Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





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29 de out. de 2020

TEXTO XXXIX: Algumas Palavras sobre a Ética Kantiana.

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tratamos em outro texto (1) do pensamento de Immanuel Kant em relação à ciência. Segundo as razões apresentadas pela filosofia kantiana, a ciência seria o único modo de compreensão e expressão de mundo que poderia ser adequadamente denominado “conhecimento”. Isto seria o mesmo que dizer que tratamos de uma de duas de suas obras de maior referência ainda hoje, intitulada Crítica da Razão Pura, na qual Kant define a capacidade racional humana, cujos limites estabelecem o que humanamente podemos conhecer (cientificamente) e o que, estando para além das fronteiras dessa nossa capacidade racional, não podemos conhecer. Toda essa reflexão kantiana acontece, obviamente, em seu diálogo indireto com as principais considerações epistemológicas de seu contexto, da cultura europeia moderna, expressas sumamente por quatro vertentes, o intelectualismo, o empirismo, o fideísmo e o ceticismo, das quais também já tratamos em outro texto (2). Disso resultou a posição epistemológica paradigmática à transição da modernidade para a contemporaneidade filosófica europeia, a qual comumente denominamos “criticismo”, que assim pautará as dedicações das filosofias mais marcantes do início deste período histórico ao qual ainda dizemo-nos pertencer.


02. A Crítica da Razão Pura defendeu ao seu modo a tese do filósofo David Hume quanto à impossibilidade de um conhecimento da natureza pretensamente metafísico, insistindo Kant, pois, que todo conhecimento começa com a experiência do mundo, precondição da “nova” ciência, da ciência moderna a que as obras “físicas” de Galileu-Galilei e Isaac Newton estavam filiadas. Pela dialética das formas da sensibilidade e das categorias do entendimento humanas aplicada à matéria da experiência, temos para nós um mundo onde tudo acontece em arranjo necessário, expressas em leis científicas. No contexto desse “reino da necessidade”, onde as coisas só podem assim ser, a ciência é imperatriz e resultado de uma razão que reconhece os seus próprios limites, daí concluindo que muito se pode conhecer, mas não o que possa se encontrar para além desses seus limites, como a metafísica historicamente se aventurou em temas como a existência de Deus, a liberdade da alma humana, o mundo em sua inteireza.

03. Nem tudo, todavia, termina aí para Kant, o que nos revela aquela segunda obra que, com a Crítica da Razão Pura, garantiu fama ao seu autor, obra que recebeu o título de Crítica da Razão Prática.


04. A história da filosofia foi vivamente movida por atenção a dois horizontes: pelo horizonte concernente ao conhecimento humano (e verdadeiro) acerca do mundo e pelo horizonte concernente ao agir humano (e virtuoso) no mundo. Para Kant, é a ciência que adequadamente realiza o primeiro, sendo a ética a realização do segundo. Se a ciência cuida do conhecimento do “reino da necessidade”, conforme ao que no mundo é ou pode ser, a ética nos reporta à ação humana no “reino da liberdade”, conforme ao que deve ser. Se no primeiro reino o homem se submete à experiência do mundo – o que faz da ciência obrigatoriamente “antimetafísica”, no segundo reino o homem decide sem levar em conta o que o mundo possa lhe oferecer, o que, neste sentido, faz da ética uma manifestação “metafísica”. 

05. Compreendamos isso melhor, mas já tomando por certa a nossa compreensão da concepção dessa ciência “antimetafísica” em Kant, pelo que, já dito, tratamos em outro lugar, de maneira que agora ficamos tão-só disponíveis à abordagem ética.

06. Como a responsabilidade da ação humana só pode ser atribuída ao sujeito da ação enquanto sujeito livre, Kant não permite uma associação da ética à “heteronomia” ou, em outras palavras, da decisão do agir por uma adesão a uma norma ou regra originalmente estranha ao sujeito da ação e, neste sentido, “mundana”. A determinação da ação do sujeito deve se dar a partir da consciência que ele é e a partir da qual ele, portanto, responde ao que o contexto lhe coloca. Então, Kant propõe uma decisão que acontece no mundo em que o humano se insere, mas que não se impõe pelo mundo ao humano. A responsabilidade e virtuose éticas evocam “autonomia” do sujeito. Veremos, contudo, que esta decisão subjetiva não é relativa ou arbitrária, porém, muito pelo contrário, é ela, por princípio, universal, pois radica na consciência de todo e qualquer ser humano, uma vez que, para Kant, como igualmente presente em sua epistemologia, o que nos faz especificamente humanos é compartilharmos de uma mesma estrutura psíquica ou mental, uma consciência ou razão que Kant chama de “transcendental”, de tal modo que todas as particularidades são, para ele, aquisições posteriores que, aqui, não devem ser levadas em conta. Essas aquisições “a posteriori” são de interesse de uma antropologia empírica (que hoje denominaríamos predominantemente de cultural). À antropologia “transcendental” kantiana, somente aquela estrutura formal e inata em todo e qualquer ser humano importa na garantia de uma instância que seja, por consequência, universal ao humano e universalizante do humano.

07. Observa-se, então, que Kant, em sua obra ética Crítica da Razão Prática retorna à sua concepção do sujeito transcendental, cuja estrutura não se define pelos contextos acidentais vividos por cada ser humano, mas por aquilo que ele é aprioristicamente, como que antes de toda e qualquer experiência sua no mundo ou contextualização particular. Para Kant, o sujeito transcendental é constituído do que ele denominou “imperativos categóricos”, de mandatos de ação presentes em toda consciência humana e que se fazem ouvir no sujeito que, estando no mundo, tem que tomar decisões em conformidade com essa sua própria consciência transcendental, incondicional, garantindo-lhe, assim, a sua liberdade, responsabilidade e decisão eticamente adequada. Escreve Kant:

“Proposições fundamentais práticas são proposições que contêm uma determinação universal da vontade, « determinação » que tem sob si diversas regras práticas. Essas proposições são subjetivas ou máximas, se a condição for considerada pelo sujeito como válida somente para a vontade dele; mas elas são objetivas ou leis práticas, se a condição for conhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ente racional.” (3).

08. Esses “imperativos categóricos” que devem nos nortear a todos e não somente a alguns e em determinadas situações são diferentes dos “imperativos hipotéticos”, pois enquanto estes últimos visam a determinados fins no mundo, sendo a sua fórmula “se (queres) X, então (faças) Y”, aqueles primeiros não estabelecem propriamente finalidades ou, na insistência de se manter tais termos, só se poderia dizer que eles têm fins em si mesmos, na própria consciência transcendental dos quais são constitutivos, na humanidade, jamais admitindo o próprio humano como meio, sendo a sua fórmula simplesmente “(deves) W”, quando, pois, à possível pergunta “mas, por que devo?”, não se tem resposta em outra coisa, senão nele mesmo: devo porque devo.

09. Quem, pois, assim não decide, porém decide pelo que o mundo, o seu contexto, possa naquele momento lhe impor como determinação de sua ação, torna-se escravo do mundo, não é livre, é “heterônomo” e se põe tutelado ao mundo, à experiência do mundo, como se assim não houvesse ainda saído de uma menoridade moral. Eis, para Kant, a lei fundamental da razão prática pura:

“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal.” (4).


10. Como palavras finais, deixo as palavras finais do próprio Kant em sua obra Crítica da Razão Prática, num paralelo breve do que tratou nesta obra (a ética) e o que tratou na Crítica da Razão Pura (a ciência):

“Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas; o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. Não me cabe procurar e simplesmente presumir ambas como envoltas em obscuridade, ou no transcendente além de meu horizonte; vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a consciência de minha existência. A primeira começa no lugar que ocupo no mundo sensorial externo e estende a conexão, em que me encontro, ao imensamente grande com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, além disso, ainda a tempos ilimitados de seu movimento periódico, seu início e duração. A segunda começa em meu si-mesmo [Selbst] invisível, em minha personalidade, e expõe-se em um mundo que tem verdadeira infinitude, mas que é acessível somente ao entendimento e com o qual (mas deste modo também ao mesmo tempo com todos aqueles mundos visíveis) reconheço-me, não como lá, em ligação meramente contingente, mas em conexão universal e necessária. O primeiro espetáculo de uma inumerável quantidade de mundos como que aniquila minha importância enquanto criatura animal, que tem de devolver novamente ao planeta (um simples ponto no universo) a matéria da qual ela se formara, depois que fora por um curto espaço de tempo (não se sabe como) dotada de força vital. O segundo espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente meu valor enquanto inteligência, mediante minha personalidade, na qual a lei moral revela-me uma vida independente da animalidade e mesmo de todo o mundo sensorial, pelo menos o quanto se deixa depreender da determinação conforme a fins de minha existência por essa lei, que não está circunscrita a condições e limites dessa vida mas penetra o infinito.”

“No entanto, admiração e respeito podem, em verdade, estimular a investigação, mas não substituir a sua falta. Que é que se precisa, pois, fazer para pôr em marcha esta investigação de modo útil e adequado à sublimidade do objeto? Exemplos podem servir aqui de advertência, mas também para a imitação. A contemplação do mundo começou do mais grandioso espetáculo que só os sentidos humanos podem sempre oferecer e que só o nosso entendimento, em sua vasta abrangência, pode sempre suportar perseguir, e terminou – na astrologia. A moral começou na mais nobre propriedade da natureza humana, cujo desenvolvimento e cultura voltam-se a uma utilidade infinita, e terminou – no fanatismo [Schwärmerei] ou na superstição. Assim se passa com todas as tentativas ainda rudes, nas quais a parte mais nobre do ofício depende do uso da razão, que não se verifica por si mesmo, como o uso dos pés, pelo exercício frequente, principalmente se ele concerne a propriedades que não podem apresentar-se tão imediatamente na experiência comum. Mas depois que, embora tardiamente, entrou em voga a máxima de examinar antes bem todos os passos que a razão se propõe dar, e de não a deixar seguir o seu curso de outro modo que na linha de um método bem refletido o ajuizamento do sistema do universo tomou uma direção totalmente diversa e, com essa, ao mesmo tempo uma saída incomparavelmente mais feliz. A queda de uma pedra, o movimento de uma funda, resolvidos em seus elementos e nas forças que neles se mostram e elaborados matematicamente, produziram enfim na estrutura do mundo aquela perspiciência clara e imutável para todo o futuro, que pela observação continuada só pode esperar ampliar-se sempre, mas jamais deve temer que tenha de voltar atrás. 

“Aquele exemplo pode aconselhar-nos a encetar agora este caminho no tratamento das disposições morais de nossa natureza e dar-nos esperança de um bom êxito semelhante. Pois temos à mão os exemplos da razão que julga moralmente. Ora, analisando-os em seus conceitos elementares, propondo-se – mediante repetidos ensaios sobre o entendimento comum – na falta da Matemática, um procedimento, contudo, semelhante à Química, de separar o empírico do racional suscetível de encontrar-se neles, podem ambos os elementos ser com certeza reconhecidos por nós em sua pureza e o que cada um possa por si só realizar. Deste modo pode em parte evitar-se a desorientação de um ajuizamento ainda rude e pouco exercitado e, em parte (o que é de longe mais necessário), as extravagâncias do gênio, pelas quais, como sói acontecer com os adeptos da pedra da sabedoria, sem nenhuma investigação metódica e nenhum conhecimento da natureza são prometidos tesouros sonhados e são dissipados tesouros verdadeiros. Em uma palavra, a ciência (buscada criticamente e introduzida metodicamente) é a porta estreita que conduz à doutrina da sabedoria, se por esta não se entender simplesmente o que se deve fazer, mas o que deve servir de norma a mestres para aplanar bem e demarcadamente o caminho da sabedoria, que cada qual deve seguir, e proteger a outros de caminhos falsos; uma ciência cuja guardiã tem que permanecer sempre a Filosofia, em cuja investigação sutil o público não tem de tomar nenhuma parte, mas certamente nas doutrinas, que após uma tal elaboração podem tornar-se pela primeira vez verdadeiramente claras a ele.” (5).
___________________________ 

(1) “Immanuel Kant e a ciência”. 
(2) “Traços da filosofia moderno” 
(3) KANT, Immanuel. Crítica a razão prática. Tradução, introdução e notas de Valerio Rohden. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. p. 31-32. 
(4) Idem. p. 51. 
(5) Idem. p. 255-258.

18 de dez. de 2011

TEXTO XVII: Moral ou Ética?

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Há quem prefira dizer que não há nenhuma diferença significativa ou decisiva, para os nossos dias, entre "Ética" e "Moral". No entanto, há inegavelmente uma distinção histórica, que se constata a partir da etimologia desses termos: "Ética" é uma palavra de origem grega e "Moral" é uma palavra de origem latina. Pode-se, pois, esperar que isso arraste consigo todo um patrimônio cultural, distintos em certa medida, do qual gostaríamos de destacar a tendência maior dos gregos à abstração, ensejada pela atividade racional, comparativamente aos romanos, muito mais pragmáticos, em vista dos seus interesses indisfarçáveis de expansão e complexidade sócio-política.

02. Por isso mesmo, percebem alguns que "Moral" é um termo muito mais destinado às determinantes do comportamento habitual, cotidiano e não propriamente reflexivo. Seria mais adequadamente destinado aos costumes, advindos de uma educação que cada um recebe desde tenra idade, através do convívio familiar, escolar, religioso, etc., e que, por isso mesmo, remete-nos imediatamente à nossa cultura, ao nosso modo de agir, partilhado e rotineiro, e, diríamos, aparentemente espontâneo. Logo, uma vez que somos seres gregários, não há como alguém ser "amoral". Quanto ao adjetivo "imoral", trata-se de uma característica que se atribui, numa dada sociedade, àqueles que contrariam, por seus atos, ao comportamento padrão ou dominante.


03. "Ética", por sua vez, implicaria uma reflexão (sempre muito importante aos filósofos gregos) sobre essas determinantes dos nossos atos correntes ou, como de outro modo poderíamos dizer, implicaria um ato de pensamento sobre a nossa "Moral": um ato de consciência propriamente dito. Não obstante para muitos isso pareça um "distanciamento da vida", é exatamente essa abstração (e "metafísica") que como que nos aparta de nós mesmos, condição sine qua non para que nos exerguemos tal e qual somos, bem como que há outros modos de ser. Esse processo de "estranhamento" de nós mesmos, vendo-nos como outro ao lado de outros ainda, nos leva indelevelmente a nos reconhecer que somos assim, mas que podemos ser diferentes, que agimos comumente dessa forma, mas que podemos, agora, reconhecendo outras possibilidades de ação, escolher ser diferentes: somos, portanto, livres!

04. Essa nossa condição particularíssima levou-nos à concepção de que estaríamos no centro ou no ápice de tudo o que se encontra no mundo (e que é o mundo), uma tendência que marcará praticamente a nossa história.

05. Antropocêntricos e antropomórficos assim, nós podemos nos surpreender com a hipótese de que talvez não sejamos o animal por excelência, mas, ao contrário, talvez sejamos exatamente o animal que, por assim dizer, "não deu certo", pois falta-nos instintos pelos quais os demais animais se mantêm na vida e, por isso mesmo, já deveríamos ter desaparecido da face do nosso planeta, não fosse o curioso fato de que, na medida em que os fomos perdendo, ocorreu em nós uma capacidade inusitada, a qual denominamos "razão" ou "pensamento" ou "consciência", dentre outros termos mais.



06. Se tormarmos os instintos como respostas que a própria natureza misteriosamente incutiu nos animais às demandas que a própria natureza lhes faz, tal natureza, qual algo pronto e acabado, não se encontra no homem, o que permitiu com que este se visse mais como um ente diante da natureza do que como um ente na natureza. Na ausência de tais respostas como que prévias e determinantes dos atos do gênero humano (ou da espécie humana), o homem, em suas diferentes respostas aos mesmos desafios naturais, vai se compreendendo, muito paulatinamente, não como uma simples amostra de uma categoria, mas como "pessoa" que se faz segundo as suas decisões - uma singularidade.

07. Ainda que todas as coisas estivessem predestinadas, não seriam assim ao homem, que, como parte de tudo o que acontece e assim limitado, escolhe sempre dentro dos limites que então possui, em situação. E diante dos desafios que a vida lhe impõe, não tem como não escolher (se mesmo não escolher é , paradoxalmente, uma escolha que se faz).

08. Nessa crise instituida por possibilidades (afinal, mesmo diante de um único caminho, pode-se optar por não trilhá-lo), o homem inevitavelmente faz escolhas, mas jamais escolhas inevitáveis; fazendo escolhas, cada um se torna o que é. Ademais (como sublinhava Sartre), cada qual é o único responsável pelas escolhas que fez, pois mesmo quando eu faço o que outros me disseram, fui eu quem escolhi fazer o que esses outros me disseram - sem subterfúgios. Finalmente, é preciso observar que cada ato de escolha que se faz há de ecoar como igual juízo de valor que se faz, pois como que "dentre tudo o que ora se me dispõe, escolho precisamente isso!"

09. Nesses termos, tudo-que-sou sou por mim, não havendo distinção entre os meus atos e aquilo que eu chamo de "minha interioridade". Tudo-que-sou sou por mim e não por outrem. Daí que, numa abordagem certamente pragmática, o grande ideal sociopolítico é a internalização da lei em cada indivíduo. Agir assim, mediante lei que me é externa, sempre implica sanções, positivas ou negativas, no intuito de se garantir. Por isso mesmo, se um cidadão age em conformidade com a sociedade (e principalmente com o seu Estado), à qual fisicamente se insere, melhor que o seja como sendo por valores próprios. Formar as consciências, este tem sido o ideal de toda comunidade humana. A lei (externa) é apenas um atalho para esse "panótico", um recurso nada ideal para se alcançar os fins da unidade sistemática da ação social. Comumente, direitos são sanções positivas ao cidadão, que é cidadão simplesmente porque e enquanto cumpre os seus deveres [internalização do que dele a sociedade quer - e faz querer como se fosse, antes, querer do próprio cidadão, pois, como dissemos, não há real distinção entre a "interioridade" (o querer, as convicções...) e a ação; portanto, é querer mesmo do próprio cidadão]. Rigorosamente,não são os valores sociais que se impõem ao sujeito, quando este já os assimilou; ele, este sujeito, é tais valores e tal cidadão.


10. Se por questões "morais" podemos nisso incidir, somente a "ética", enquanto capacidade de reflexão sobre os nossos atos e de suas determinantes, pode nos deixar entrever alguma possibilidade de real liberdade sociopolítica, pois importa, como dissemos antes, naquela nossa capacidade de tomarmos distância da condição a que imediatamente estamos mergulhados, permitindo-nos, inclusive e assombrosamente, que questionemos a nós mesmos quanto ao que somos (equivalente de nossas escolhas). Idealizarmo-nos, nesse sentido, contra o que estamos sendo é o que mais ameaça o status quo e a cultura de massa. Logo, ser "ético" não é, por natureza, ser "politicamente correto", porém é revolver (é revirar) o que está estabelecido, a fim de nos decidir, ainda que seja, mas não necessariamente, por sermos o que contingentemente vem sendo tomado como "politicamente correto". Ser ético, portanto, é revolver o que somos e não somos, para decidir outra vez e sempre, pelo mesmo ou por outra coisa, conscientes dos motes de nossa decisão ["hipotéticos" ou que se quer "transcendentais" ("categóricos"), para usarmos termos consagrados em Kant], que coincide com o nosso bem como "ser-com-os-outros".

11. Dessa maneira, pode-se compreender, preliminarmente, não apenas que a "Moral" é indissociável do humano e que a "Ética" é a tomada de consciência dessa nossa condição, mas também o quanto elas estão correlacionadas, de modo estreito, às questões sócio-políticas, correlação, em não raros momentos, antitética.