Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





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13 de mar. de 2014

TEXTO XXXV: Preâmbulo à Filosofia da Metodologia Científica

Rodrigo Rodrigues Alvim


Metodologia” é um termo da língua portuguesa que vem da confluência de três termos gregos:



Metodologia:


Meta

Odos

Logos
-

-

-
“ao largo”, “além”;

“caminho”;

“discurso”, “estudo”.

Metodologia é o discurso acerca do caminho a se trilhar para se alcançar o que se encontra além ou adiante. Noutros termos, é ela a explicitação antecipada das regras ou dos procedimentos a se observar para se atingir determinados objetivos. Por ela percorre-se idealmente o caminho que se quer realizar a seguir e, neste sentido, ela se impõe como “bússola” imprescindível de toda e qualquer atividade científica, a fim de que não nos percamos no decorrer desta mesma atividade.

Idealização para realização, a metodologia não se reduz a uma preocupação com o método, mas se completa numa igual preocupação técnica.

Técnica”, também de etimologia grega, significa “instrumento”. E como nenhum instrumento tem um fim em si mesmo, também aqui é a técnica científica o meio através do qual transpomo-nos do ideal para o real: no desenvolvimento de um projeto de pesquisa, do que se tem apenas por hipótese ao que se é; no desenvolvimento de um projeto de trabalho, do que se deve ser ao que de fato se realiza.

Quanto à questão dos métodos, os mais conhecidos são o indutivo e o dedutivo.

Indução” é o movimento [“inferência” (passagem ou trânsito de um a outro)] que se faz de casos particulares a uma afirmação geral ou universal:

                        O bronze, quando aquecido, dilata-se;
                        O níquel, quando aquecido, dilata-se;
                        O ferro, quando aquecido, dilata-se;      .
            Logo:  Todo metal, quando aquecido, dilata-se.

Dedução” é o movimento (inferência) que se faz de uma afirmação geral ou universal ao(s) caso(s) particular(es):

                        Todo metal, quando aquecido, dilata-se;
                        A prata é metal;                                      .
            Logo:  A prata, quando aquecida, dilata-se.

Mais adiante, veremos as relações possíveis ou não entre esses dois métodos básicos. Contudo já podemos adiantar que, atualmente, reconhece-se o uso de ambos na atividade científica, mas com diferentes ênfases em momentos bem distintos. Embora logicamente excludentes, seriam eles, nas diversas etapas do labor científico, complementares. Além disso, o domínio da compreensão de ambos é condição sine qua non para a compreensão de métodos outros mais refinados como o histórico ou genético, o sincrônico ou estrutural, o fenomenológico, o dialético (...) e de todo o debate que se construiu sobre a pretensão “explicativa” das Ciências da Natureza e a “compreensiva” das Ciências Humanas.

Sumamente, o objetivo último de toda Ciência, como seu próprio nome já nos revela, é tomar ciência, é conhecer. Por isso, toda Ciência implica projetos de pesquisa. E, uma vez realizada a própria pesquisa e o conhecimento de seu assunto proposto, espera-se ser possível a intervenção nessa realidade que se conhece, seja para mantê-la tal e qual, parcial ou totalmente, seja para transformá-la em algum de seus aspectos ou completamente, o que, por seu turno, faz com que a Ciência também se desdobre como projetos de trabalho. Deve-se destacar que a intervenção ou manipulação da realidade é uma característica predominante e distintiva do que os primeiros modernos chamaram de “Nova Ciência” ou do que nós contemporaneamente chamamos de “Ciência Moderna”, porquanto, entre os antigos e medievais, predominava a concepção segundo a qual já viveríamos no “melhor dos mundos possíveis” e que, assim sendo, qualquer mudança humanamente ensejada nesse mesmo mundo só poderia ser inevitavelmente para piorá-lo. Assim, a Ciência destes traduzia-se num conhecimento “desinteressado”, num “conhecer por conhecer”, num conhecimento estritamente contemplativo.

Tendo, pois, como pano-de-fundo, a “Ciência Moderna”, podemos delinear o seguinte esquema:

Projeto de Pesquisa
Pesquisa
Análise e interpretação dos dados obtidos
(Conhecimento)
Monografia
Projeto de trabalho
Intervenção

Tal esquema explicita, pois, que nenhuma intervenção responsável e satisfatória se faz sobre aquilo do qual não se tem um prévio conhecimento; que toda e qualquer ação humana só é possível à luz de uma concepção da realidade na qual se age; que tanto mais se obtém o que se quer por essa ação quanto mais dela se tem uma representação adequada. Dito de outra forma ainda, uma justa intervenção somente se realiza, em primeira ou em última instância, sobre o amparo de um projeto de pesquisa bem elaborado e que garanta, antes mesmo da intervenção, uma pesquisa bem desenvolvida, que redundará necessariamente num conhecimento, que então há de balizar a nossa proposta de trabalho e intervenção, enfim.

Todavia, todas estas preocupações, como até aqui foram definidas, não perturbam, obviamente, todos os homens – pelo menos não do mesmo modo e em mesmo grau. Pertencem, sim, a alguns homens que exatamente por isso se tornam iguais entre si, uma mesma unidade, por assim dizer, em torno destas preocupações que têm em comum. Esta “comum-unidade” é a dos cientistas, que sustentam os preceitos científicos em voga, a denominada “ciência normal”. Segundo KUHN (1995: 219), “uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”. Assim, todo procedimento investigativo que foge a tais preceitos é considerado como “pseudo-ciência”: pode ser mito, religião, filosofia ou arte, mas não ciência. Portanto, quem deseja participar dessa comunidade científica ou por ela ser reconhecido só o poderá submetendo-se aos seus preceitos de pesquisa e exposição. Por este prisma, as academias são os meios pelos quais conformamos os nossos sentidos e mentes a perceberem e pensarem o mundo de um modo: o modo científico.

Se, por um lado, é a comunidade científica que sustenta o paradigma, é este que sustenta, por outro lado, a comunidade científica. Nas palavras de KUHN (1995: 219), paradigma “é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, [como já acima transcrevemos] uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma. Entretanto, também a ciência tem a sua história. E esta não se faz apenas pela acumulação de novas descobertas que foram sendo feitas à luz dos mesmos procedimentos metodológicos, mas sobretudo pelas contradições entre tais procedimentos ou por rupturas paradigmáticas. Assim, os chamados de “charlatões” pela comunidade científica atual podem se tornar os cientistas do amanhã, do mesmo modo que a “ciência normal” hodierna foi condenada como “pseudociência” no passado. Foi tal observação que permitiu ao mesmo KUHN (1995: 13) escrever que paradigma são “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Grifos nossos).

Paul Feyerabend levará estas considerações às suas últimas conseqüências. Como o título de sua obra mais famosa, Contra o método, já nos permite entrever, Feyerabend se contrapõe a todo método que se arrogue absoluto, defendendo que este deve ser fruto da escolha de cada grupo de pesquisadores, pelo que cada qual julgue estar mais em conformidade para o estudo do objeto de seu interesse naquele momento. Em seus próprios termos, FEYERABEND (1993: 324 e 325) escreve que “a ciência é aquilo que eu faço e aquilo que os meus colegas fazem e aquilo que os meus pares, eu e o público globalmente considerado, temos por ‘científico’”; “não existe um ‘método científico’ uniforme”.

Apesar disso, conduzir-se à luz desse anarquismo metodológico ainda mantém-se controverso e, inevitavelmente, já daria sobrenome próprio a uma comunidade científica dentro da comunidade científica maior. Quem, pois, ainda pretende participar d’a comunidade científica (em seu sentido mais largo e dominante, pois) e por ela ser reconhecido não pode deixar de adequar-se aos seus ditados metodológicos. Só devemos ainda acentuar que esta característica não é característica distintiva da comunidade científica, mas de toda e qualquer instituição social. Também não é justo ver nesses imperativos somente e tão-somente um cerceamento da liberdade criativa.

Para convencermo-nos de que não há teoria desarraigada das concretas condições da vida humana, urge entendermos os motivos pelos quais os homens sempre buscaram a mais fidedigna representação do mundo, isto é, o conhecimento.

O que denominamos ecossistema pode oferecer-nos uma satisfatória ilustração da estreitíssima ligação entre os elementos que compõem a natureza: a cadeia alimentar mostra-nos, mais especificamente, o quanto os animais estão integrados à natureza. Eles não apenas habitam-na, mas também neles a natureza como que faz-se hóspede permanente, sob a forma do que, num só termo, chamamos de instinto. Assim, nunca saem eles da natureza, nem mesmo dela se afastam, porque, antes, esta já se faz completamente neles. Costumamos, por isto, dizer, como ilustração, que tanto aquele joão-de-barro, que viveu há mais de dez anos, quanto este, que ora nasce, têm a mesma natureza, não se distinguindo um do outro rigorosamente: não possuem individualidade (ou distinção formal), mas são simples e semelhantes amostras de uma mesma espécie. Ter as condições para gerar seus filhotes, por exemplo, não lhes é problema, posto que a natureza (neles) já os move igualmente na construção de seus ninhos, em nada diferentes uns dos outros. Sem que percebam, a natureza lhes determina em todos os seus atos, conformando-os entre si e com as demais espécies. Cada parte constitutiva da natureza parece assim estar totalmente integrada às suas demais partes. Toda a multiplicidade em movimento expressa-se, enfim, como uma unidade coesa e ordeira (como um verdadeiro sistema).

De tal coesão, todavia, cada ser humano parece estranhamente escapar em notória medida. Falta-lhe muitos dos instintos animais, embora seja ele qualificado como um animal. Indubitavelmente, não teria ele, por esta ausência, sobrevivido por longo tempo. Contudo, algo nele se desenvolveu para mais do que compensar-lhe tal falta, algo que chamamos genericamente de razão. É certamente ele um animal, mas um animal sui generis: um zoon logikon, como bem expressou, já na antigüidade ocidental, o pensador grego Aristóteles. Esta diferença o faz paradoxal quanto ao que afirmamos acima acerca dos demais elementos constitutivos da natureza, pois ao mesmo tempo em que o homem a esta pertence e dela depende, dela tem a capacidade de transcender-se a si mesma. Estranhamente, o homem é a parte da natureza que dela se afasta, reconhecendo-a, assim, como se fosse alguma coisa outra; por ele, a natureza como que verdadeiramente se desdobra, torna-se para si, consciência de si. Nisto pode resumir-se todos os mistérios da vida, pois somente por tal acontecimento tudo tornou-se passível de crítica ou problematização. Desta maneira, ocorreu o rompimento da original unidade da natureza.

Recuperar a unidade original da natureza tornou-se o desafio de sobrevivência ao próprio homem. Sem instintos que lhe conformassem satisfatoriamente ao seu meio, tudo imediatamente aparecia-lhe caótico e arbitrário, o que sobre ele retroagia sob a forma do sentimento de insegurança. Sem reconhecer instintivamente o devido lugar de cada coisa, não podia também o homem posicionar-se adequadamente a si próprio na natureza. Logo, apesar de tudo imediatamente lhe parecer arbitrário num mundo em incessante mudança, começou, pouco a pouco, a reconhecer sutis constâncias nos próprios movimentos, como, por exemplo, nas estações climáticas, vegetativas e de migração de alguns animais, reconhecimento decisivo para que ele pudesse imaginá-lo estendido a tudo o mais, numa feliz recuperação da unidade coesa e ordeira de todas as coisas. Tal necessidade de se considerar a imutabilidade ou uma constante por detrás de todo movimento aparente foi muito claramente denunciada por outro filósofo da antigüidade clássica grega, chamado Platão: se toda a multiplicidade com a qual nos deparamos estiver em completa mudança, toda possibilidade de conhecimento humano do mundo estará inevitavelmente fadada ao fracasso, pois tão logo venhamos a dizer o que alguma coisa é, ela já se terá tornado outra coisa. Concluiu, portanto, ele, que o mutável jamais poderia ser conhecido por si mesmo, senão somente e tão-somente por outra coisa que fosse permanente e do qual cada coisa da realidade mutável não passasse de simples reflexo possível dentre outros mais. Enfim, toda aparente multiplicidade que compõe o mundo em movimento poderia ser reduzida a uma unidade imutável ou sistema perfeitamente acabado. Desde antes de Socrátes, como em pensadores denominados “físicos” ou “fisiólogos”, o discurso racional ou filosófico tem, fundamentalmente, esta pretensão: alcançar e dizer, a partir dessa unidade-causal (arqué) – portanto primeira na hierarquia dos seres –, todos os seus diversos efeitos que constituem a realidade ou natureza (physis). Obviamente, desde os pensadores sofistas e de Sócrates, também o mundo humano, a psiqué e a cultura, fazem parte dessa realidade totalizante, o existente ou o Ser. Todos os sociólogos, por exemplo, confessamente ou não, trabalham com um modelo ou sistema de realidade social: Émile Durkheim indiscutivelmente; Max Weber, através de seus quadros tipológicos ideais; Karl Marx, ao adotar o materialismo histórico e dialético, o que lhe permitiu prever a necessária derrocada, mais cedo ou mais tarde, do atual modo de produção capitalista. Como as inumeráveis seqüências de movimentos possíveis num jogo de xadrez, por exemplo, podem ser dominadas por todo aquele que bem conhece as suas limitadas regras e peças ou como toda a infinita realidade material pode ser reduzida a uns poucos elementos que perfilam a tabela periódica físico-química e suas finitas combinações numéricas, sempre dependerá o conhecimento humano da construção desses “microcosmos mentais ou ideais” para dominar o “macrocosmos” no qual se insere, antecipando os acontecimentos ao antevê-los logicamente, isto é, em conformidade com os seus modelos teóricos.

Teorias” são assim esses modelos ou “microcosmos mentais ou ideais”. Etimologicamente, significam “ver” ou “contemplar”, mas não com os olhos do corpo, que só nos fornecem a multiplicidade instável e caótica das particularidades do mundo, mas com os olhos do espírito ou da mente (eidos, de onde vem o termo “idéia”), que nos podem fornecer, por sua vez, a unidade imutável de conceitos (universais e necessários), isto é, imperativos ontem, hoje e sempre (a crença de que o futuro há de se dar tal e qual o passado, segundo denunciou-nos David Hume).

Seguramente, só conhecemos a partir desses “modelos” que se querem perfeitos e que trazemos previamente conosco (“pré-conceitos” – na sua acepção não pejorativa), à luz dos quais organizamos as nossas experiências do mundo, ajuizando-nos sobre elas (dizendo se isto é ou não é aquilo, se aquilo é ou não é esse outro ainda e, assim, sucessivamente, interligando as diversas particularidades de nossas sensações e percepções numa unidade compreensiva). Daí também toda as expectativas que em nós alimentamos. É, pois, um equívoco considerar que o conhecimento implica num sujeito tabula rasa, completamente neutro e imparcial. Toda experiência primeira de uma dada realidade vem-nos como caos, ou seja, apenas fornece-nos o problema de nossas pesquisas, mas não a sua solução – pois não se adequam prontamente aos nossos atuais esquemas mentais. E, para a surpresa de muitos, urge destacar que até pensadores como Auguste Comte, que muitos reconhecem como o pai da corrente teórica à qual comumente se atribui a pretensão de um sujeito do conhecimento tabula rasa – o positivismo –, não admitem sequer qualquer tipo de experiência àquele que já não trás consigo qualquer tipo de concepção de mundo ou cosmovisão:

Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os fatos que repousam sobre os fatos observados. Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for aplicada, como convém, ao espírito viril de nossa inteligência, Mas, reportando-se à formação de nossos conhecimentos, não é mesmos certo que o espírito humano, em seu estado primitivo, não podia nem devia pensar assim. Pois, se de um lado toda teoria positiva deve necessariamente fundar-se sobre observações, é igualmente perceptível, de outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito precisa de uma teoria qualquer. Se, contemplando os fenômenos, não os vinculássemos de imediato a algum princípio, não apenas nos seria impossível combinar essas observações isoladas e, por conseguinte, tirar daí algum fruto, mas seríamos inteiramente incapazes de retê-los; no mais das vezes, os fatos passariam despercebidos aos nossos olhos. (COMTE, 1988: 5).

Obviamente que tal concepção de realidade, que antecede a toda experiência, não possui o selo da cientificidade, também segundo Comte, mas advém de concepções puramente imaginárias (como as “teologias” e as “metafísicas”), que desprezam, por princípio, a experiência do mundo no qual estamos; advém do que hodiernamente chamamos, em síntese, de senso comum. Daí a contribuição deste dentro do processo científico: a solução dos problemas que a experiência primeira de uma dada realidade nos trás é sugerida pela imaginação humana socialmente cristalizada, ou seja, pelo senso comum, sob a forma de hipóteses (de micro-sistemas ideais), que suspeita-se poderem dar conta de organizar o “caos primitivo”, transformando-o em cosmos (complexo inteligível). Ora, mas nem tudo o que é imaginado corresponde à realidade. Por isso, a necessidade de confrontar as hipóteses com a experimentação. Experimentação implica em experiências sistematizadas e controladas segundo o problema delimitado. E é isto o que o processo científico faz, distinguindo-se, desta maneira, das outras formas de compreensão e expressão de mundo e inclusive do senso comum.

Contra a possibilidade de um conhecimento totalmente a posteriori, Immanuel Kant escreveu que “o conhecimento começa com a experiência [definição do problema], mas nem todo ele advém da experiência”. E, mais atualmente, Karl Popper insistiu na ausência de solidez lógica da pura inferência indutiva, posto que a passagem da observação de um número sempre limitado de casos particulares (ainda que elevadíssimo e sem exceções) a uma conclusão universal é impossível dentro dos limites da pura experiência: como é possível que da observação de alguns casos particulares, podemos afirmar todos? Uma vez que se considera a impossibilidade deste todos, que tem por característica a universalidade e a necessidade (a imutabilidade no tempo e no espaço), advir da experiência do mundo, torna-se forçoso admiti-lo como fruto de uma capacidade a priori do ser humano, de sua razão.

Para uma melhor visualização destas últimas considerações, podemos apresentar o seguinte esquema do processo científico em geral, sem nos esquecer, todavia, que todo esquema ou generalidade somente cumpre suas finalidades em momentos bastante precisos, quando se quer e se sabe que se quer, por ora, abstrair-se das características distintivas do que se está em questão.

(I)
Experiência
(II)
Hipóteses
(III)
Declinação lógica das consequências particulares de cada hipótese
(IV)
Experimentação
(V)
Comparação de III e IV
(VI)
Teoria

(I)
A experiência primeira de uma dada realidade, como acima já dissemos, coloca-nos problemas, mas não a solução das mesmas. Todavia, a definição do problema do qual se tem a experiência, já pressupõe uma visão de mundo. Além de Comte, também Weber assim considera, afirmando que a delimitação do problema que se escolhe pesquisar dá-se em conformidade com os nossos prévios valores.

(II)
As hipóteses são tentativas de resolução do problema posto. Tem por característica a generalidade: todo e qualquer problema de mesmo tipo deverá ser solucionado do mesmo modo. Portanto, elas já expressam o princípio universal de todo conhecimento, que lhe assegura a capacidade de previsibilidade. Se partimos, por exemplo, do princípio particular de que alguns homens são mortais, não podemos garantir daí que o leitor, embora homem, também seja mortal. Isto somente há de se dar partindo-se do princípio universal de que todos os homens são mortais. Todavia, não obstante assim consideremos, tal universalidade não pode-se considerar advinda da experiência, visto que esta só nos fornece a intuição sensível de alguns homens e não de todos, como outrora insistimos. É, portanto, por princípio, uma construção da nossa imaginação.

(III)
De cada hipótese deve-se desdobrar todas as suas conseqüências lógicas: se é X (primeira hipótese), como imaginamos, então tem-se y, t, s, w e z, pois estes são efeitos necessários daquele; se é R (segunda hipótese), como também se imagina, então tem-se y, k, w, o e z; se é...

(IV)
A experimentação importa num rigor que, indiscutivelmente, as nossas experiências cotidianas não têm. Nela, só as experiências que possam falsificar as hipóteses levantadas têm relevância. Não comporta, então, interesses empíricos alheios ao problema que se delimitou.

(V)
A comparação entre os efeitos particulares necessariamente declinados de cada hipótese e os resultados particulares colhidos na experimentação definirá a credibilidade de cada uma das hipóteses sugeridas e, evidentemente, aquela que mais coincidências apresentou entre suas conseqüências lógicas particulares e os dados afins sistematicamente observados abandonará a sua então condição de mera hipótese dentre outras mais para figurar-se como tese ou teoria.

(VI)
A sustentabilidade de uma teoria só se esgota através do surgimento de uma ulterior hipótese que apresente um poder de antecipação ou previsão dos mesmos movimentos que os seus e de outro(s) mais ou ainda de uma que, apresentando menor complexidade, garanta uma capacidade de antecipação dos seus mesmos acontecimentos (segundo o princípio medieval denominado “navalha de Ockam”: entre duas teorias de igual poder de reconstituição de um mesmo fenômeno, deve-se optar pela mais simples).

Podemos dizer que existem, basicamente, três tipos de pesquisa: a bibliográfica (ou “estritamente teórica”), a de campo e a de laboratório (experimental). Este último interessa muito pouco a nós das Ciências Humanas. No entanto, podemos subdividir o segundo em estudo teórico-empírico e estudo de caso.

COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. Tradução de José Arthur Giannotti. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de José Serras Pereira. Lisboa: Relógio d´Água, 1993.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Boeira e Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.

18 de out. de 2010

TEXTO IX: Segunda Reflexão: Relação entre Ceticismo e Filosofia


Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tem sido um erro apresentar o ceticismo como avesso à filosofia. Isso pode decorrer do imobilismo último do nosso pensamento binário: ou é ou não é. Assim, enquanto houver dúvida não há saber, mas onde há saber não há dúvida.

02. Muito pelo contrário, penso que o ceticismo é o avesso da filosofia, o que somente pode ser bem compreendido por um pensamento dinâmico ou dialético. O "avesso de" é aquilo que está pelo contrário do que tomamos por direito ou pela parte da frente, mas, não menos, é aquilo que está sempre junto. Se assim é, não há filosofia sem a dúvida, assim como a dúvida só se faz onde acontece um pretenso saber.

03. Neste sentido, tivemos um filósofo e professor no Brasil, Gerd Bonheim, que, certa vez, publicou uma obra introdutória de filosofia (1) que, para mim, expressa muito bem essa tensa interdependência entre o ceticismo e a filosofia. Esclarecendo o processo pelo qual a filosofia se dá, Bornheim faz-nos perceber o momento imprescindível pelo qual se dá movimento ao pensamento: a dúvida, a crítica instauradora da crise. Não fosse isso, engessaríamos nos dogmatismos do senso comum. Porém, bem entendido, não fosse antes alguma certeza, não teríamos do que duvidar. Se a dúvida é o momento negativo do processo filosófico, a certeza é o momento afirmativo desse mesmo processo. O cuidado que devemos tomar, aqui, é não compreender, por um imobilismo disfarçado, a certeza como um absolutamente antes e a dúvida como um absolutamente depois. Afinal, tudo é um processo, no qual, portanto, também a certeza é desdobramento de um momento anterior de dúvida e crise.

04. Outra nota que me importa ainda fazer dessa obra é relativa ao terceiro momento do processo filosófico que, surpreendentemente, Bornheim chamou de “conversão filosófica”. Genericamente, se o primeiro momento dogmático estaria para o senso comum e o segundo, para o ceticismo, o terceiro estaria, por seu turno, para a filosofia: uma nova afirmação após a inspeção crítica. Girando a roda, também essa nova afirmação estaria suscetível a dúvidas que a incidiriam em novas afirmações e assim por diante, ininterruptamente.

05. Ora, esse cenário nos permite compreender como que a filosofia algumas vezes se passa como antagônica ao ceticismo e, noutras vezes, se passa como sendo o próprio ceticismo. Embora necessite de maiores exames, é surpreendente como que nas escolas a crítica é endereçada à filosofia como sua tarefa. No imaginário em voga, o filósofo é o questionador por excelência, o inspetor e examinador dos raciocínios, curiosamente donde provém o temo “cético”. Por outro lado, o filósofo não é visto somente como aquele que interroga, mas igualmente como aquele que inova e apresenta teses novas – o que nos aponta, paradoxalmente, não mais para aquele que tão-só “põe abaixo o estabelecido”, mas para aquele que igualmente “eleva em meio às cinzas”.

06. Como o deus da mitologia greco-romana que devorava os próprios filhos, essa seria a imagem da filosofia. Ou seria como o Ouroboros, a serpente que devora, indefinidamente, a própria calda.


07. Essa razão autofágica deixa-nos assim entrever que uma história da filosofia é inseparável de uma história do ceticismo, quando não se trata de uma só e mesma coisa. Os motivos pelos quais a primeira nomenclatura prevalece sobre a outra são dois, não exclusivamente, segundo o que me ocorre neste instante: de um lado, já se pensa a dúvida, embora não declaradamente como o fez Bornheim, como parte constitutiva mesmo do ato filosófico; por outro lado, acompanhando André Verdan, professor de filosofia na França, em seu livro O ceticismo filosófico, (2) a certeza é sempre mais agradável a uma profunda tendência do homem de buscar um apoio incontestável e solidamente estabelecido à sua existência repleta de adversidades. Talvez seja, aliás, por isso que o cientista político inglês e conservador, Kenneth Minogue, escreveu que “a política sustenta, com dificuldade, o mundo comum no qual podemos conversar uns com os outros; e os filósofos [céticos], que dissolvem a experiência em perspectivas, horizontes, opiniões, valores, dominações, culturas e todo resto, destroem esse mundo comum.” E, conclui, inevitavelmente, que essa política, “dada toda a sua capacidade de ordenar muitos dos caminhos da vida, precisa manter distância dessas aventuras” do filósofo cético e afins. (3) Daí que, de roldão, prefere-se mais o filósofo em seus momentos de afirmação do que em seus momentos de negação, não obstante ambas, a afirmação e a negação, sejam igualmente imprescindíveis ao exercício filosófico e à própria existência uma da outra, conforme antes elucidamos.

08. É assim que a filosofia, somente para ilustrar, pode ser apresentada desde o seu início como negação do estabelecido pela compreensão mítico-religiosa da vida e destacar mais o não-saber socrático do que o seu único saber que leva ao mesmo, isto é, ao não-saber – mais uma vez, a negação dos “sábios” de seu tempo, os sofistas. Mas também estes, podem ser abordados como negação dos absolutismos que ordenam cada um que se encontra fechado em sua cidade-Estado, procedimentos muito anteriores ainda ao período helenístico de incertezas em que nasce precisamente a atitude de pensamento de Pirro e que tomou pela primeira vez, nos cartórios da filosofia, o nome de “ceticismo”.

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1. BORNHEIM, Gerd Alberto. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. São Paulo: Globo, 2009. 168 p.
2. VERDAN, André. O ceticismo filosófico. Tradução de Jaimir Conte. Florianópolis: UFSC, 1998. 135 p.
3. MINOGUE, Kenneth. Política: uma brevíssima introdução. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 8.

17 de out. de 2010

TEXTO IX: Primeira Reflexão: Motivos Céticos à Religião e à Ciência

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Inserido no mundo, o homem, crescentemente, passou a situar-se ao modo do que, desde o início da modernidade, denominamos “nova ciência”, ocupando espaços de influência que outrora coube quase que exclusivamente à religião. Por essa transição, também a filosofia, antes atenta aos motivos religiosos, deslocou-se do eixo da ontologia, do que especialmente se denominou “filosofia teológica”, para o da epistemologia, particularmente da teoria do conhecimento científico.

02. Esse fundo da modernidade implicou a nossa concepção do ceticismo como um avesso da filosofia, pois, enquanto esta última é concebida como um otimismo à possibilidade de conhecimento humano do que chamamos de “realidade”, aquele primeiro é tomado pela consideração segundo a qual “de nada temos certeza”. Nesse sentido, não somente “o pretendente ao saber”, que dá nome ao “filósofo”, é desabonado, mas também aquele que se dedica, entusiasticamente, a qualquer tipo de ciência da pretensa “realidade” – o que inclui, por conseguinte, o “cientista” de nosso tempo.

03. O que se pretende aqui destacar, inicialmente, é que o protocolo científico que está na gênese da modernidade e que domina toda a cultura ocidental dos últimos séculos, conforme o qual “o mundo deve ser conhecido por ele mesmo”, obscureceu o fato de que a filosofia nasceu antes como “sentido de vida” do que estritamente como “epistemologia”. E, de roldão, que também o ceticismo é antes uma “filosofia de vida” do que um avesso da filosofia ou uma pronta negação da epistemologia. Noutros termos, os céticos não são o que são por “princípio”, má-fé ou má vontade, mas por fadiga e zelo. Em melhores termos retóricos, os céticos desistem da ciência humanamente inalcançável para viverem a felicidade humanamente possível; não veiculam a filosofia que interessa à ciência moderna, mas ainda veiculam a filosofia que interessa à vida.

À CIÊNCIA

04. Se o conhecimento do mundo nunca é definitivo, toda intervenção no mundo à luz desse conhecimento é inevitavelmente irresponsável. O cético concorda com a “nova ciência” que um conhecimento último das coisas do mundo está para além das capacidades humanas, mas as pragmáticas que amparam a ambos nesse mesmo sentido são completamente distintas, pois somente o cético, por isso mesmo, se detém no imediato e se abstém de juízos últimos. O cientista, por sua vez, assim considera a questão em virtude do interminável encalço das causas últimas que lhe impediriam a faceta operante, técnica ou instrumental do seu conhecimento, tomando – incoerentemente, portanto – o imediato como último (como necessário, universal e definitivo), a fim de por aí estabelecer as suas intervenções. Assim, a coerência da pragmática cética, diferentemente da irresponsabilidade científica, conduz-nos à contemplação, à afasia e à ataraxia (contrárias à manipulação, à profissão e à crítica).

05. Noutros termos, já os iluministas destacavam que a “nova ciência” seria uma feliz conciliação entre “razão” e “experiência”. De fato, concordam os céticos que estas são as duas capacidades estritamente humanas de conhecimento. Contudo, ressaltam não menos que tais faculdades (a de entendimento e de sensibilidade) são, em seus limites, desproporcionais à dimensão do mundo que pretendem conhecer. Na contemporaneidade, o próprio “positivismo crítico” leva em consideração essas ponderações céticas, embora não veem como podemos escapar a essas nossas precondições ontológicas. Sua “demarcação” entre ciência e não-ciência não mais arroga, como os positivistas clássicos, que a não-ciência seja um discurso “sem-sentido”, mas apenas a considera como sentido formalmente distinto do científico. Confirma, ademais, a própria precariedade das precondições humanas que se refletem nas atividades e produções científicas, destacando, assim, o caráter de “provisoriedade” que também marca as teorias científicas. Tal destaque choca-se frontalmente com a aparente segurança que a cosmovisão científica do mundo possui no senso comum ou, antes, nas mentes tradicionalmente positivistas. Nesse sentido, a própria filosofia da história cientificista é uma tentativa de nos fazer esquecer que também a ciência é uma atividade humana e que, assim sendo, carrega consigo, inevitavelmente, os estreitos limites dos poderes humanos.

06. Finalmente, insistimos que ainda é corrente e predominante entre os contemporâneos a concepção de que a ciência é modo de compreensão e expressão de mundo que não se preocupa com as causas primeiras e últimas de seus objetos de investigação (como ainda fazia a filosofia próxima do mito e da religião), mas tão-somente com as causas imediatas dos mesmos. Insistimos, igualmente, que isso se justifica, pois a demora em perpassar e alinhavar todas as coisas a impediria de cumprir precisamente o que lhe dá fama: sua capacidade de pronta intervenção e manipulação do mundo. Em compensação, ela, esta ciência, se pulverizou em “especializações”, o que nos gera a expectativa de que nada lhe poderá escapar. A demanda hodierna de interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade deixa transparecer, ao fundo, uma concepção do mundo como unidade ao mesmo tempo em que compensa a sua insistência no trato dos vários modos como este mundo se nos revela.

07. Hoje, entretanto e cada vez mais, a “ciência moderna” se desnuda não como apenas aquela que não sabe das causas primeiras e últimas do que investiga, mas desconhece tanto mais as conseqüências longínquas de cada coisa que manipula. Na verdade, ela só se estende até os efeitos “co-laterais” ao que diretamente lhe importa. Ela mesma se avoluma, presentemente, em descobertas de efeitos nocivos de seus procedimentos passados à natureza e, por inclusão, a cada um de nós, procedimentos estes que outrora lhe pareceu tão inofensivos.

08. Perdidos no imediato de nossas próprias contingências plurais e valorizando-as, esquecemos que, no entanto, estendemos o nosso pequeno mundo para uma última fronteira muito além dele mesmo. Como que por um “efeito rebote”, estamos tomando consciência do quanto nos tomamos como absolutamente responsáveis por aquilo que, na verdade, nunca estávamos em plenas condições de responder. Todavia, isto se faz não por uma cosmovisão menos sistêmica, mas, muito opostamente, reafirmamos a unidade das múltiplas coisas quando precisamente estamos a falar de uma “natureza” que reclama de nossas agressivas intervenções, ampliadas pelas técnicas científicas. As coisas, assim, se reafirmam em cadeia, ou seja, como múltiplas e uma só, ambiguidade que, mais uma vez, expressa a nossa trágica condição.

09. Tratar da ecologia, por exemplo, em nosso tempo tecnocientificista e capitalista é, verdadeiramente, um drama, pois se, por um lado, remete a nossa atenção, sem dúvida, à necessidade de conservação de nossa diversidade de fauna e flora, paradoxalmente atrelada à idéia de cadeia entre tal diversidade, uma vez que é precisamente ela que sustenta a concepção de que somos todos co-responsáveis pela destruição ou conservação da natureza, estejamos direta ou indiretamente lidando com ela, por outro lado o trato da ecologia, alerta-nos ainda mais para o fato de que enquanto nos vemos diante da natureza, como é praxe acontecer na “nova ciência”, estamos imperceptivelmente sendo vítimas de uma concepção de natureza que é simples objeto para a nossa intervenção qualquer, porquanto nada mais é propriamente intocável, mas tudo sofre a manipulação que o transformará em mercadoria, objeto de troca que é demandado e que ao mesmo tempo sustenta a sociedade do “livre” mercado. Eis o paradoxo da nossa própria existência: sentimo-nos diante da natureza (aliás, como senhores dela), mas não menos estamos na natureza (submetidos a ela), expressão de nosso inexorável entrelaçamento com cada ente que conosco compõe esta unidade chamada “vida”. Não há, consequentemente, como esgotá-la sem nos consumirmos fatalmente a nós próprios – inquietação de nossa alma!

À RELIGIÃO


10. Uma vez que as capacidades humanas de conhecimento estão demasiadamente aquém do que pretendem conhecer, o “sentido de vida”, que, para tanto, é necessariamente universal, não se contém nos limites humanos de razão e de experiência. Logo, o universal que se quer ensejado pela razão ou pela experiência não passa de uma ilusão dogmática para os céticos.

11. Brevemente, justificamos que os dados sensoriais que temos apenas nos fornecem as particularidades da vida e que, dessas particularidades, por maior que seja o seu número, não se pode daí inferir uma proposição universal. Também os dados racionais, para serem assim considerados, devem ser inferidos imprescindivelmente de outros dados evidentes por si sós. Se ainda estes últimos também assim não o são, devem ser deduzidos de outros que assim o sejam. Ora, comumente, ou a cadeia cessa em dados ainda não auto-evidentes ou se desenrola ao infinito e logicamente indecisa.

12. Em nosso passado, essa contingência dos dados humanos foi compensada pela primazia dos dados pretensamente não-humanos. Em outras palavras, se humanamente não podíamos nos dar a nós mesmos o incorruptível, pensou-se que somente poderíamos tê-lo caso ele próprio se nos revelasse a nós. A verdade foi, portanto, apresentada como sua revelação àqueles que agora nos a revelam. E, em nossa história recente, a fim de nos reconduzir aos limites do que nos é dado às nossas capacidades naturais, pensadores racionalistas e empiristas reunirão seus esforços para desacreditar as pretensas autoridades dessas verdades reveladas, chamando estas últimas de superstição. Pouco a pouco, ocorre a “democratização” das instâncias de verdade: todo homem é detentor de razão e de experiência; portanto, tudo o que nos é dado por razão e experiência é verdadeiro, não por autoridade de alguns, mas por autoridade de todos os homens, porquanto não há ninguém que seja privado de confirmar, por essas mesmas capacidades que igualmente possui, a veracidade do verdadeiro ou a falsidade do não-verdadeiro. Mas o otimismo da distribuição equânime dessas capacidades logo se desfez e ainda hoje assistimos, na falta de algo melhor, ao governo provisório dos convencionalismos de grupos humanos, casando a epistemologia com as hegemonias políticas.

13. Chegou-se mesmo a denunciar, ainda na metade do século XVIII, que também a “nova ciência” está calcada em conexões habituais e costumeiras, que, no entanto e erroneamente, são-nos apresentadas como conexões necessárias, bem como nas crenças de que o futuro há de se dar tal e qual o passado. A unidade do pensamento foi se dissolvendo em multiplicidade cultural. Bem observando, a modernidade foi multiplicando e consolidando os motivos céticos primitivos, os mesmos que fizeram com que alguns filósofos suspeitassem de que o absoluto não se adequa às condições humanas e que, por conseguinte, não há afinidade entre a verdade universal, humanamente inalcançável, e a felicidade do homem, mas sim entre esta e o abandono daquela. Tal relativismo que comumente antecede ao comportamento cético não se demora, contudo, aí. O relativismo moderno, que em si se demora, tornou-se parte insubstituível do atual modo de produção, pois bem expressa a extensão da novidade que se tem para se consumir num tão breve tempo, fazendo de nossa vida uma insatisfação sem fim, estressante e vã. O relativismo cético, ao contrário, tende a conduzir-nos ao engajamento absoluto da cultura a que pertencemos: se as culturas, se os modos de se pensar e de se ser dos grupos humanos se equivalem, não há porque se desgastar em se querer diferentemente do que já se tem. O relativismo cético, consequentemente, não é inimigo da tradição, como o relativismo de consumo, mas lhe é desenlace para uma vida feliz. O ceticismo pirrônico, ao denunciar os limites das faculdades humanas de entendimento e sensibilidade, reporta-nos ao que somente a tradição nos pode mais facilmente fornecer: os aportes mais seguros para uma vida pacificada.

14. Como parte de nossa tradição, a religião pode ser assim bem guardada. Não é por acaso que Montaigne se manteve coerentemente cético e cristão fervoroso e Pascal, um fideísta advogado de Pirro.

26 de abr. de 2010

TEXTO III: Filosofia: em Nome da Razão

Rodrigo Rodrigues Alvim
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01. Atente-se para a seguinte consideração:


TODO TRIÂNGULO, NUM PLANO, TEM A SOMA DOS SEUS ÂNGULOS INTERNOS IGUAL À SOMA DE DOIS ÂNGULOS RETOS.



02. Tal consideração se dá não por força de nossa capacidade de experiência, pois, em primeiro lugar, não podemos inspecionar todos os triângulos empiricamente inumeráveis e, em segundo lugar, um plano rigorosamente plano (desculpe-me a redundância) jamais nos foi dado através dos nossos sentidos.

03. Sendo isso verdade, NÃO PODEMOS FORNECER PROVAS EMPÍRICAS CABAIS DA AFIRMAÇÃO INICIAL.

04. (I) Certamente vários ditos triângulos já nos foram dados através dos nossos sentidos e muitos outros nos poderão ser assim oferecidos, sem, contudo, pretenderem-se a totalidade dos ditos triângulos. Neste momento mesmo, podemos colocar para dentro do nosso campo visual um ou mais ditos triângulos, porém sempre em número limitado, justamente porque o nosso campo visual é limitado. E ainda que contemos com a ajuda de nossa memória, obtendo a soma de todos os ditos triângulos que também foram vistos em nosso passado, ainda assim não possuiremos a totalidade dos ditos triângulos. Mais amplamente, diríamos que podemos ver muitas coisas, mas não tudo; podemos estar ouvindo muitas coisas agora, mas sem a pretensão de que seja tudo o que presentemente emite som... E isto se aplica a todos os nossos demais sentidos.

05. (II) Não somos capazes de traçar uma linha reta sequer numa folha de papel, muito menos um plano. Podemos aí traçar algo como que uma reta ou como que um plano, mas não uma reta ou um plano preciso. Faltam-nos condições concretas para tanto, por mais que estejamos usando materiais ditos de precisão. A precisão aqui é um ideal, aliás, é uma ideia: tão-só em nosso pensamento somos capazes de traçar figuras perfeitas. E tanto mais as coisas dadas aos nossos sentidos se aproximam dessas nossas ideias, tanto mais as chamamos pelos mesmos nomes que atribuímos a essas ideias das quais se aproximam. Dessa maneira, digo que esta minha moeda é circular não porque o seja fielmente, mas porque sua forma se aproxima da ideia que tenho de “infinitos pontos equidistantes de um mesmo ponto central”, algo que não construo senão mentalmente.

06. A consideração inicial se dá, portanto, por outra capacidade que não a de experiência, mas por aquela que comumente denominamos “razão”. Noutros termos, temos a consideração inicial por intuições intelectivas e não por intuições sensíveis. Ademais, na consideração original, somos conduzidos à unidade, à universalidade: “Todo triângulo...” E isto é um conceito e não uma imagem. Os nossos sentidos, contrariamente, nos conduzem à diversidade e à imagem, uma vez que se trata de um triângulo ou equilátero ou isósceles ou escaleno, reto ou não reto nestes dois últimos casos, numa ou noutra dimensão, etc.

07. Essa distinção entre considerações advindas de nossa capacidade de experiência ou da nossa capacidade de razão pode levar-nos ao equívoco de que a “abstração” das nossas declarações racionais as faz empiricamente inúteis. Sim, um equívoco! Para nos manter próximos da consideração inicialmente feita, tomemos como exemplo o teorema que atribuímos àquele que convencionamos o primeiro filósofo do Ocidente: Tales. Embora intuído racionalmente, sua aplicabilidade a desafios advindos de nossa inserção no mundo se fez desde o tempo do próprio Tales, a antiguidade, como a mensuração da altura das construções de elevadas proporções ou o cálculo da distância de embarcações em alto mar.

08. Nesse sentido, as afirmações dos assim chamados primeiros filósofos de que toda diversidade presente no mundo são compostos do(s) mesmo(s) elemento(s) – seja água ou ar ou quatro elementos ou cento e dezoito ou em número e qualidade indeterminados – é uma proposição universal (“toda diversidade...”), ou seja, algo que se propõe por força de razão e não de experiência. E ainda que essa proposição se pretenda inferida de experiências de decomposições de muitas coisas, “muitas”, por maior que seja o número que queira expressar, não significa “todas” e a decomposição da qual trataram aqueles filósofos estava muito além do empiricamente possível, mas estava bem entendido (pela razão): se há um mínimo de extensão, porque extenso, pode ser novamente dividido. Esta tendência ao infinito só pode ser um dado de razão, pois os sentidos humanos, por seus limites, só apreendem dados limitados. Se tal divisão que tende ao infinito é uma experiência ainda, não é mais, portanto, uma “experiência sensível”, mas uma “experiência de razão”, fundante da filosofia ocidental.

EXERCÍCIOS DE RAZÃO OU GINÁSTICA DO PENSAMENTO OU AINDA SIMPLES CURIOSIDADE

Por força de razão (lógica), como vimos antes, algo extenso, se subdividido, resultará em duas partes extensas, cada qual podendo novamente ser decomposta, porque extensa, em duas outras partes extensas e, assim, sucessivamente, ao infinito, pois as partes resultantes sempre são extensas e o mínimo de extensão nunca poderá ser o mínimo, pois, também extenso, poderá ser decomposto. O não-divisível (a-tomo) não existe então.

Por igual força de razão, entretanto, o não-divisível (a-tomo) tem que existir, pois, do contrário, estaremos dizendo que tudo o que existe é composto do que não existe, o que é um absurdo (lembremos das lições de Parmênides).

O átomo, finalmente, levando em consideração ambas as forças de razão aqui apresentadas, existe e não existe, o que também é um absurdo.

Será que o extenso não é tudo o que existe? Será que existe outra categoria de realidade (o não-extenso, não-espacial)? E, caso exista, poderá dar origem a algo do que carece, a algo de extensão? Dizer hoje que a matéria é energia condensada seria algo assim? De que categoria é a realidade atualmente chamada subatômica?