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02. Na tentativa de resolução dessa oposição de perspectivas sobre Sócrates, é fecunda a suspeição de que teria ele passado por uma conversão de vida, conversão que o fez abandonar a sofística sublinhada por Aristófanes e abraçar, como missão de vida, a filosofia, momento este destacado pelos seus discípulos.

04. Curiosamente, foi a autodetecção socrática de sua fundamental ignorância, quando os deuses, opostamente, nele apontavam sabedoria, que o levou a concluir que a única coisa que lhe distinguia daqueles que então se julgavam “sábios” (sofistas) era o seu reconhecimento de tantas dúvidas que tinha. Daí inferiu que era ele realmente o mais sábio tão-só por ser o único a se confessar abertamente ignorante. “Só sei que nada sei” se tornou, assim, a única confissão possível de Sócrates para lhe garantir a veracidade tanto do oráculo divino quanto da sua sincera introspecção.
05. Certamente, quem já se julga sábio, não busca mais saber: eis o sofista. Mas quem se julga ignorante, busca a sabedoria: eis o filósofo. Essa conversão de Sócrates da sofística à filosofia, pretende ele estendê-la aos demais sofistas, assumindo isso como tarefa de sua existência, vocação de seu daimon (uma espécie de voz interior, conforme Sócrates, a própria consciência). Para tanto, Sócrates vai maturando no decorrer de sua vida um comportamento, um procedimento que pode ser descrito como antes fiz em outro lugar:
O procedimento filosófico socrático é comumente apresentado em dois momentos interpenetrantes que lhe são constitutivos. O primeiro momento é denominado ironia e o segundo, maiêutica.
a) [...] A ironia se realiza quando o sujeito “toma-se sobre si” que nada sabe, [...]. Daí Sócrates só se reconhecer o mais sábio – segundo o pronunciamento da sacerdotisa do templo de Delfos – por se reconhecer não sábio e, nesse sentido, tão somente um amante, um pretendente, um amigo do saber: um filósofo! Eis o que o arrebata dos sofistas à filosofia. Dizer “só sei que nada sei” coloca, quem assim se assume, na busca sincera e incansável da verdade, defendendo-se de toda fixação em erro. Ao mesmo tempo, dizer “só sei que nada sei” coloca, quem assim se assume, em atitude de verdadeira escuta do que se diz, de quem se diz. Implica, portanto, em momento de acolhimento da alteridade e de sua compreensão. Nesta sua posição, nada cabe a Sócrates senão perguntar o não compreendido por contradição. Sumamente, a ironia não passa de um apontamento de contradições. Ou seja, o interlocutor de Sócrates, na tentativa de se fazer compreender, passa em revista a si próprio e expõe de si mesmo também contradições que o fazem incompreensível. Na esperança de rapidamente desfazer-se de tais contradições, instaura outras mais, percebendo em si um avolumar de componentes de ser e de pensamento completamente excludentes. Neste emaranhado por ele próprio confessado, sente-se vítima da ignorância, que o faz considerar, por fim, que nada sabe: “só sei que nada sei”. Neste momento, morre mais um “sábio” para gestação de mais um filósofo.

Importa perceber que esse procedimento filosófico socrático tem o diálogo como a sua condição de possibilidade, pois, intuitivamente, cada ser humano considera-se clara e plenamente consciente de si próprio. É, pois, ao querer se fazer compreender a outrem que alguém se expõe igualmente para si mesmo, percebendo-se agora uma unidade de dobras, uma identidade que, embora constituída de mediações continuadas, busca perfazer-se agora de modo paulatino, isto é, pretensamente sem quaisquer saltos. E ao se expor, pela inquietação das incompreensões que possa suscitar, necessariamente se refaz (por exclusão e por criação, por conservação e por mudança), reparações no constante intento do melhor dos compossíveis, no constante intento do melhor “‘conhecimento’ de si mesmo”. Como os sofistas bem perceberam em relação às cidades-Estados gregas, um homem fechado em si mesmo tende inevitavelmente a tomar-se como “universal”, absolutismo promotor de ações intolerantes e violentas.
06. Com esse seu procedimento, Sócrates perambulava pelas ruas de Atenas em busca de sofistas acompanhados de seus discípulos, filhos da aristocracia ateniense, que, como dissemos em texto anterior, não eram impelidos à verdade, mas instigados ao domínio dos instrumentos de persuasão, decisivos nos debates políticos. Se Sócrates pensava estar, assim, contribuindo para a devida formação do homem grego, muitos o interpretaram como um perturbador da ordem: os sofistas se sentiram publicamente humilhados e, por extensão, a aristocracia ateniense percebeu ameaçados os meios pelos quais seus privilégios poderiam ainda se manter, mesmo na democracia nascente.

08. Só restou ao tribunal ou condenar Sócrates à morte (um homem incômodo, mas não injusto) ou destiná-lo ao Pritaneu como um herói de Atenas (quando a intenção foi menosprezá-lo). Para evitar a humilhação de si mesmos, os juízes tiveram que manter a sentença capital: a morte de Sócrates por ingestão de cicuta.
09. Sócrates, antes de cumprir sua pena, passou alguns dias preso, pois um navio de Atenas havia partido para prestar culto ao deus Apolo, no Templo de Delphos, e era costume não praticar execuções na cidade enquanto esse navio não retornasse. Por isso, houve grande expectativa de que Sócrates fugisse, não somente por parte de seus familiares, amigos e discípulos, mas também daqueles que o haviam condenado e que, mesmo assim, não desejavam que uma pena tão radical a um justo ficasse sobre os seus ombros. Todavia, Sócrates recusou terminantemente fugir: de um lado, porque, como cidadão ateniense, insistia que não se pode transgredir as leis e determinações da polis; de outro lado, porque tal atitude poderia colocar em dúvida a sua inocência quanto aos crimes dos quais foi acusado e sentenciado.
10. Nesse ínterim entre a sua condenação e o seu último gole, seus discípulos foram diariamente com ele se encontrar para ainda conversar sobre os mais diferentes assuntos, inclusive sobre a própria morte, muito vivaz à medida que as horas se passavam. Enfim, veio a taça e Sócrates tomou o veneno.

11. Paradoxalmente, o mal da trágica perda de Sócrates foi o que nos trouxe outro, até então, improvável bem da filosofia: Platão. Um dos discípulos de Sócrates, Platão estava ali, mas destinado à prática política, visando dar continuidade à importância de sua família que, outrora, já tinha oferecido à cidade alguns dos seus mais notáveis governantes. No entanto, decepcionado com essa prática que veio a condenar o seu mestre, convenceu-se naquele momento de que não poderia haver nenhuma política adequada, se não fosse dedicado o preciso tempo à busca da sabedoria, isto é, do Bem, do Verdadeiro e do Justo. E, mesmo mais tarde, quando Platão tentou, por duas vezes, implantar as suas ideias políticas, veremos que fora completamente infeliz.
PARA PENSAR:
1) Como Sócrates não nos deixou nada escrito, as interpretações que dele se pode fazer são muitas. No entanto, a que teve maior divulgação foi a que o tem por um homem que abriu mão de sua própria vida (do que hoje denominamos vida privada) em favor dos “bons costumes” e das “leis da cidade”, que se querem (universalmente) justas. Para ele, numa interpretação de seu discípulo Platão, ao filósofo não é prioritário as diferentes justiças que vigoram nesse ou naquele Estado (como destacavam os sofistas), mas, sim, o que as faz, apesar de suas diferenças, pretenderem-se todas afins à mesma Justiça. Ou seja, ao filósofo cabe atentar-se à concepção do Justo (pelo exercício da “maiêutica”), a partir do qual chamamos de justiça o que ocorre nesse ou naquele Estado. Talvez, por isso, Sócrates ter afirmado, conforme Plutarco, que não era ele nem ateniense, nem grego, mas um “cidadão do mundo”. Por isso, também, questões como “Mas o que é a Justiça?” ou “Mas o que é a Verdade?”, Justiça ou Verdade com sua primeira letra maiúscula, passaram a ser designadas de “questões socráticas”, aquelas que nos remetem não à diversidade do que imediatamente nos é dado, porém à sua unidade conceitual, não ao relativismo das coisas, mas à sua mais funda convergência de essência. Admitindo que seja isso mesmo, pode o “conhece-te a ti mesmo” ser apresentado como uma defesa do “subjetivismo”, isto é, de que cada um tem a sua opinião do que é verdadeiro e que, portanto, todas as opiniões, por mais opostas que sejam entre si, fundamentalmente se equivalem? Justifique a sua resposta.
2) Conforme a obra platônica Apologia de Sócrates, “uma vida não suscetível de exame não vale a pena ser vivida”. Para Sócrates, pois, é preciso refletir a própria vida, num movimento de tomada de distância de si mesmo para autocriticar-se, evitando-se, dessa forma, incoerências, depurando-se delas, ultrapassando-se a si próprio permanentemente. Nessa possibilidade de se fazer, de ser responsável pelo seu próprio ser, o filósofo (o homem que reflete, antes de tudo, sobre si mesmo) se depara com questões “éticas”. O que somos não é fruto de um “destino” inelutável, traçado pelos nossos antepassados ou mesmo por entidades transcendentes a nós mesmos (os deuses, por exemplo)... “O que devo?” passa a ser uma questão para a minha própria consciência, para a minha razão. Caso isso seja sustentável, pode-se admitir que nisso Sócrates se faz herdeiro dos sofistas, uma vez que o seu olhar se desloca das questões da physis (do “cosmos”) dos primeiros filósofos para as questões humanas, como a política, por exemplo?