagem. A Ciência seria uma linguagem que permitiria ao homem um discurso objetivo, isto é, fidedigno, acerca da realidade. E se é por ela que a Ciência se faz, dela a ciência não poderia tratar sem cair numa petição de princípio. Tal tarefa foi, conseqüentemente, delegada à Filosofia, da qual, antes, os mesmos positivistas haviam usurpado qualquer validade enquanto discurso sobre o mundo. O pensador Ludwig Wittgenstein é indubitavelmente a melhor ilustração que temos nesse sentido. Sua obra Tratado Lógico-Filosófico foi considerada pelos mais importantes neo-empiristas da sua época como a "gramática da Ciência". Qualquer elucubração que não respeitasse estas normas gramaticais estaria para o além-fronteira científico, denominado pelo próprio Wittgenstein como a instância do "místico".
(2) A Filosofia no seu sentido mais amplo e remoto é entendida como a busca do sentido último, universal e necessário, de tudo o que é. A Etnologia, por sua vez e ao contrário, é entendida como um estudo das culturas pelo que cada qual apresenta como distintivo na constituição do modus vivendi das sociedades.
(3) Este artigo foi publicado na Rhema – Revista de Filosofia e Teologia.
(4) Há aqui uma clara alusão a Aristóteles, para quem, depois de ter passado em revista todos os grandes pensadores gregos até o seu tempo, "o ser [o que é] se diz de vários modos, mas nenhum modo diz o ser [em todas as suas possibilidades]". Isto refere-se a tudo o que é, a tudo o que existe. Era, todavia, inimaginável a Aristóteles e a algum outro coetâneo ou contemporâneo seu a aplicação desse ditado ao pluralismo cultural. A tentativa, porém, de muitos estudiosos das sociedades em comparar as suas conclusões de campo com elaborações alheias, feitas em tempos, espaços e culturas diferentes, contribui para a seriedade da suspeita de que tacitamente todos eles tendiam a acreditar na existência de um parâmetro comum para a diversidade de seu objeto, uma unidade estrutural opaca por detrás de toda multiplicidade cultural.
(5) De fato, a corrente antropológica difusionista, principalmente pelo seu viés norte-americano, inaugurado por Franz Boas, procurou dar ênfase à simples coleta de dados, criticando a hegemonia evolucionista desde o nascimento da antropologia na modernidade e propondo a suplantação da etnologia pela etnografia: "Os difusionistas passaram a ver na explicação evolucionista da cultura uma forte marca de apriorismo, muita especulação e pouca ciência. (...). Alguns chegaram a dizer que havia urgência em coletar dados e informações sobre os povos primitivos antes que os mesmos desaparecessem ou fossem atingidos pela civilização. Boa parte dos antropólogos entenderam que, ao menos por enquanto, o mais importante era coletar os dados e não explicar o fenômeno cultural. Este último poderia esperar algum tempo. No momento, o importante era coletar o máximo de informações que propiciassem, mais tarde, elementos suficientes que permitissem as elaborações teóricas" (MELLO, 1995: 223-224). Logo, visto em si mesmo, o difusionismo foi mal interpretado e amplamente divulgado como defensor de um "relativismo cultural" (como exemplo, recorramos ao verbete Antropologia Cultural que compõe a edição atual da Larousse Cultural, volume II, página 350), o que repentinamente se dissipa se ousarmos elucidá-lo numa esfera mais ampla, em relação às vertentes antropológicas que o antecederam e sobrevieram. De qualquer modo, pela tarefa primacial que o difusionismo se colocou, a simples coleta de dados, qualquer tentativa de teorização seria-lhe impossível. Em verdade, porém, os difusionistas norte-americanos "não desprezavam a possibilidade de um estudo universal da cultura, nem o método comparativo. Negavam, e com veemência, fosse possível pô-lo em prática no estágio em que se encontrava a antropologia. Achavam que, antes de se partir para tal realização, mister seria realizarem-se numerosos estudos de pequenas comunidades; destarte seria possível, futuramente, proceder-se a um estudo mais vasto" (MELLO, 1995: 231).
(6) Neste sentido, podemos recorrer à clássica introdução que Robert Redfield, professor da Universidade de Chicago, fez às obras de Bronislaw Malinowski ("Magia, Ciência e Religião", "O Mito na Psicologia Primitiva" e "Baloma; os Espíritos dos Mortos nas Ilhas Trobriand"): "A crítica tantas vezes feita a Malinowski, de que generalizou a partir de um só caso, perde grande parte de sua força a partir do momento em que se pode admitir o pressuposto de que existem uma natureza humana e um padrão universal de cultura. Nunca nenhum outro autor melhor o justificou. Podemos ficar a saber muito de todas as sociedades a partir de uma única, de todos os homens a partir de alguns, se o invulgar conhecimento for combinado com o estudo paciente e prolongado do que outros autores escreveram a respeito de outras sociedades" (REDFIELD, 1988: 12). Mais contemporaneamente, escreve Lévi-Strauss: "O valor eminente da Etnologia é o de corresponder à primeira etapa de um processo que comporta outras: para além da diversidade empírica das sociedades humanas, a atividade etnográfica pretende atingir invariantes (...)" (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 275).
(7) Seria interessante aqui rememorarmos o parentesco que o "ato de racionalizar as coisas" teria, em sua franja etimológica, com o "ato de racionar as coisas". Racionalizar é justamente isto: reduzir toda uma multiplicidade em um, do qual todos seriam, em primeira ou em última fronteira, originários.
(8) "O conhecimento dos homens às vezes parece mais fácil para aqueles que se deixam prender na armadilha da identidade pessoal. Mas assim eles fecham para si a porta do conhecimento do homem: (...). De fato, Sartre torna-se cativo de seu Cogito" (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 277).
(9) O que para Immanel Kant tratava-se de uma Antropologia Empírica será denominado por Claude Lévi-Strauss de Etnografia; o que para o primeiro constituía uma Antropologia Transcendental será chamado pelo segundo de Etnologia, de um modo geral, e de Antropologia Estrutural, de um modo particular.
(10) Escreve-nos Lévi-Strauss: “A fonologia não pode deixar de desempenhar, perante as ciências sociais, o mesmo papel renovador que a física nuclear, por exemplo, desempenhou no conjunto das ciências exatas. Em que consiste esta revolução, quando tratamos de encará-la em suas implicações mais gerais? É o ilustre mestre da fonologia, N. Trubetzkoy, quem nos fornecerá a resposta a esta questão. Num artigo programa, ele reduz, em suma, o método fonológico a quatro procedimentos fundamentais: [1] em primeiro lugar, a fonologia passa dos fenômenos  lingüísticos conscientes ao estudo de sua infraestrutura inconsciente; [2] ela se recusa a tratar os termos como entidades independentes, tomando, ao contrário, como base de sua análise as relações entre os termos; [3] introduz a noção de sistema – ‘A fonologia atual não se limita a declarar que os fonemas são sempre membros de um sistema, ela mostra sistemas fonológicos concretos e torna patente sua estrutura’ –; [4] enfim, visa à descoberta de leis gerais, quer encontradas por indução, ‘quer (...) deduzidas logicamente, o que lhes dá um caráter absoluto’” (LÉVI-STRAUSS, s/d: 47-48).