Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





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12 de jan. de 2021

TEXTO XLI: A obra de Karl Marx e Friedrich Engels - observações gerais.

 Rodrigo Rodrigues Alvim
 
I. Palavras introdutórias.
 
01. O nome de Karl Marx está associado a muitos preconceitos que podem exaltar ou, ao contrário, condenar prontamente a sua obra. Tais preconceitos habitam comumente pessoas que jamais leram quaisquer dos textos desse pensador. Sabem alguma coisa por ouvir dizer de alguém que possivelmente sabe alguma coisa por ouvir dizer, nunca se sabendo onde é que se encontra o paradeiro dessa transmissão, que geralmente está associada à ideia de que Karl Marx encontrou fama (boa ou má) como um estudioso apenas ou sobretudo do comunismo.
 
02. Para evitar partir de um ponto suscetível aos mesmos preconceitos, talvez seja importante já dizer que Marx tem a sua grande contribuição mais como um estudioso do capitalismo do que do comunismo, pois o capitalismo lhe é, como para nós, um objeto factível de observação, uma vez que se trata do modo de produção no qual ele e nós nos encontramos inseridos, enquanto o comunismo não passava - e ainda passa - de uma expectativa, que pode se realizar ou não. Aliás, além do capitalismo, modos outros de produção são os que antecederam o capitalismo, como o feudalismo e o escravismo, neste sentido também objetiváveis historicamente e, assim, observáveis.

 
03. Ainda para contribuir na superação desses preconceitos arraigados em muitos, podemos fazer uma distinção entre o Marx engajado politicamente em seu tempo e o Marx estudioso ao modo dos rigores da academia de seu tempo. Obviamente, essa distinção é um artifício apenas didático, pois, na realidade, trata-se de uma única e mesma pessoa, na qual essas coisas não podem ser separadas. Insistimos, todavia, no efeito didático dessa distinção, capaz inclusive, como se verá, de nos permitir compreender aparentes contradições que alguns atribuem a esse pensador.
 
04. Por fim, é inclusive possível medir, na inteireza de sua obra, que Marx pouco escreveu sobre o comunismo, embora tenha sido, com o seu grande amigo, Friedrich Engels, o fundador do Partido Comunista, através de um texto panfletário denominado “Manifesto do Partido Comunista”, do qual também trataremos um pouco mais adiante.
 
05. Esse seu amigo que aqui introduzimos não lhe é um amigo qualquer. Foi ele quem organizou grande parte dos escritos de Marx para publicação, com o falecimento deste. Também publicou obras capazes de nos dar esquemas que, por um lado, nos facilitam a compreensão da obra de Marx, porém, por outro lado, como quaisquer esquemas, deixam o desenrolar do pensamento de Marx um tanto mecanicista e até pouco dialético. De toda forma, hoje não mais se subestima a influência de Engels na obra de Marx como aconteceu em décadas passadas. O próprio Engels é o grande responsável por essa falta de reconhecimento no passado, pois ele, textualmente, relegou a autoria da obra principal de Marx, “O Capital,” somente a este – como aquelas coisas que os verdadeiros amigos costumam fazer em memória de um amigo que partiu mais cedo. Uma última observação sobre Engels (que também apresento para atenuar o preconceito que se tem de Marx como virulento inimigo de pessoas da burguesia), é que ele era um dos homens mais ricos da Europa, tendo a sua família fábricas instaladas em Manchester, cidade modelo de industrialização no século em que viveram, o século XIX. Isto também será retomado mais tarde como auxílio na compreensão do pensamento de Karl Marx.
 
II. O materialismo histórico-dialético.
 
06. Marx nasceu praticamente com o século XIX, precisamente no ano de 1818, num grande país germânico e monárquico da época, a Prússia. De família de tradição judia e liberal (seu pai era advogado), Marx começou estudando Direito nas Universidades de Bonn e Berlim, sofrendo influência do pensamento hegeliano, que havia já alcançado notoriedade naqueles tempos em que Hegel ainda lecionava. Filiou-se a um grupo de intelectuais que tomavam as obras hegelianas para desenvolver a crítica geral ao status quo, os “hegelianos de esquerda”, que se opunham ao conservadorismo dos “hegelianos de direita”. Logo abandonou o Direito e passou a se dedicar ao estudo da Filosofia. Formado, tornou-se redator de um jornal, a “Gazeta Renana”. Seus artigos, críticos ao governo prussiano, custaram-lhe o fechamento do jornal. Desempregado, viu-se obrigado a deixar seu país e mudou-se para a cidade de Paris, tornando-se redator dos “Anais Franco-Alemães”. Não demorou para também ser expulso daí, em seguida de Bruxelas e, logo depois, de Colônia, sempre trabalhando em jornais. Enfim, em 1849, fixou-se em Londres até a sua morte, em 1883. Foi casado com uma filha da aristocracia prussiana, Jenny von Westphalen, depois de um longo noivado em segredo. Tiveram vários filhos, embora apenas três, mulheres, chegaram à fase adulta, e não raro enfrentaram grandes privações materiais. A esposa de Marx e suas filhas também foram muito atuantes no desenvolvimento e na divulgação do pensamento de Marx, embora sobre isso não nos estenderemos aqui.


07. Afeito à crítica pelo seu pertencimento aos “hegelianos de esquerda”, Marx adotará a dialética como método de análise da realidade, mas rejeitará o idealismo hegeliano, ou seja, a primazia do pensamento em relação à história, à sociedade, à economia. Como escreverá em sua “Contribuição à crítica da economia política”, “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência” (1). Para Marx, o método dialético hegeliano estaria de ponta-cabeça, ou seja, de cabeça para baixo, invertido, ao pretender transitar da ideia ao concreto (e não, como ele pensa ser adequado, das condições objetivas à maneira de pensar). Nesse sentido, Marx não é mais “idealista”, mas “materialista”, ao modo de um outro “hegeliano de esquerda”, considerado comumente “pai do materialismo moderno”, chamado Ludwig Feuerbach” – não obstante Marx há de considerar a possibilidade de uma radicalização maior desse materialismo. Essa mesma afeição crítica que Marx assumiu desde a sua formação universitária e em contato com os “hegelianos de esquerda” vai aproximá-lo dos socialistas, que se organizavam em sociedades secretas. Entretanto, qual a sua relação com a obra hegeliana, a relação de Marx com os socialistas de sua época é ambígua. Ele os tomará como “utópicos” ou “românticos”, primeiramente por se demorarem nos discursos de descrição da sociedade ideal futura, sem determinarem os caminhos concretos para se chegar lá. Próximo a isto, é o que Marx escreveu da própria filosofia: “Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras, do que se trata é de transformá-lo” (2). Por isso, muitos interpretam o pensamento marxista não como ou uma simples teoria ou um mero ativismo, mas como a pretensão de uma síntese entre teoria e prática, a que chamam de práxis. Ao mesmo tempo, Marx não deixa de reconhecer a força do pensamento sobre a ação do sujeito, pensamento que ele traduzirá pelo termo “ideologia”.



08. Marx sublinha que cada ser humano se encontra inserido em condições concretas que o determinam. Em geral, destaca que o homem, como outro animal qualquer, tem que satisfazer as suas necessidades materiais, prover o que comer, o que beber, o que vestir, etc. Essa relação com a natureza para dela tirar, para a partir dela produzir tudo o que é preciso à satisfação de suas demandas objetivas (base da economia), também implicará o seu arranjo com os seus iguais, ou seja, dos seres humanos entre si (base da sociedade), meios, relações e modos de produção que vão transmutando no decorrer do tempo (base da história humana), de tal sorte que economia, sociedade e história são para Marx os eixos concretos de produção ou, em termos reforçados por Engels, a “infraestrutura material”, a partir da qual uma “superestrutura” simbólica e cultural se elabora (religião, política, arte, ciência...). Sendo assim, quando a infraestrutura se modifica, arrasta consigo transformações “superestruturais”. É por isso que Marx se demora em inspeções econômicas, sociais e históricas, e pouco trata relativamente de religião, ciência, etc. É claro que um esquema assim pode esconder o quanto as ideias podem retroagir nessas condições materiais, em relação mais perfeitamente dialética (de reciprocidade e interpenetração) do que de causa e efeito linear, mas o destaque de Marx e sobretudo de Engels deve ser compreendido dentro de um contexto de predomínio do idealismo e do espiritualismo, de causa e efeito linear e invertido na avaliação que fazem. A própria ideologia, que antes definimos, expressa que ela pode determinar a conduta do sujeito. Contudo, não se esquece em Marx que a ideia geral de mundo que um sujeito possui é dependente da classe social a que ele pertence, pois, naquele esforço humano de transformar a natureza, adequando-a às nossas necessidades de sobrevivência, as relações sociais de produção que se estabelecem para tanto subdividem os homens em grupos distintos, grosso modo, em amos e escravos, em senhores e servos, em patrões ou empregados. Logo, mais uma vez, estamos a dizer que, conforme as condições objetivas de vida dentro de uma sociedade, formularemos a nossa ideia geral de mundo. As condições precárias de trabalho de um empregado não lhe permitem que formule uma ideologia segundo a qual ele pense viver no melhor dos mundos possíveis; as condições de vida favoráveis que um patrão possui o fazem pensar que, de um modo geral, o mundo vai bem e deve continuar como está. Disso há de decorrer que ambos terão interesses contraditórios ou antagônicos de vida (movimento dialético: tese e antítese), que, se acirrando, há de desembocar em “revoluções” para uma nova “ordem” (síntese, nova tese). Esse é o movimento que fez a transição do modo de produção escravista para o modo de produção feudal e do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, permitindo a Marx e Engels inferir que também o modo de produção capitalista há de ter as suas contradições internas acirradas ao ponto de entrar em colapso, sabe-se lá quando. Esta é a chave de leitura da história que Marx nos deixou. É preciso notar que por ela não se destaca distinções simbólicas como acontecem quando marcamos a história em Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna. A chave delegada por Marx é por aquilo que ele entende como material e objetivo. A história se dá por elementos imanentes ao próprio mundo e não mais abstratos ou metafísicos, ao modo de um Espírito hegeliano, ou muito menos religiosos (ao modo de uma teologia natural). Isso permite Marx ao mesmo tempo considerar o ser humano como sujeito de sua história (contrário ao determinismo a que se deveria submeter à luz das concepções que advogam transcendentes metafísicos ou religiosos), mas também atrelado às suas condições concretas de vida, o que lhe permitiu escrever em “O 18 brumário de Luís Bonaparte”: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (3). Há, pois, um movimento dialético da subestrutura material que escapa ao arbítrio humano, que se autodetermina ao modo dos movimentos naturais e que, por isso mesmo, pode ser assim estudado ao modo do cientificismo que se impõe no século XIX. Sobre isso, Engels foi mais enfático, mormente no que ele produziu depois da morte de Marx. Consequentemente, estudar a origem, o desdobramento e o fim dos modos de produção passados pode lançar luz na compreensão do modo de produção atual, o capitalista, que é, por isso mesmo, o tema central dos estudos de Karl Marx e Friedrich Engels. Consolida-se desde então o ingresso de seus trabalhos no rol de interesses dos historiadores ulteriores.

 
III. Uma breve história das relações de trabalho, da produção da riqueza e da sua redistribuição.
 
09. Dentre as oposições que Marx e Engels apresentam para bem ilustrar o movimento dialético no interior dos modos de produção, a que ocorre entre “os que detêm os meios de produção” (tese) e “os que não detêm os meios de produção” (antítese) se sobressai. É uma oposição que vai se tensionando no decorrer do tempo e ao termo de uma ruptura que instaura uma novidade. Esta oposição foi denominada “luta de classes”, fazendo, assim, com que os estudos desses filósofos obtivessem a atenção também da sociologia posterior.


10. A tensão entre as duas classes se ancora principalmente na observação de que, ao mesmo tempo que são reciprocamente excludentes, a condição de existência de uma e outra está na sua interdependência. Esta contradição foi melhor exposta pela percepção do que Marx denominou “mais-valia”, uma expropriação, contudo velada, de uma classe pela outra, ao semelhante ao que um grande anarquista da época, Proudhon, chamou, sem disfarces, de “roubo”. Não obstante Proudhon assim considerasse a propriedade privada da classe patronal, efetivamente essa usurpação não é fácil de se observar. Daí a importância de Marx nesse sentido, pois explicitou por que meandros e disfarces esse procedimento se dá. Para brevemente entendê-lo, vamos fazer do seguinte modo. Imaginemos idealmente (ao modo das teorias) um mundo onde todos trabalhem igual e autonomamente. Sendo assim, cada qual detém o resultado de seu trabalho e não há quem não o detenha, se todos igualmente trabalham. Nesse limite, praticamente todos se dedicam ao mesmo trabalho, que lhe garanta o básico: o que comer, o que beber, o que vestir, onde se abrigar. Alguma troca é possível, o que permite uma pequena variação do cardápio, mas muito limitada pelo que é possível ao esforço diário de cada um produzir para si mesmo. Aqui fica muito claro que é o trabalho humano que beneficia a natureza, que agrega valor à natureza, que produz “riqueza” – riqueza que até então podemos ver idealmente equivalente na posse de cada um. Além do limite de tempo de trabalho diário e do esforço de cada um, toda acumulação é bem limitada, pois, como considerou um filósofo do século XVII, além de um determinado limite, o acumulado tende a se perder, apodrecer, tornando-se vão. Contudo, em algum momento, por razões que não nos é necessário aqui especular (pois facilmente observável entre nós), alguns têm muito além do que podem trabalhar pelas suas próprias forças, enquanto outros estão destituídos ao que possam aplicar a sua força de trabalho ou pelo que podem aplicar a sua força de trabalho, de tal sorte que os últimos se veem em condição de necessitar aplicar a sua força de trabalho ao que é de outrem e esse outrem, porque sabe que não pode pelas suas próprias forças beneficiar parte de suas posses, atende a necessidade da outra parte, concedendo-lhe os meios de produção, mas não tão simplesmente, senão mediante um contrato. Tal contrato seria justo se, ao cabo do trabalho, o que não detém os seus próprios meios de produção devolvesse ao outro o que tomou emprestado, ficando com o restante, fruto do seu próprio trabalho. Contudo, não é isso que geralmente acontece. No ato do contrato, o detentor dos meios impõe uma parcela para si do trabalho alheio que ultrapassa a reposição dos “gastos” dos meios usados. Por exemplo: tomado o fruto do trabalho em dez partes e considerando que uma parte repõe os meios emprestados, o detentor dos meios de produção, no ato do contrato, impõe para si cinco partes (para recuperar a ideia dos “meeiros”, ainda existentes em muitos rincões do Brasil). Ora, o que o “não detentor dos meios de produção” originalmente tinha para viver e trabalhar é, pois, reduzido à metade, o que há de perpetuar a sua pobreza, enquanto o “detentor dos meios de produção” acumula, dos frutos do trabalho que não é seu, quatro partes, a cada “virada de mês”(o verdadeiro “lucro”), fazendo com que eles não apenas se mantenham ricos, mas que se tornem cada vez mais ricos pela “expropriação” do trabalho de outrem. Esta “expropriação” é encoberta (em nosso exemplo) pelos termos do contrato. O contrato é respeitado, parecendo, dessa forma, ao próprio expropriado, inclusive, que tudo é justo, embora sinta que a sua vida não vai bem, por mais que trabalhe no limite de suas forças. Se equipararmos o contrato à lei, podemos averiguar o quanto que nem sempre o legal é justo, mas que, pelo contrário, pode esconder uma injustiça reiterada.


11. É claro que essa versão que Marx e Engels dão ao mundo do trabalho não agradou aos detentores do capital.
 
IV. O colapso do sistema capitalista.
 
12. Veremos que os estudos econômicos de Marx e Engels vão desaguar no sentido da corrente da crítica sócio-política que também desenvolvem. Ao adicionar a livre concorrência, um dos pilares do modo de produção capitalista, como ingrediente na massa da acumulação crescente, como vimos, perceberão que mesmo entre os próprios detentores dos meios de produção há uma tendência à concentração de riquezas nas mãos de uns poucos pelo sacrifício da maioria – tema do monopólio dos meios de produção que será desenvolvido por pensadores marxistas posteriores. A ilustração disso pode ser a do pequeno farmacêutico de bairro que tenta concorrer com a loja de uma grande rede de farmácia que se instalou do seu lado. Sem condições de concorrer, vê-se que a tendência é que se engrosse as fileiras dos que deixaram de ser detentores dos seus próprios meios de produção e, em pouco tempo, não tenham outra coisa a trocar, senão a sua própria força de trabalho, mão de obra, nos mesmos termos do contrato antes descrito ou nem isso, juntando-se ao contingente de desempregados (“mão de obra reserva”, expressão que atenua o desespero de muitos e disfarça o quanto a ordem vigente marginaliza). Tal concentração, permite que os termos do contrato sejam ainda mais desfavoráveis aos não-detentores dos meios de produção, que também disputam entre si a vaga de emprego, predispondo-o a ter que aceitar qualquer coisa. Para Marx e Engels, é inevitável que ao esticar esta corda, a maioria venha a tomar o que lhe esteja ao alcance da mão para por fim a um sistema que somente favorece a uns poucos pela penúria de muitos. Esta é a famigerada “luta armada” aventada inevitável acontecer por Marx e Engels.


13. Foi assim que a sociedade secreta socialista da qual Marx e Engels participavam, a “Liga dos Justos”, se transformou no Partido Comunista. A própria sociedade burguesa tolerou tais grupos enquanto realmente os tinha como sonhadores e utópicos. Porém, o “Manifesto” fundador do Partido, escrito por Marx e Engels, tinha um novo ingrediente: o ingrediente materialista e pretensamente cientificista. O fim do mundo burguês não mais se apresentava como possibilidade em poucas mentes que se reuniam para se reanimarem mutualmente, sem maior efeito para além das raias desses pequenos grupos, mas como advento inevitável do curso da história. Neste sentido, o pensamento hegeliano ainda era muito presente na cultura europeia para se entender o que isso queria dizer. O “Manifesto do Partido Comunista” não se apresentava simplesmente como uma carta programa político como tantas outras, porém anunciava um “determinismo” histórico contra a qual a vontade burguesa nada poderia. E Marx e Engels apresentam isso com genialidade, quando, por exemplo, anunciam os próprios burgueses como geradores dos coveiros do mundo burguês, fazendo entender que, com o avançar do modo de produção capitalista (que é tudo o que um burguês deseja e promove), as suas contradições internas também se acirram, colocando o sistema mais próximo do seu colapso e desaparecimento. Na carta programa, Marx e Engels expõem como se deram o fim dos modos de produção anteriores: precisamente quando eles estavam no seu ápice (e ápice também das suas tensões). Daí primeiras palavras do “Manifesto”, já assustadoras ao conforto de qualquer burguês: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo” (4). E, mais adiante: “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. (...). “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis” (5).
 
14. A participação de Engels em toda essa crítica deixa-nos claro que tal crítica tinha como destinatário o sistema burguês e não cada burguês, como ele. A ideia de conversão de pessoas costumava estar muito presente em algumas estratégias socialistas utópicas, mas não foi o caso da crítica comunista de Marx e Engels, que entendiam claramente que “uma andorinha não faz verão”. Sendo mais direto, se Engels abrisse mão de sua fortuna, não passaria de mais um na condição de proletário. Isto reforça que a mudança pela qual eles anseiam é estrutural, revolucionária e universal.
 
V. Palavras finais.
 
15. Como se pode ver, são os estudos econômicos, sociais e históricos de Marx e Engels que fizeram com que as suas críticas políticas não fossem relegadas ao esquecimento, mas fossem levadas a sério pelo próprio “establishment”. Muitos desses estudos somente alcançaram densidade posteriormente ao “Manifesto”, sobretudo os econômicos e presentes em sua principal obra, “O capital”.
 
16. Obra de uma vida, o que Marx e Engels escreveram não pôde, todavia, deixar de apresentar necessidade de revisão. Dentro do que nos foi permitido apresentar aqui, podemos destacar, por exemplo, a inconformidade entre a adoção de um aparente determinismo cientificista (controverso) e o apelo as manifestações e movimentos contestatórios de classe. A breve análise histórica que obtém o efeito de inevitabilidade do fim do mundo burguês, termina estranho ao apelo final que encontramos no “Manifesto”: “Trabalhadores de todos os países, uni-vos!” (6). Apesar de fazer sentido dentro de um manifesto de fundação de partido político para pôr fim à ordem social vigente, causa estranheza, depois que se ambientou com o caráter de inevitabilidade material do fim do mundo burguês. Que as associações e manifestos pudessem ser epifenômenos de uma marcha dialética da história, parece plausível, mas exatamente por revelar isso mesmo nesse “Manifesto”, pelo menos neste parece estar como que deslocado.
 
17. Não encontraremos carta programa de partido político como a do “Manifesto do Partido Comunista”, que se preocupou em estar embasado numa compreensão histórica. Entretanto, desta mesma compreensão histórica só nos é rigorosamente aceitável inferir que o atual modo de produção capitalista não é eterno, mas que, como os demais – que também quando presentes se iludiram com a sua eternidade –, está condenado ao desaparecimento – sem que se saiba quando –, dando lugar a uma nova ordem. Essa nova ordem, contudo, não advém por forças das premissas apresentadas. Ela é, portanto, especulativa e pode se apresentar como programática, como bem cabe e se espera de um texto propositivo de inauguração de partido político. Noutros termos, que o modo de produção capitalista está fadado ao desaparecimento pode ser inferido dos estudos históricos apresentados – e somente isso já é suficiente para deixar os capitalistas aterrorizados –; mas que o novo modo de produção é o comunismo é produto da vontade (de alguns) e propositivo. Por exemplo: no bojo do feudalismo, comumente se pensou que este não teria fim; talvez alguns poucos tenham pensado na possibilidade de seu término; mas impossível considerar que alguém tenha imaginado uma nova ordem como o capitalismo, que veio a ser. Consequentemente, embora já estejamos nos demorando no tema do comunismo, fomos a isto levados exatamente porque, ao falar de Marx, a maioria já o associam a esse tema. Mas não em vão, se nos fica claro que não é este o tema de interesse maior dos estudos de Marx e Engels, mas sim de sua militância. Dos estudos deles, o capitalismo vigente é o tema central e do qual é possível exame à luz de critérios considerados científicos em seu tempo.


18. É bem possível, como muitos estudiosos hoje já observam, que o determinismo histórico não caiba ao pensamento de Marx, tendo sido uma chave de leitura elaborada por pensadores marxista a partir da Revolução Russa e da necessidade de se criar a impressão de que seria uma questão de tempo para os demais países paulatinamente transitarem do capitalismo para o comunismo. Se esses estudiosos estiverem certos, o movimento dialético materialista de Marx apenas admitiria uma interdeterminação entre as “teses” em jogo, embora tais “teses” pudessem historicamente ser outras, outros arranjos e, assim, outras interdependências. Quiçá essa observação seja inclusive pertinente numa interpretação mais justa da própria dialética hegeliana, pois, ao dizer que “o pássaro de Minerva só alça voo ao entardecer” e que, portanto, a filosofia sempre chega tarde demais, Hegel prescreve que a sabedoria só é possível de se obter humanamente quando as coisas já se desenvolveram dialeticamente, mas não se presta a vaticinar, a prever o que ainda está para acontecer, pois os arranjos não são tão determinísticos como pareceu a alguns de seus intérpretes e aqui ainda sustentávamos ao pensamento de Marx.
 
19. Finalmente, as observações iniciais deste texto, de estarmos lidando com estudiosos que ao mesmo tempo são pessoas engajadas politicamente, podem aqui nos ajudar a compreender algumas das aparentes incoerências também aqui aventadas, seja pela distinção artificialmente entre o estudioso e o militante, seja pela adesão de que, na realidade, não há mesmo como os distinguir.
 
Citações:
 
(1) MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 23.
(2) MARX, K.; ENGELS, F. Teses sobre Feuerbach. In: A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 99.
(3) _______. O 18 de brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 25.
(4) _______. Manifesto comunista. Disponível em: <O Manifesto Comunista - Friedrich Engels e Karl Marx (ebooksbrasil.org)>. Acessado em 9 de janeiro de 2021. p. 5.
(5) Idem. p. 7; 27.
(6) Idem. p. 65.

10 de dez. de 2020

TEXTO XL: Bases do Materialismo Moderno e Contemporâneo.

Rodrigo Rodrigues Alvim 

01. Estamos numa condição temporal, a qual, em geral, denominamos “mundo”, “vida”, “existência”, “realidade”, etc. Nela, as coisas vêm a ser e deixam de ser, num movimento (devir) que nos permite intuir o tempo – são as coisas que nos são dadas à nossa sensação, as coisas “visíveis”, “materiais”.

02. Apesar disso, perpassando a história, vemos surgir nesses entremeios um pretenso atemporal ou eterno, também, por isso mesmo, denominado “extramundano”, “extraordinário”, “sobrenatural”, como se o mundo “visível” e “material” não pudesse ser compreendido (quiçá existir) por si mesmo, mas somente se pressupondo esse “invisível” e “imaterial”.


03. Essa distinção se reproduz de diversas maneiras e por diversos outros nomes. Na própria constituição humana, pareceu que o corpo corresponderia ao visível, material e corruptível, enquanto a nossa capacidade de pensamento, a alma, pareceu correspondente ao invisível, “espiritual” e eterno, pensamento capaz de apreender, inclusive, para além do imediatamente fugaz aos olhos corpóreos, o permanente e incólume.

04. O caráter naturalmente precário e contingente do sensível foi, enfim, desabonado como fonte e suporte do que se apresentava como impossibilidade de ser de outro modo (o necessário e essencial, que não pode deixar de ser, imutável e absoluto).

05. Desde a antiguidade da nossa cultura, exemplos, nesse sentido, foram multiplicados. Paradoxalmente, até no movimento encontrou-se o imobilismo, como no movimento dos planetas, o “sempre e mesmo” movimento, o cíclico. Notou-se na multiplicidade do movimento de uma espécie de animal, um hábito que nos sugeriu a existência de um mesmo “instinto”. Aliás, o termo espécie já é uma expressão de uma “conformidade” entre inumeráveis indivíduos. As matemáticas também nos concatenam, desde os seus primórdios, tantas outras expressões universais, “abstratas” aos dados sensivelmente imediatos.

06. Assim, mesmo quando os primeiros filósofos da cultura grega tentaram uma compreensão do mundo prontamente manifesta a partir do próprio mundo, alheia às entidades fundantes míticas e religiosas, apresentando a “água”, o “ar”, o “fogo”, a “terra” como a origem de tudo, essa abordagem significou o salto inaugural da maneira racional de compreender o nosso mundo por si só, mas não foi suficiente para romper radicalmente com a ideia de transcendentes ao mundo, bem ilustrado no pensamento de quem é considerado o primeiro filósofo ocidental, Tales de Mileto, a quem se atribui, por um lado, a afirmação de que a “água” é a origem de tudo e, por outro lado, de que tudo está prenhe de “deuses”.


07. O “humano, mundano e profano” também foram apresentados como antitéticos ao “divino e sagrado”, reforçando essa distinção entre o transitório e o imutável, entre o material e imaterial. No período medieval ou feudal da cultura europeia, quando predominou a cosmovisão religiosa de mundo, a igreja cristã se tornou a guardiã maior desse dualismo e Deus, por sua vez, a entidade absoluta por excelência, traduzindo-se na filosofia especulativa e racionalista no supraconceito do pensamento metafísico, abstrato, dogmático e imaterial.

08. Por esse mesmo prisma, também se pode compreender em alguma medida a modernidade, pois uma de suas características marcantes é o que se nomeou “processo de secularização”. “Secular” é, por sua etimologia, aquilo que está no tempo. Trata-se, portanto, do que é imanente e não transcendente ao mundo imediatamente dado aos nossos sentidos e material.

09. No âmbito das reflexões políticas modernas, esse “processo de secularização logo se fez sentir. O antigo regime estava assentado na governança monárquica absolutista, que, por seu tuno, estava assentado na ideia do direito divino dos reis, pela narrativa de que Deus mesmo havia escolhido o primogênito humano para governar e que o rei de então era o mais próximo dessa origem. Sem detalhar, podemos ver surgindo, nesse contexto, filósofos que defenderão que o poder não advém de Deus, mas de um acordo que os homens (que assim se tornam uma comunidade) fazem entre si, seja para preservar pretensos direitos naturais (sua vida, sua liberdade, suas posses) ao modo de um John Locke, seja para assegurar simplesmente a duração da vida, ao modo de um Thomas Hobbes. Mesmo antes, por Nicolau Maquiavel, tentou-se pensar o comportamento político, em especial do governante, não mais à luz de valores etéreos, universais e transcendentes (como estabelecia a ética religiosa cristã), mas como resultado do próprio interesse humano de manter a ordem vigente, podendo inclusive recorrer a meios condenáveis ética e religiosamente, todavia efetivos para a própria manutenção do poder e do “status quo”. Portanto, o que move a política são estritamente os interesses humanos – e comumente os mais baixos – e não a observância de preceitos sagrados. Vê-se, por esses exemplos, que o pensamento moderno tendeu a esclarecer os próprios atos humanos, as suas interações e disposições por motes mundanos mesmo e não mais por motes ideais e veneráveis.


10. De igual modo, podemos encontrar os delineamentos desse "processo de secularização" na elaboração da cosmologia e física modernas. Já Galileu-Galilei defendia que os textos bíblicos não tinham interesse em tratar das coisas naturais e que, portanto, não seria coerente recorrer a eles para contrapor argumentos à sua investigação da natureza, que se pretendia comprovada por suas observações da natureza, especialmente da lua e de Júpiter - ressalvando-se que hoje se sabe que algumas de suas importantes “experiências” não eram propriamente sensíveis, porém mentais (como a ideia do movimento no vácuo e inercial). Como Galileu, também Kepler e Newton não contrapuseram os resultados de suas pesquisas naturais à teologia cristã, mas trataram de considerar que o interesse e modo de tratamento dessas duas áreas eram completamente diferentes, auxiliados por filósofos importantes, que, no contexto dos primeiros séculos da modernidade, abordaram questões de método investigativo adequado à ciência, como René Descartes e Francis Bacon, que, embora apresentando instâncias de decisão últimas do real e verdadeiro diferentes (respectivamente, a capacidade racional e a capacidade de experiência sensível), ambas instâncias eram estritamente humanas e comuns a todos os seres humanos, não dependendo de uma ocasional revelação divina, como se pensava presente na própria escrituração da Bíblia ou em outras ocorrências que consideravam sobrenaturais - os milagres. Para muitos desses pensadores da modernidade, a ordem do mundo é expressão da inteligência de um arquiteto divino e que podia o ser humano, dotado de inteligência, revelar, independentemente da ação direta de Deus. A ideia de um Deus como um relojoeiro e o mundo como o seu relógio bem ilustrava o quanto o funcionamento da criatura já não mais dependia da presença do seu criador. A inteligência do criador estava no seu relógio, mas já não era o seu próprio criador, de tal modo que, nesta distinção, Deus era transcendente (e imaterial, pois não espácio-temporal) e, como tal, completamente transcendente às capacidades humanas, e o mundo era o imanente (e material, pois submetido ao tempo e ao espaço), no qual estamos inseridos, sendo-nos acessível e passível de ser por nós perscrutado diretamente, alcançando as constantes de seus movimentos. Pouco a pouco e cada vez mais, a teoria do conhecimento moderna acreditava-se desvinculada dos pressupostos metafísicos, ainda predominantemente compreendida como o que não nos é dado imediatamente aos nossos sentidos corpóreos.


11. Essa tendência no campo epistemológico moderno alcançou o seu ápice com a ciência pensada ao modo kantiano, que tenta manter a ciência para dentro dos limites da razão humana e que se constrói a partir da experiência. Para além dos limites dessas nossas capacidades, somos incapazes de conhecimento rigoroso, ficando entregues às especulações, antinomias ou aporias lógicas, divagações e ilusões. Em contrapartida, temos aqui um “subjetivismo transcendental”, que incidirá numa efervescência filosófica chamada “idealismo alemão”, que na pena de Hegel tudo reduzirá a um “Espírito Absoluto”, a uma unidade inegavelmente metafísica, ainda que se apresente como desdobramento histórico panteico.


12. É nesse período de predominância do pensamento hegeliano que surgem as reflexões de Ludwig Feuerbach, que inclusive participa de um grupo de pensadores “revolucionários”, a “esquerda hegeliana. O importante na obra de Feuerbach é que ela se irrompe no seio da esfera que se tem inequivocamente como “metafísica”, a religião, alvejando a concepção maior da filosofia da religião, o conceito de Deus, reduzindo toda teologia a uma antropologia, ou seja, reduzindo todo o seu caráter ainda metafísico às contingências das necessidades mais mundanas do ser humano, que é a de expressão de si próprio, mas dialeticamente. Tudo o que é limite ou falta em si mesmo (subjetivo), o homem o projeta para fora de si (objetivo): se o homem conhece algumas coisas, mas não tudo, a onisciência está para além do humano; se o homem tem algum poder, mas não todo poder, a onipotência está para além dele; se o homem se faz presente aqui e agora, a onipresença é algo para além dele... Ou seja, projetamos para fora de nós mesmos o que, sendo falta em nós, se nos apresenta como objeto maior do nosso amor, acreditando que o poder infinito, o conhecimento infinito, etc., são o próprio infinito, ao qual também chamamos de Deus ou Absoluto. Em Deus se encontra maximamente o que almejamos e, assim, amamos a Deus sobre todas as coisas. E como Deus (embora assim criado por nós) nos parece ulteriormente maior do que nós mesmos, tomamo-lo não na condição de objeto (como realmente é), mas como sujeito, ao mesmo tempo que nós que o criamos disso esquecemos e nos percebemos a nós mesmos como por ele criados, na condição, pois, de objetos. Finalmente, consideramos que fomos criados por ele à sua imagem e semelhança, não obstante, em verdade, fomos nós quem o criamos à nossa imagem e semelhança. Conclui-se disso, que nem mesmo o sumo-conceito metafísico tem a existência em si e por si mesmo, mas é produto humano, não ultrapassando as cercanias mundanas. Tudo sucumbe à condição concreta do mundo humano. Estabelece-se, assim, as bases do materialismo contemporâneo, seguro que o Deus da religião está morto, por não ser precisamente como o homem religioso o pensa, mas não é irreal, quando é compreendido como a expressão máxima e infinita de tudo o que o ser humano mais ama.

26 de nov. de 2020

VÍDEO III: A Dialética Hegeliana.

 Rodrigo Rodrigues Alvim


Para assistir ao vídeo, clique no link abaixo e, em seguida, no centro da tela, para começar:

A Dialética Hegeliana.mp4 - Google Drive



15 de jun. de 2015

TEXTO XXXVII: Sobre o Pensamento Hegeliano

Rodrigo Rodrigues Alvim


01. Teríamos muito que escrever, a fim de compreender o trânsito da filosofia kantiana para o pensamento elaborado por Georg Wilhelm Friedrich Hegel. No entanto, o desafio é, aqui, ao mesmo tempo, ser breve, algo comumente difícil aos filósofos. Mas é, por isso mesmo, um desafio, do qual não esquivaremos, adiantando as nossas desculpas a quem pretende algo mais pormenorizado.

02. Hegel faz parte de um movimento de pensamento europeu que foi denominado “Idealismo Alemão”, que adveio de um entusiasmo de leitura das obras de Immanuel Kant, já considerado um “divisor de águas” dentro da filosofia ocidental. Ocorreram desdobramentos e posicionamentos filosóficos marcantes nesse período, dentre os quais nos cabe destacar os pensamentos de Johann Gottlieb Fichte e Friedrich Schelling, com os quais Hegel estabeleceu diálogos imprescindíveis para uma mais aprofundada compreensão de sua filosofia.Contudo, nos estreitos limites que antes colocamos, começaremos destacando o que o próprio Kant tinha consciência ser uma revolução: se a tradição filosófica se dedicou à tarefa de tentar dizer racionalmente as coisas, a razão deveria, antes, ter se dedicado à tarefa de dizer-se a si mesma, em sua condição “pura” ou “transcendental”, ou seja, sem qualquer coisa que lhe seja estranha ou distinta, tal como qualquer experiência das coisas que dizemos equivalerem ao mundo. A razão como que se pergunta em seu próprio nascedouro: o que sou , este que pergunta sobre o que é tudo mais? É tal intento que dará nome à sua primeira “crítica”, que é a Crítica da Razão Pura. Noutros termos, o eixo epistemológico deixa de ser a coisa sobre a qual a razão translada, mas a razão que aí mesmo se coloca. Não é mais, portanto, a coisa que se quer conhecer que se impõe a uma razão tabula rasa, mas é a coisa que se conforma às determinações constitutivas da razão a priori. Nesse sentido, Kant exemplifica:

Quando Galileu deixou as suas esferas rolar sobre o plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, ou quando Torricelli deixou o ar carregar um peso de antemão pensado como igual o de urna coluna de água conhecida por ele [...]: assim acendeu-se uma luz para todos os pesquisadores da natureza. Compreenderam que a razão só discerne o que ela mesma produz segundo seu projeto[...].


03. Na relação epistemológica entre o sujeito S (razão), que quer conhecer a coisa C, e a coisa C, que o sujeito S (razão) pretende conhecer, o conhecimento deixa de ser compreendido ao modo aristotélico, como uma “adequação do intelecto (razão,) sujeito S, à coisa C”, para ser compreendido como “uma adequação da coisa C às predeterminações inatas do intelecto, sujeito S”, isto é, às condições constitutivas a priori da razão, o que resulta não no que a coisa C seja em si mesma (noumenon), mas no que a coisa C é para nós (fe-noumenon, fenômeno ou objeto), no modo como ela, a coisa C, nos parece ou aparece. Conhecer o mundo implica a experiência (algo em que os empiristas insistiam), mas tal conhecimento ocorre sempre em nível de representação da razão (algo em que os racionalistas insistiam). Assim, de certa forma, Kant promoveu uma conciliação entre razão e experiência, como propugnavam os pensadores iluministas, o que o levou a escrever que “todo conhecimento começa com a experiência, mas nem todo ele advém da experiência.
  
04. Nesse pano de fundo, evidencia-se que o que se denomina “mundo” é necessariamente “mundo humano”. Essa ênfase incidirá na centralidade da “antropologia transcendental” relativamente a qualquer outro campo de interesse filosófico, inclusive relativamente ao próprio campo epistemológico que a gerou, o que ficará ainda mais claro na Crítica da Razão Prática e também na Crítica do Juízo.

05. Essa autonomia da razão ou da consciência encontrou terreno fértil no contexto da Europa que abrigou os ideais da Revolução Francesa e vivia as suas consequências nos seus demais Estados Nacionais ou principados, quando o tema da liberdade e da igualdade eram temas inevitáveis, também nos círculos filosóficos.


06. Os meandros são complexos, mas Hegel considerava que a razão humana não poderia ser fundamento de sua própria crítica, de tal sorte que, em sua obra, a razão se deslocou do campo antropológico para o campo da ontologia: a Razão Universal, a Unidade da Consciência, o Espírito Absoluto são termos afins que compreendiam a própria razão humana, ultrapassando-a infinitamente, entretanto. Ademais, Hegel afirma-a como atividade e processo, como melhor explicitaremos.

07. Salientar que Hegel participou da transição do classicismo ao romantismo talvez facilite a nossa exposição. Uma das grandes características do primeiro período era a ênfase na razão, enquanto o segundo estimava a arte. A distinção que ora nos interessa se encontra no continuum de uma cadeia de raciocínio, de um ir a outro sempre pela mediação de um terceiro, de um processo que contrasta ao sem mediação, ao imediato da inspiração artística, da intuição do artista. Sendo assim, o absoluto caracteriza a manifestação desse segundo, dando-se assim mesmo como é: na sua inteireza, no seu todo, de uma só vez. Esta última compreensão não será a de Hegel, segundo o qual o absoluto é pensamento, é razão, é consciência que se dá a si mesma (autoconsciência) não de uma só vez, mas paulatinamente, em processo, sendo tal desdobramento o que tomamos como tempo e história: os acontecimentos históricos são um filão do mesmo, de uma identidade por princípio e por fim, pensamento de si próprio, pensamento de pensamento, como que uma ex-plicação do Uno, da Unidade, do Absoluto, se lembrarmo-nos que ex-plicare é um verbo latino derivado de plicare, que significa dobrar (dobrar para fora, desdobrar). Sendo assim, a Verdade se revela, para Hegel, como história, numa multiplicidade que se refere ao mesmo e assim tem suas partes interligadas necessariamente, mundo no qual nada é inexplicável como um insight, uma intuição, uma inspiração que não se pode rigorosamente pensar, porque se revela sem antes e sem depois. Arrisca-se, então, que a razão ou unidade não é obra do pensar humano, mas, antes, obra da Totalidade que se revela ao pensar e, se não há outro, ao pensar a si próprio, em cadeia, o que somente depois e, por isso mesmo, permite que a pensemos mediante os acontecimentos que são os seus desdobramentos, que, portanto, se mostra a si mesmo e que se nos mostram como o que tomamos por realidade, vida, existência, universo, mundo.

08. Posto assim, observa-se que a dificuldade que, em geral, o pensamento filosófico tinha com a história e com o mundo, entendidos como multiplicidade inconstante, e que, dessa forma, não favoreciam, a partir de si próprios, a construção de um conhecimento seguro do real, é superada por Hegel, que, por sua vez, considera o real como processo histórico ou, como dissemos anteriormente, como revelação, manifestação ou fenomenologia do verdadeiro, do Espírito Absoluto. Ora, uma das dificuldades da tradição filosófica em assim aceitar é que tal multiplicidade é muitas vezes contraditória ou excludente, o que, pela perspectiva de uma lógica binária (segundo a qual o-que-é é e o-que-não-é não é)incide em confusão e absurdo. Logo, é imprescindível já introduzir a lógica outra pela qual Hegel comporta a contradição, que é a dialética. Conforme essa lógica e muito ao contrário da lógica binária, a contradição não incide em erro ou no irreal, mas é ela o cerne da vida ou o que garante a dinâmica do mundo e do verdadeiro. Melhor dizendo, Hegel recupera uma concepção praticamente esquecida da Antiguidade Clássica Grega e sustentada por Heráclito de Éfeso, segundo a qual algo se revela concomitantemente ao seu oposto, ou seja, sempre quando algo se afirma, sua afirmação (e satisfatória compreensão) só é possível pela igual afirmação do seu contrário, que, por sua turno e não menos, é-lhe a sua negação. Há nisso uma tensão que se resolve não na exclusão de um extremo ou outro (pois um tem o seu ser no outro), porém pela instauração de um terceiro, que supera aquela contradição, mas também a conserva, visto que ele mesmo é resultado e só pode ser compreendido por aquela contradição anterior e pela contradição que agora ele também estabelece com o seu contrário (lembrando que “quando algo se afirma, sua afirmação só é possível pela igual afirmação do seu contrário”), incidindo em nova contradição, que se desdobra em nova síntese, que é nova tese que se coloca em mesmo tempo que o seu contrário, e assim sucessivamente, revelando-se processo infinito, que perpassa todas as coisas, que é o Absoluto. E é dessa a maneira que esse todo se manifesta pouco a pouco como história, acontecimentos, mundo.

09. O Absoluto é pensamento, sendo que a atividade de pensamento se exerce sobre algo. Como no caso do Absoluto não há outro no qual se poderia exercer, esse pensamento se exerce sobre si mesmo, sendo pensamento de pensamento. O pensamento “em-si” se torna “para-si” mesmo: sai como que de si para dar-se a si mesmo, num processo infinito de reflexão. Noutros termos, o Absoluto sujeito se desdobra para “fora-de-si” na condição de Absoluto objeto, mundo, história. E à medida que tal Absoluto vai pensando a si mesmo, destina-se à síntese do Sujeito e Objeto, que Hegel chama de Concreto. Ocorre que todo esse alinhavar de momentos antitéticos e sintéticos também são cada qual desdobra mento antitético e sintético. Em Hegel, pois, a dialética não é propriamente um método, mas, sim, a natureza das próprias coisas e que, por isso mesmo, para que possam ser bem pensadas por nós, só poderão ser bem pensadas dialeticamente.

10. A partir daí, nenhum momento tem sentido em si mesmo, mas somente dentro do todo do qual faz parte, que é o Absoluto. Por isso, inevitavelmente, a filosofia hegeliana propõe-nos um sistema. Cada um só pode ser bem compreendido dentro do contexto do qual faz parte, que, por seu turno, faz parte de um contexto maior e, assim, sucessiva e ininterruptamente . O aqui e agora é um momento necessário do Espírito Absoluto: é como se tudo o que aconteceu assim aconteceu para que o aqui e agora seja; no entanto, também o aqui e agora deixará de ser, a fim de que tudo seja. Cada momento é, enfim, necessário e contingente, pois nada antes ou depois seria se este momento que somos não fosse, porquanto tudo é parte constitutiva do mesmo Espírito. Contraditório? À filosofia hegeliana, isso não é ofensa, porém é a mola dos acontecimentos: dialética!

11. Didaticamente, diz-se que a semente se realiza e se afirma num broto, embora um broto seja exatamente a negação da semente, que assim deixou de ser. Não dá para negar que a semente permanece no broto, pois, não fosse, não se teria igualmente broto. Mas deixou de ser, a fim de que o broto fosse. Assim a semente é necessária e contingente. Da mesma maneira, o broto se realiza e se afirma num arbusto, embora um arbusto seja exatamente a negação do broto, que assim deixou de ser. Não dá para negar que o broto permanece no arbusto, pois, não fosse, não se teria igualmente arbusto. Mas deixou de ser, a fim de que o arbusto fosse. Assim também o broto é necessário e contingente. A dialética é a dinâmica de tudo.

12. Bem, fiz o compromisso de não me delongar no tratamento precisamente do que é uma delonga sem fim. De qualquer forma, espero que este texto possa ser útil àqueles que gostariam de uma primeira palavra sobre o pensamento hegeliano. Por fim, remeto-lhes ao vídeo seguinte, a fim de que possam confirmar, por outra breve exposição, o que aqui foi tratado.