Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





15 de jun. de 2015

TEXTO XXXVII: Sobre o Pensamento Hegeliano

Rodrigo Rodrigues Alvim


01. Teríamos muito que escrever, a fim de compreender o trânsito da filosofia kantiana para o pensamento elaborado por Georg Wilhelm Friedrich Hegel. No entanto, o desafio é, aqui, ao mesmo tempo, ser breve, algo comumente difícil aos filósofos. Mas é, por isso mesmo, um desafio, do qual não esquivaremos, adiantando as nossas desculpas a quem pretende algo mais pormenorizado.

02. Hegel faz parte de um movimento de pensamento europeu que foi denominado “Idealismo Alemão”, que adveio de um entusiasmo de leitura das obras de Immanuel Kant, já considerado um “divisor de águas” dentro da filosofia ocidental. Ocorreram desdobramentos e posicionamentos filosóficos marcantes nesse período, dentre os quais nos cabe destacar os pensamentos de Johann Gottlieb Fichte e Friedrich Schelling, com os quais Hegel estabeleceu diálogos imprescindíveis para uma mais aprofundada compreensão de sua filosofia.Contudo, nos estreitos limites que antes colocamos, começaremos destacando o que o próprio Kant tinha consciência ser uma revolução: se a tradição filosófica se dedicou à tarefa de tentar dizer racionalmente as coisas, a razão deveria, antes, ter se dedicado à tarefa de dizer-se a si mesma, em sua condição “pura” ou “transcendental”, ou seja, sem qualquer coisa que lhe seja estranha ou distinta, tal como qualquer experiência das coisas que dizemos equivalerem ao mundo. A razão como que se pergunta em seu próprio nascedouro: o que sou , este que pergunta sobre o que é tudo mais? É tal intento que dará nome à sua primeira “crítica”, que é a Crítica da Razão Pura. Noutros termos, o eixo epistemológico deixa de ser a coisa sobre a qual a razão translada, mas a razão que aí mesmo se coloca. Não é mais, portanto, a coisa que se quer conhecer que se impõe a uma razão tabula rasa, mas é a coisa que se conforma às determinações constitutivas da razão a priori. Nesse sentido, Kant exemplifica:

Quando Galileu deixou as suas esferas rolar sobre o plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, ou quando Torricelli deixou o ar carregar um peso de antemão pensado como igual o de urna coluna de água conhecida por ele [...]: assim acendeu-se uma luz para todos os pesquisadores da natureza. Compreenderam que a razão só discerne o que ela mesma produz segundo seu projeto[...].


03. Na relação epistemológica entre o sujeito S (razão), que quer conhecer a coisa C, e a coisa C, que o sujeito S (razão) pretende conhecer, o conhecimento deixa de ser compreendido ao modo aristotélico, como uma “adequação do intelecto (razão,) sujeito S, à coisa C”, para ser compreendido como “uma adequação da coisa C às predeterminações inatas do intelecto, sujeito S”, isto é, às condições constitutivas a priori da razão, o que resulta não no que a coisa C seja em si mesma (noumenon), mas no que a coisa C é para nós (fe-noumenon, fenômeno ou objeto), no modo como ela, a coisa C, nos parece ou aparece. Conhecer o mundo implica a experiência (algo em que os empiristas insistiam), mas tal conhecimento ocorre sempre em nível de representação da razão (algo em que os racionalistas insistiam). Assim, de certa forma, Kant promoveu uma conciliação entre razão e experiência, como propugnavam os pensadores iluministas, o que o levou a escrever que “todo conhecimento começa com a experiência, mas nem todo ele advém da experiência.
  
04. Nesse pano de fundo, evidencia-se que o que se denomina “mundo” é necessariamente “mundo humano”. Essa ênfase incidirá na centralidade da “antropologia transcendental” relativamente a qualquer outro campo de interesse filosófico, inclusive relativamente ao próprio campo epistemológico que a gerou, o que ficará ainda mais claro na Crítica da Razão Prática e também na Crítica do Juízo.

05. Essa autonomia da razão ou da consciência encontrou terreno fértil no contexto da Europa que abrigou os ideais da Revolução Francesa e vivia as suas consequências nos seus demais Estados Nacionais ou principados, quando o tema da liberdade e da igualdade eram temas inevitáveis, também nos círculos filosóficos.


06. Os meandros são complexos, mas Hegel considerava que a razão humana não poderia ser fundamento de sua própria crítica, de tal sorte que, em sua obra, a razão se deslocou do campo antropológico para o campo da ontologia: a Razão Universal, a Unidade da Consciência, o Espírito Absoluto são termos afins que compreendiam a própria razão humana, ultrapassando-a infinitamente, entretanto. Ademais, Hegel afirma-a como atividade e processo, como melhor explicitaremos.

07. Salientar que Hegel participou da transição do classicismo ao romantismo talvez facilite a nossa exposição. Uma das grandes características do primeiro período era a ênfase na razão, enquanto o segundo estimava a arte. A distinção que ora nos interessa se encontra no continuum de uma cadeia de raciocínio, de um ir a outro sempre pela mediação de um terceiro, de um processo que contrasta ao sem mediação, ao imediato da inspiração artística, da intuição do artista. Sendo assim, o absoluto caracteriza a manifestação desse segundo, dando-se assim mesmo como é: na sua inteireza, no seu todo, de uma só vez. Esta última compreensão não será a de Hegel, segundo o qual o absoluto é pensamento, é razão, é consciência que se dá a si mesma (autoconsciência) não de uma só vez, mas paulatinamente, em processo, sendo tal desdobramento o que tomamos como tempo e história: os acontecimentos históricos são um filão do mesmo, de uma identidade por princípio e por fim, pensamento de si próprio, pensamento de pensamento, como que uma ex-plicação do Uno, da Unidade, do Absoluto, se lembrarmo-nos que ex-plicare é um verbo latino derivado de plicare, que significa dobrar (dobrar para fora, desdobrar). Sendo assim, a Verdade se revela, para Hegel, como história, numa multiplicidade que se refere ao mesmo e assim tem suas partes interligadas necessariamente, mundo no qual nada é inexplicável como um insight, uma intuição, uma inspiração que não se pode rigorosamente pensar, porque se revela sem antes e sem depois. Arrisca-se, então, que a razão ou unidade não é obra do pensar humano, mas, antes, obra da Totalidade que se revela ao pensar e, se não há outro, ao pensar a si próprio, em cadeia, o que somente depois e, por isso mesmo, permite que a pensemos mediante os acontecimentos que são os seus desdobramentos, que, portanto, se mostra a si mesmo e que se nos mostram como o que tomamos por realidade, vida, existência, universo, mundo.

08. Posto assim, observa-se que a dificuldade que, em geral, o pensamento filosófico tinha com a história e com o mundo, entendidos como multiplicidade inconstante, e que, dessa forma, não favoreciam, a partir de si próprios, a construção de um conhecimento seguro do real, é superada por Hegel, que, por sua vez, considera o real como processo histórico ou, como dissemos anteriormente, como revelação, manifestação ou fenomenologia do verdadeiro, do Espírito Absoluto. Ora, uma das dificuldades da tradição filosófica em assim aceitar é que tal multiplicidade é muitas vezes contraditória ou excludente, o que, pela perspectiva de uma lógica binária (segundo a qual o-que-é é e o-que-não-é não é)incide em confusão e absurdo. Logo, é imprescindível já introduzir a lógica outra pela qual Hegel comporta a contradição, que é a dialética. Conforme essa lógica e muito ao contrário da lógica binária, a contradição não incide em erro ou no irreal, mas é ela o cerne da vida ou o que garante a dinâmica do mundo e do verdadeiro. Melhor dizendo, Hegel recupera uma concepção praticamente esquecida da Antiguidade Clássica Grega e sustentada por Heráclito de Éfeso, segundo a qual algo se revela concomitantemente ao seu oposto, ou seja, sempre quando algo se afirma, sua afirmação (e satisfatória compreensão) só é possível pela igual afirmação do seu contrário, que, por sua turno e não menos, é-lhe a sua negação. Há nisso uma tensão que se resolve não na exclusão de um extremo ou outro (pois um tem o seu ser no outro), porém pela instauração de um terceiro, que supera aquela contradição, mas também a conserva, visto que ele mesmo é resultado e só pode ser compreendido por aquela contradição anterior e pela contradição que agora ele também estabelece com o seu contrário (lembrando que “quando algo se afirma, sua afirmação só é possível pela igual afirmação do seu contrário”), incidindo em nova contradição, que se desdobra em nova síntese, que é nova tese que se coloca em mesmo tempo que o seu contrário, e assim sucessivamente, revelando-se processo infinito, que perpassa todas as coisas, que é o Absoluto. E é dessa a maneira que esse todo se manifesta pouco a pouco como história, acontecimentos, mundo.

09. O Absoluto é pensamento, sendo que a atividade de pensamento se exerce sobre algo. Como no caso do Absoluto não há outro no qual se poderia exercer, esse pensamento se exerce sobre si mesmo, sendo pensamento de pensamento. O pensamento “em-si” se torna “para-si” mesmo: sai como que de si para dar-se a si mesmo, num processo infinito de reflexão. Noutros termos, o Absoluto sujeito se desdobra para “fora-de-si” na condição de Absoluto objeto, mundo, história. E à medida que tal Absoluto vai pensando a si mesmo, destina-se à síntese do Sujeito e Objeto, que Hegel chama de Concreto. Ocorre que todo esse alinhavar de momentos antitéticos e sintéticos também são cada qual desdobra mento antitético e sintético. Em Hegel, pois, a dialética não é propriamente um método, mas, sim, a natureza das próprias coisas e que, por isso mesmo, para que possam ser bem pensadas por nós, só poderão ser bem pensadas dialeticamente.

10. A partir daí, nenhum momento tem sentido em si mesmo, mas somente dentro do todo do qual faz parte, que é o Absoluto. Por isso, inevitavelmente, a filosofia hegeliana propõe-nos um sistema. Cada um só pode ser bem compreendido dentro do contexto do qual faz parte, que, por seu turno, faz parte de um contexto maior e, assim, sucessiva e ininterruptamente . O aqui e agora é um momento necessário do Espírito Absoluto: é como se tudo o que aconteceu assim aconteceu para que o aqui e agora seja; no entanto, também o aqui e agora deixará de ser, a fim de que tudo seja. Cada momento é, enfim, necessário e contingente, pois nada antes ou depois seria se este momento que somos não fosse, porquanto tudo é parte constitutiva do mesmo Espírito. Contraditório? À filosofia hegeliana, isso não é ofensa, porém é a mola dos acontecimentos: dialética!

11. Didaticamente, diz-se que a semente se realiza e se afirma num broto, embora um broto seja exatamente a negação da semente, que assim deixou de ser. Não dá para negar que a semente permanece no broto, pois, não fosse, não se teria igualmente broto. Mas deixou de ser, a fim de que o broto fosse. Assim a semente é necessária e contingente. Da mesma maneira, o broto se realiza e se afirma num arbusto, embora um arbusto seja exatamente a negação do broto, que assim deixou de ser. Não dá para negar que o broto permanece no arbusto, pois, não fosse, não se teria igualmente arbusto. Mas deixou de ser, a fim de que o arbusto fosse. Assim também o broto é necessário e contingente. A dialética é a dinâmica de tudo.

12. Bem, fiz o compromisso de não me delongar no tratamento precisamente do que é uma delonga sem fim. De qualquer forma, espero que este texto possa ser útil àqueles que gostariam de uma primeira palavra sobre o pensamento hegeliano. Por fim, remeto-lhes ao vídeo seguinte, a fim de que possam confirmar, por outra breve exposição, o que aqui foi tratado.