Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





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12 de jan. de 2021

TEXTO XLII: A noção de "cosmos" para o advento da ciência.

Rodrigo Rodrigues Alvim da Silva
 
01. “Cosmos” é uma concepção de longa tradição na cultura ocidental e hoje está presente na formação de outros termos, como “microcosmos”, “macrocosmos”, “cosmopolita”, “cosmologia”, “cosmonauta”, “cosmovisão” e até “cosmético”. O significado comum que podem ter esses últimos termos talvez seja uma boa pista a se trilhar para a recuperação do sentido que consagrou a palavra “cosmos”.

02. Nossa intenção aqui é endossar a hipótese de que a noção filosófica original de “cosmos” expressa uma aposta que foi historicamente importante ao surgimento das concepções científicas ulteriores ou, antes, para o surgimento da própria concepção de “ciência”, mesmo quando, contemporaneamente, alguns cientistas possam questioná-la.

03. Segundo os estudiosos, “cosmos” é um termo de origem grega, κόσμος, bastante antigo. Nos documentos mais remotos que nos chegaram, aparece, pela primeira vez, na obra Ilíada, de Homero, no sentido da ação de “ordenar”: “Não havia nascido nada na terra que competisse com ele em ordenar (κοσμσαι) cavalos e guerreiros, portadores de escudos.[1] Nesse sentido, escreve o filósofo inglês, Jonathan Barnes, especialista no pensamento grego antigo:

O substantivo Cosmos deriva de um verbo cujo significado é "ordenar", "arranjar", "comandar" – é utilizado por Homero em referência aos generais gregos comandando suas tropas para a batalha. Um kosmos, portanto, é um arranjo ordenado. Mais que isso, é um arranjo dotado de beleza: o termo kosmos, no grego comum, significava não apenas uma ordenação, como também um adorno (daí o termo moderno "cosmético"), algo que embeleza e é agradável de se contemplar.[2]


04. Como ornamento, o cosmos chamava assim a atenção, muito diferentemente daquele “vazio”, tal qual um bocejo entre Terra e Céu, descrito em outro poema épico, a Teogonia, de Hesíodo, e ao qual este poeta chamou de “Caos” (χος).


05. Mais adiante, na literatura filosófica, particularmente, o termo “cosmos” aparece primeiramente dentre os fragmentos da obra de Heráclito de Éfeso: “Este cosmos, igual para todos, não o fez nenhum dos deuses, nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e extinguindo-se conforme a medida.[3]

06. No entanto, é importante sublinhar que essa concepção só foi possível em virtude de um esforço de gregos anteriores em pensar o mundo diferentemente das narrativas míticas, lembrando que mythos significa “palavra”, um outro modo de dizer, portanto, que se tornará singular. Esse modo diferente de pensar e dizer será chamado por eles também de “palavra”, uma palavra distinta da então dominante. Surgiu assim o termo logos, já em sua acepção de “linguagem racional”.

07. O surgimento dessa novidade não pode ser satisfatoriamente compreendido sem algumas mediações que nos cabe, ainda que sucintamente, aqui fazer. Faremo-las por alusão à obra daquele a quem foi atribuído, certamente por isso mesmo e menos por alguns ditados de conduta que também lhe são atribuídos, o título de um dos sete sábios da antiguidade grega: Tales de Mileto.


08. “A água é o princípio e governo de todas as coisas” era, para o contexto de Tales, uma afirmação improvável. Tendo, no entanto, ocorrido, significou um salto no modo de pensar a vida, o que pode ser esclarecido por dois comentários.

*** Primeiramente, ela propõe-nos que o sentido do mundo é imanente ao próprio mundo ou, de outra forma, que o sentido do mundo não o transcende, não está em possíveis entidades além dele mesmo, pois a água é um elemento mundano. Ora, o governo do mundo por tais entidades extraordinárias era consenso no tempo de Tales, de tal sorte que sentiam os homens daquele tempo na graça ou ameaça da vontade caprichosa de tais deuses. O mundo era inesperado e arbitrário, pois era expressão dos ânimos e humores divinos. Com Tales, essa condição tornou-se suspeita.

*** Em segundo lugar, reduzir todas as coisas do mundo a um só e mesmo elemento é dizer que tais coisas e o seu acontecimento não são isolados, mas intercambiáveis e comensuráveis entre si. Surge aí a ideia de unidade da qual a própria diversidade é expressão: “tudo é um”, como observou Friedrich Nietzsche ao comentar essa proposição de Tales”[4], ou, de outra forma ainda, tudo é fundamentalmente o mesmo. Ora, de maneira embrionária, para admitir-se o mesmo no outro ou a identidade na diversidade, estava esboçando-se a noção de sistema, de interdependência de partes de um todo, de ordem não necessariamente hierárquica, de “cosmos”. Isso se tornará ainda mais surpreendente ao fundo de uma compreensão mítico-religiosa dominante que ainda propõe diferentes deuses como responsáveis por diferentes coisas e acontecimentos no mundo, algo que somente mais tarde começou a mudar pela hierarquia dos deuses da Teogonia de Hesíodo.

09. Esse salto de Tales permitirá o nascimento da “filosofia”, ou seja, por sua etimologia, do “amante”, do “amigo”, do “pretendente” à sabedoria. Embora hoje o mesmo termo nos pareça amistoso, significou naquela ocasião, para muitos, uma ousadia, um perigo, quando não uma ofensa. A razão do mundo, porque do mundo no qual nos encontramos, estaria se nos mostrando, bastando que nos demorássemos, pacientemente, na contemplação deste mundo que se nos revela por si só. Mais tarde, enfim, ao dizer da razão filosófica, há de se perceber que ao mesmo tempo em que a atribuímos como do mundo (por propriedade), também a atribuímos como de nós mesmos (por capacidade), tudo coincidindo nessa estranha faculdade que temos de alinhavar as coisas e acontecimentos do mundo.
 
10. Sendo assim e desde então, comparar as coisas e os acontecimentos, podendo tudo ousar comparar (nominando-os em nossa história como simetria, proporção, desdobramento, identidade) pressupõe que podemos conhecer, indo de um a outro, indo ao ainda desconhecido pelo já conhecido, reconhecendo inclusive erros por um arranjo melhor. Assim iniciou Tales.


11. Eventos atribuídos à sua vida apenas reforçam esse reconhecimento. Conta-se que, certa vez, caiu num buraco por não prestar atenção por onde andava, preocupado em contemplar os astros. Mas é também sobre ele que se conta a previsão de um eclipse, o que só seria possível a quem há muito tempo notava e anotava o movimento dos astros, ao ponto de, em meio aos tantos movimentos inicialmente confusos, perceber, enfim, invariantes, que nos dá como que a capacidade de nos adiantar no tempo... Foi a ele atribuída a astúcia de se enriquecer porque, atendo às estações (outra rotina) de um mundo que parecia tão incerto, ainda percebeu a relação entre elas e as safras de diferentes produtos, comprou antecipadamente todas as máquinas de extração de óleo de oliva, alugando-as, logo depois, quando veio uma grande colheita do fruto. Soma-se a isso toda a sua dedicação aos teoremas geométricos, aplicáveis em associação às regularidades do caminho do sol e das sombras que produzia, mas aos quais se dedicava pelo simples fato de nos assegurar constantes e universais.
 
12. Tal fascínio fará com que Aristóteles de Estagira escreva, mais tarde, que é a admiração que nos leva a filosofar, ou seja, a buscar uma compreensão lógica do mundo, embora hoje tendamos a relacionar a “beleza” muito mais aos sentimentos humanos do que à nossa inteligência. O filósofo não admite o acaso, senão como momentânea ignorância nossa da razão que perpassa toda realidade: tudo tem sentido. Isso justifica o caráter sistemático, jamais antes visto, que Aristóteles impregna em seus estudos, propondo e fazendo predominar durante quase dois mil anos a sua proposição da ordem do mundo, o geocentrismo.


13. Semelhantemente a Aristóteles na antiguidade grega, precisamente quando a visão aristotélica do universo entra em crise no Ocidente, através do trabalho do matemático Nicolau Copérnico e do igualmente matemático e físico Galileu Galilei, o homem moderno, em geral, continuará apostando na ordem do mundo, pois esse mesmo trabalho que lhe tira o cosmos geocêntrico, então hegemônico, é o mesmo que lhe apresenta um novo cosmos, denominado na época “heliocentrismo”. Ademais, é importante sublinhar que, às vezes, o heliocentrismo foi preferível ao geocentrismo em virtude de a ordem que propunha lhe valer previsões mais precisas em relação aos movimentos celestes. Há quem goste de citar a afirmação de Albert Einstein de que “Deus não joga dados” para sugerir sua crença na existência de uma entidade divina e providente, quando, na verdade, ele estava somente apresentando de maneira figurativa o que se encontra na base de toda investigação científica, a saber, de que nada acontece por acaso no mundo; que o acaso é apenas uma tentativa nossa de projeção no mundo do que seria nosso: a ainda ignorância de determinadas correlações entre fenômenos.


14. A totalidade das coisas e acontecimentos como expressão de uma harmonia, de uma ordem, tem um teor prático tantas vezes ignorado, pois é precisamente essa aposta que se traduz na pré-compreensão de que a dita realidade é explicável, é um desdobramento, um continuum. É ela que nos coloca nas trilhas do conhecimento, da ciência antes mesmo de qualquer êxito. Afinal, se não tivéssemos essa pré-compreensão do sentido (que perpassa todas as coisas, subtraindo-as do absurdo), quem se predisporia a buscar conhecer?
 
O cosmos é o universo, a totalidade das coisas. Mas é também o universo ordenado e o universo elegante. O conceito de cosmos apresenta um aspecto estético. (Costuma-se dizer que é isso, inclusive, o que o torna caracteristicamente grego.) Mas também, e a nosso ver de maneira mais importante, tem um aspecto essencialmente científico: o cosmos é, necessariamente, ordenado – e portanto deve ser, em princípio, explicável.[5]
 
15. É imprescindível a esta altura compreender que, do mesmo modo que a advertência de que a água não é o princípio e governo de todas as coisas não compromete a revolução do pensamento promovida por Tales (pois ainda procuramos a causa das coisas e acontecimentos nas próprias coisas e acontecimentos), a advertência de que a ordem do mundo são apenas modelos humanos que atribuímos ao mundo não atinge a hipótese de que apostamos numa ordem do mundo, tratando-o assim “cosmologicamente”.
 
16. Quando David Hume observou que aquilo que tomamos como conexão necessária não passaria de uma conexão habitual, isso, na verdade, não comprometeu em nada a pressuposta ordem do mundo, pois “hábito”, “costume” e a “crença de que o futuro há de se dar tal e qual o passado” implica tanto a ideia de uma regularidade quanto à de lei da natureza. Por isso mesmo que Immanuel Kant, ao cabo de suas duas maiores obras, pôde reconhecer o quanto a ordem, seja ela no âmbito do humano (ética) seja ela no âmbito das coisas (ciência), causa grande admiração em nós:
 
Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: 
o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.[6]

[1] HOMERO. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2013. Canto II, Verso 555.

[2]  BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 200.

[3] Trata-se do Fragmento 30: κόσμον τόνδε, τὸν αὐτὸν ἁπάντων, οὔτε τις θεῶν οὔτε ἀνθρώπων ἐποίησεν, ἀλλ’ἦν ἀεὶ καὶ ἔστιν καὶ ἔσται πῦρ ἀείζωον, ἁπτόμενον μέτρα καὶ ἀποσβεννύμενον μέτρα. Comparar com a tradução em: MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 15, ou BORHEIM, Gerd. A. Os filósofos pré-socráticos. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 38.

[4] NIETZSCHE, Friedrich. Crítica modrna. Tradução de Rubens Rodrigues Filho. In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS. São Paulo Nova Cultural, 1999. P. 43 (Coleção Os pensadores).

[5] BARNES, Jonathan. Op. cit.

[6] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 183.

11 de nov. de 2016

TEXTO XXXVIII: Immanuel Kant e a Ciência


Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Não obstante houvesse, no início da modernidade, diferentes filósofos em disputa quanto à instância de garantia última do conhecimento, sobressaindo, de um lado, os racionalistas e, por outro, os empiristas, já, no século XVIII, os pensadores denominados iluministas tenderam a considerar o conhecimento como uma conciliação dessas duas capacidades humanas: de razão e de experiência.


02. A sistematização oferecida por Immanuel Kant à tese de que o conhecimento (ciência) é resultado do esforço conjunto das atividades racionais e empíricas marcou a filosofia, senão toda a cultura ocidental, sendo, para alguns, um divisor de águas entre a modernidade e a contemporaneidade. De fato, foi um pensamento que permitiu nascer um novo cenário na filosofia, promovido, por sua vez, por filósofos de grande envergadura, como aqueles que elencam o movimento denominado Idealismo Alemão e que, como já se observa nessa expressão, coloca definitivamente os germânicos no rol dos grandes pensadores ocidentais.

03. Lia-se, no contexto de Kant, respeitáveis filósofos em defesa da fundamentação empírica na elaboração do conhecimento, capaz de não deixar com que este terminasse em vãs especulações, tal qual já avaliavam muitas das chamadas “querelas medievais”, que pressupunham as mais fantasiosas entidades etéreas para justificar uma proposição por uma prévia ideia geral do mundo. Destacamos aqui, para exemplificar o empirismo, a obra Ensaios sobre o conhecimento humano, de John Locke, que recupera a tese aristotélica de que “nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos”, ou seja, sem os dados sensoriais, sem a experiência do mundo, a razão humana é uma “tabula rasa” (uma tábua lisa), literalmente sem qualquer marca ou expressão, um papel em branco, um vazio, simplesmente inexistente.

04. Havia, no extremo oposto, contudo, obras de filósofos que defendiam que os dados instáveis e até mesmo contraditórios fornecidos pelos sentidos humanos acerca do mundo não são capazes de justificar as certezas que a ciência considera possuir. Tais certezas – sugerem – são, de algum modo, fornecidas pelo próprio pensamento humano ao pensá-las. Como contraponto ao empirismo, podemos destacar a obra, de Gottfried Wilhelm Leibniz, Novos ensaios sobre o conhecimento humano, na qual esse autor repete Locke, no sentido de que “nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos”, mas acrescenta, em seguida, “a não ser o próprio intelecto”. Este adendo firma a posição racionalista de Leibniz: o intelecto humano, antes de toda e qualquer experiência, não é uma “tabula rasa” ou um vazio como presumiam os empiristas. Porque humano, tal intelecto devia ser algo precisamente determinado ao modo de um intelecto humano, de tal maneira que o dado empírico é compreendido à luz dessa predeterminação ao modo, para Leibniz, de “ideias virtuais”.

05. Nesse contexto, provocado sobretudo pela obra de um empirista escocês chamado David Hume, que, ao combater quaisquer pressupostos metafísicos dos racionalistas, depara-se com o ceticismo, Kant propõe examinar se há razão humana antes de toda e qualquer experiência do mundo. Assim, importa a Kant que a razão se esforce, antes de atuar criticamente sobre os dados de experiência das coisas, para tomar-se a si mesma como alvo primeiro de sua própria crítica. Essa descentralização ou deslocamento, que vai do exercício do pensamento humano sobre as coisas para o ato do pensamento pensar a si próprio, Kant o compara à Revolução Copernicana que descentralizou a Terra e colocou o Sol como eixo do Cosmos. E é precisamente essa “Revolução Copernicana Kantiana” que justificará o título da mais famosa obra de Kant, Crítica da razão pura, entendendo que crítica é justamente prerrogativa da razão. Enfim, esta razão se torna centro de seu interesse, quanto àquilo que ela é necessariamente e independente, pois, de tudo mais que se lhe possa agregar, tratando-se, dessa forma, da razão “pura”, “a priori” ou, como preferirá Kant dizer, “transcendental”.

06. Se, como disse Kant, foi Hume que o despertou do sono do dogmatismo, o que se seguiu foi a tese kantiana contra Hume, de que a rotina sobre as coisas que consideramos assim conhecer não é condicionada por nossos hábitos adquiridos de repetidas experiências e projetadas, sob a forma de crença e expectativa, em relação às coisas e aos acontecimentos por vir, mas é-nos assegurada, isto sim, por determinações originalmente constitutivas do que denominamos “razão” – formas e categorias “a priori”. O esforço de Kant é, portanto, como que esvaziar a razão de tudo o que lhe é estranho e que ela absorveu da experiência das coisas do mundo, para, por fim, avaliar o que restou e do qual não é possível se desfazer, sem que igualmente a razão se desfaça de si mesma. O que assim soçobra é acidental à razão, restando-lhe apenas o que lhe é constitutivo. Porém, o que lhe é constitutivo, sem mais, só pode ser pensado, mas não propriamente conhecido, conforme diz-nos Kant, porque o conhecimento exige, além dessa forma racional apriorística, a matéria da experiência, na qual aquela possa se aplicar e moldar. Curiosamente, Kant responde metafisicamente a impossibilidade de um conhecimento ou ciência metafísica, ou seja, que despreze a experiência do mundo, mas também considera inaceitável a defesa de um conhecimento ou ciência que se constitua de experiências que se arranjem por si sós e que se depositem num receptáculo mental humano completamente passivo e inoperante. Escreveu ele, ao dar a público a sua Crítica da razão pura: “O conhecimento começa com a experiência, mas nem todo ele advém da experiência.”

07. Desse modo compreendido, percebe-se que Kant elaborou uma teoria do conhecimento efetivamente incapaz de dissociar o sujeito epistêmico da coisa que pretende conhecer. O resultado dessa relação, para ele, é o conhecimento de um objeto. Em outros termos, o que se conhece é o que a coisa é ao modo das predeterminações ou constituição inata do que denominamos capacidade racional do ser humano. Não é, por conseguinte, a compreensão da coisa em si mesma (“noumenon”), porém daquilo que a coisa é para nós (“fe-noumenon”). Claramente, para Kant, o que tomamos por mundo é representação humana. Entretanto, não é representação qualquer, mas assentada, de um lado, em formas e categorias precisas da mente humana e, por outro lado, na coisa tal e qual. Nada além disso, de maneira que Kant condena qualquer elemento passional ou tendência emotiva entre esses extremos e capaz de variar e comprometer a objetividade. Assim, outra curiosidade no pensamento kantiano: o conhecimento é humano, é subjetivo, não impossibilitando, contudo, vencer o relativismo epistemológico; ao contrário, porque somos detentores de mesma capacidade racional, formalmente, e enquanto estamos diante das mesmas coisas, sem mais, conhecemo-las do mesmo modo.

08. O aparato racional inato que garante o mesmo “modus operandi” no trato das coisas do mundo, permitindo, assim, conhecê-las à maneira humana, é constituído por duas capacidades em nós: a faculdade de sensibilidade e a faculdade de entendimento.

09. Para Kant, as coisas sensíveis se dispõem, se organizam, se arranjam primeiramente (por nós, em nós e para nós) por duas formas que nos são “a priori”: o espaço e o tempo. Logo, contra o senso comum, a filosofia kantiana sustenta que espaço e tempo talvez não sejam nada independentemente de nós ou fora de nós. Não são, pois, possivelmente, propriedades ou predicados do mundo, mas são, certamente, formas pelas quais temos a sensação assim mesmo como nos ocorre: todo sensível se distribui no espaço e no tempo. Tal defesa não afronta apenas o senso vulgar, mas afronta igualmente a respeitada física moderna newtoniana, mesmo que seja esta última uma grande inspiradora do Iluminismo, movimento intelectual do qual Kant faz parte: se Isaac Newton considerou espaço e tempo como atributos universais da natureza (“physis”), Kant confirma tal universalidade, mas substituindo, paradoxalmente, seu estatuto físico por um estatuto psíquico, como homens que, possuidores de retinas róseas, sem que o saibam, apreendem um mundo rosado e sempre rosado, como rosado fosse todo o mundo.

10. Se as coisas nos são assim sensíveis (âmbito que Kant denominará “estética”), o que já implica alguma maneira humana de composição, sobre elas podem atuar as categorias ou conceitos, também “a priori”, da faculdade do entendimento humano (âmbito que, por seu turno, Kant chamará de “analítica”). São 12 (doze) essas categorias, que podem ser resumidas em 4 (quatro):

I
QUANTIDADE
II
QUALIDADE
III
RELAÇÃO
IV
MODO

1) Totalidade
2) Pluralidade
3) Unidade
1) Realidade
2) Negação
3) Limitação
1) Substância
2) Causalidade
3) Reciprocidade
1) Possibilidade
2) Existência
3) Necessidade

11. Entendemos as coisas (damo-las-nos) segundo tais categorias – o que não quer dizer que são tais coisas em si mesmas assim como nós as entendemos. Por isso, ajuizamos sobre as coisas segundo essas categorias, o que nos permite sobrepor-lhes o seguinte quadro de juízos:

1) Universais
2) Particulares
3) Singular
1) Afirmativos
2) Negativos
3) Indefinidos
1) Categóricos
2) Hipotéticos
3) Disjuntivos
1) Problemáticos
2) Assertóricos
3) Apodíticos

12. Exemplificando cada juízo:

1) Todo X é Y
2) Algum X é Y
3) Este X é Y
1) X é Y
2) X não é Y
3) X é não-Y
1) X é Y
2) Se X é Y e Y é Z, então X é Z
3) X é Y ou X é Z
1) É possível que X é Y
2) De fato, X é Y
3) Necessariamente, X é Y

13. Isto responde, ao modo kantiano, à pergunta de David Hume de como podemos considerar conexões habituais (advindas das simples experiências corriqueiras e afins, mas contingentes) como conexões necessárias, o que para Hume é logicamente impossível, ilusório e sustentado na precariedade psicológica do costume e da crença de que o futuro dar-se-á tal e qual o passado. Contudo, para compreendermos melhor isso, precisamos recuperar as considerações que preliminarmente Kant faz acerca dos juízos.

14. Segundo a tradição, que Kant adota, há juízos acerca das coisas que são “analíticos” ou “sintéticos”, bem como “a priori” ou “a posteriori”.

15. Se ajuízo que “o corpo é extenso”, realizo um juízo analítico, pois, ao analisar o que faz de um corpo exatamente corpo, entendo que é tudo aquilo que necessariamente o constitui ou tudo aquilo sem o que o corpo deixa de ser o que é: corpo! Ora, ao enumerar esses predicados essenciais a todo e qualquer corpo, vejo ali a “extensão”. Não há como pensar corpo que já não seja algo extenso e de tal maneira que consideramos que todo corpo ocupa um lugar no espaço. Logo, caso eu ouça alguém gritando “olha, um corpo”, sei que este corpo, embora dele eu não tenha experiência, é obrigatoriamente algo extenso ou, do contrário, não é um corpo. Daí que tal predicado não é um acidente ao corpo, mas um atributo do corpo em geral, universal. Podemos, então, ousar dizer não somente que “o corpo é extenso”, mas que “todo corpo é extenso”, os já dados à nossa sensação ou não. Por isso mesmo, todo juízo analítico é também “a priori”, quero dizer, pode ser considerado antes que dele se tenha experiência, como acabamos de fazer no exemplo dado. Trata-se de um juízo estritamente conceitual, racional.

16. Se ajuízo que “o corpo é móvel”, realizo um juízo sintético, pois, ao analisar o que faz de um corpo exatamente corpo, entendo que é tudo aquilo que necessariamente o constitui ou tudo aquilo sem o que o corpo deixa de ser o que é: corpo! Ora, ao enumerar esses predicados essenciais a todo e qualquer corpo, não vejo ali a “mobilidade”. Há como pensar corpo que seja algo “móvel” ou “não móvel”. Logo, caso eu ouça alguém gritando “olha, um corpo”, não sei dizer, sem a experiência do mesmo, se ele está em movimento ou não. Daí o predicado “móvel” (poderia se “imóvel”) é um acidente ao corpo, um atributo que lhe é acessório, que lhe é associado ou sintetizado contingentemente. Por isso mesmo, todo juízo sintético é também “a posteriori”, quero dizer, só posso considerá-lo após dele ter experiência. Trata-se de um juízo imediato e sensível. Neste limite da minha experiência (e acompanhando o exemplo dado), só me cabe dizer que “este corpo é móvel” ou (porque conceitualmente pode deixar de sê-lo ou de outro corpo não o ser) que “algum (ou pelo menos um) corpo é móvel”.

17. Daí, podemos sumamente dizer que para a tradição filosófica havia dois tipos de juízos: os juízos analíticos “a priori” e os juízos sintéticos “a posteriori”. Isso fez com que, por suas características opostas, duas vertentes de pensamento se digladiassem, respectivamente: o racionalismo e o empirismo.

18. Os juízos analíticos “a priori” apresentavam a vantagem de serem enunciados indiscutíveis, donde um René Descartes pudesse, então, pretender erguer o edifício da ciência logicamente rigorosa. Todavia, esses juízos foram acusados de ter a sua certeza calcada numa espécie de redundância, como a tautologia A = A, o que, se por um lado é evidente, por outro lado é praticamente inútil, sendo geralmente chamados de juízos “metafísicos”.

19. Os juízos sintéticos “a posteriori” apresentavam a vantagem do conceito predicado acrescentar algo novo ao conceito sujeito da proposição, o que lhe é assegurado,segundo Francis Bacon, pela experiência do mundo. Porém, o próprio Bacon já compreendia o defeito lógico da indução e que, em tese, produzia prejuízos à garantia técnica no poder de intervenção desse tipo de saber.

20. Foi nesse contexto, pouco promissor, que Kant ousou elaborar uma questão que, se não fosse imediatamente absurda à tradição filosófica, lhe seria de fácil resposta negativa. Perguntou ele sobre a possibilidade de um tipo de juízo que preservasse somente as vantagens de ambos os juízos tradicionais, ao qual chamou de “juízo sintético ‘a priori’”, ou seja, uma proposição pela qual houvesse um incremento do saber (pois, sendo sintético, o conceito predicado acrescentaria algo novo ao conceito sujeito), mas, simultaneamente, este vínculo fosse necessário e não contingente. Surpreendentemente, a resposta que o próprio Kant deu à sua questão não foi negativa. Kant defendeu que há esse tipo de juízo, que é ele o único que se pode fielmente chamar de “conhecimento”, que ele implica uma feliz conciliação de razão e experiência, que é por ele que a ciência moderna se constrói. Por isso mesmo, as teorias científicas se pretendem respaldadas pela experiência do mundo, ao mesmo tempo em que se pretendem universais.

21. Quando dizemos, por exemplo, que “a reta é a menor distância entre dois pontos”, percebemos que o conceito predicado é quantitativo (pois expressa uma medida), mas que o conceito sujeito não é quantitativo, mas qualitativo (tanto que estudamos a reta ao lado de outras ideias como a curva e a quebra – que não se distinguem entre si pelas medidas que têm; aliás, podemos até pensá-las tendo a mesma medida e nem, por isso, são idênticas). Ora, se assim é, então também é inegável que o predicado (quantitativo) acrescenta algo novo ao sujeito (qualitativo). No entanto, tal predicado não é acidental ao sujeito, mas lhe é necessário e universal.

22. Essa novidade, Kant a apresenta como possível, porque, embora possa o homem incrementar o saber através de sua capacidade de experiência do mundo, o modo pelo qual tal material que daí resulta é articulado são segundo as formas e as categorias inatas a todo homem e as quais chamamos, enfim, de razão humana, conforme elucidamos antes. Para Kant, somente esse produto pode ser denominado “conhecimento”. Escreveu ele, nesse sentido, que “conceitos [categorias] sem intuições [intuições sensíveis, matéria da experiência] são vazios e intuições sem conceitos são cegos”.

23. Essa teoria do conhecimento é, para Kant, um despertar do sono dogmático da filosofia metafísica (avessa à experiência do mundo para a construção de um pensar rigoroso), do qual ele mesmo se disse, certa vez, vítima, mas não deixou de ser também um despertar para os que fossem vítimas de um empirismo ingênuo que partia do pressuposto de que as coisas se arranjavam por si mesmas e se davam como tal a um sujeito do conhecimento que fosse “tabula rasa”. Para Kant, o sujeito cognoscente tem que se desfazer de todos os sentimentos, emoções, paixões e tendências passionais que comprometerão a lisura de sua investigação científica, mas não tem como se desfazer da precondição correspondente ao seu aparato psíquico e racional, constitutivo de todo ser humano (por ser precisamente isso que o faz humano). É esta precondição que Kant chama de “transcendental”.


24. Apesar disso tudo, Kant termina a sua obra Crítica da razão pura inquieto com uma questão que será o fio condutor para a sua Crítica da razão prática. Kant considera a ciência como produto da modernidade, como produto recente da humanidade. Ao contrário, a metafísica é algo à qual a humanidade se dedica há muito mais tempo. Ora, se a metafísica não alcança o estatuto de ciência do mundo (defesa de Kant), qual é o estatuto da metafísica, que a fez produto cultural secular do Ocidente? Oportunamente, podemos tratar dessa questão aqui, dando continuidade a este artigo, que, por ora, pretendeu apenas abordar a teoria do conhecimento do pensamento kantiano. Contudo, é instigante já adiantar que, para Kant, a metafísica não responde aos apelos epistemológicos que temos (e conforme vimos), mas aos nossos apelos éticos, isto é, aos desafios de como devemos nos conduzir na vida.

7 de fev. de 2012

TEXTO XXIV: Ciência e Mito num Diálogo Possível da Filosofia com a Antropologia Cultural

Rodrigo Rodrigues Alvim

1 – A Importância da Questão do Mito

01. Talvez alguns etnólogos ainda estranhem um interesse pelo estudo da possível correlação entre mito e Epistemologia na esfera da Antropologia Cultural, pelo mesmo motivo que alguns filósofos também advogariam tal investigação à esfera de uma Metaciência (1). Esta estranheza, no entanto, só poderia advir de um espírito demasiadamente marcado por uma postura positivista que restringe a cada ciência um objeto e uma metodologia absolutamente específicos e, portanto, claramente distintivos, não reconhecendo assim temas limítrofes entre uma esfera científica e outra; de um espírito que desconhece a postura transdisciplinar, a partir da qual hoje (e quiçá sempre) os objetos de investigação requerem tratamento adequado. Além disso, devemos fazer notar que todos os grandes antropólogos, assim reconhecidos, sempre propuseram, ao lado das inúmeras considerações específicas acerca da sociedade exótica para a qual se atentavam, problematizações concernentes à delimitação do seu objeto e à sua metodologia, que valeriam, de um modo geral, para toda a Ciência Etnológica, estabelecendo, pois, um intenso diálogo com todas as ponderações em mesmo sentido levantadas pelos antropólogos do passado. Ou seja, não se detendo no simples fazer antropológico de campo como determinava a tradição, mas discursando sobre o próprio fazer da Ciência Antropológica, estes homens se tornaram renomados sobretudo pela sua Metaciência, construída, todavia, não somente a par de um diálogo com os etnólogos do passado, mas também a par dos desafios que enfrentavam em campo.

02. Em verdade, Filosofia e Etnologia sempre estiveram juntas, porque formalmente diversas, em toda a contemporaneidade (2). Não há filósofo que atualmente se faça ouvir sem que perpasse o seu pensamento pela diversidade cultural sublinhada pelos trabalhos antropológicos e sem que por esta se deixe perpassar. Por outra parte, reconhece-se presentemente que os estudos etnográficos só se justificam à luz de uma teoria de fundo que os possa fazer o mais amplamente inteligíveis e em grande medida comensuráveis entre si.

03. Assim rapidamente esboçado e brevemente justificado o nosso tema, gostaríamos ainda de destacar a interação entre Filosofia e Etnologia através das palavras de Marcel Detienne ao se deparar com a declaração confidencial de Marcel Mauss à Sociedade Francesa de Filosofia, segundo a qual "não nos basta descrever o mito; seguindo os princípios de Schelling e dos filósofos, queremos saber o que ele traduz" (MAUSS, 1969: 161):

(...), sendo a questão de natureza filosófica, é da Filosofia que deve vir a resposta. Schelling já havia percebido há muito tempo: a filosofia da mitologia é a verdadeira ciência da mitologia. E a empreitada de [Ernest] Cassirer (em La philosophie des formes symboliques, publicada na década de 1920) homenageia as intuições de L'introduction à la philosophie de la mythologie (1856) [Obra de Shelling]. (...). Os inúmeros coletores de mitos são recompensados por seu trabalho e a filosofia neokantiana põe termos aos tormentos de Mauss: ela se encarrega de enunciar a 'essência pura' da função mítica (DETIENNE, 1992: 187-188).

04. Foi impulsionado por esta mesma esperança de se encontrar tal "essência pura" ou estrutura última dos inumeráveis modos de se sentir, de se pensar e de se fazer, que o mais famoso antropólogo do século XX, Claude Lévi-Strauss, ergueu todo o seu trabalho etnográfico e etnológico, o que revigora ainda mais a atualidade do tema que ora propomo-nos aqui apenas introduzir (3).

2 - Colocação da Questão do Mito

05. Há uma lei que se impõe a todo conhecimento que se queira obter ou, mais extensivamente, a toda e qualquer exploração que se almeje fazer: "é preciso proceder do conhecido ao desconhecido" ou, recodificando, "conhecer é reduzir o desconhecido ao conhecido" (IDE, 1997: 2-5; ALVES, 1993: 45). Imediatamente, nenhum pensador se demora em nos multiplicar exemplos do nosso próprio cotidiano que nos confirmem esta lei. Contudo, basta que procuremos percorrer em regresso esta cadeia relacional que se quer para depararmo-nos com uma questão muito embaraçosa, frontalmente contraditória ao caráter universal desta mesma lei: caso não queiramos regressar infinitamente nesta cadeia, deveremos, em tese, finalmente nos deter, em algum instante, em um conhecimento primeiro, nem nunca outrora desconhecido e que, portanto, jamais requisesse a antepostagem de um já conhecido, que, do contrário, reinauguraria aquele interminável regresso que se quer vencer. Deveríamos, pois, nos deter em algo que nos fosse por si próprio e como que já impresso em nós mesmos, em algo dado aprioristicamente, em cuja evidência, portanto, reduziríamos e venceríamos todo o caos com o qual viemos a nos deparar aposterioristicamente.

06. O sociologismo durkheimiano sugere-nos que esse parâmetro dado ao indivíduo seria fruto de sua formação social, recebida por ele desde muito antes do indivíduo exercer a sua capacidade reflexiva. Entretanto, esta resposta só encontra satisfação no interior de uma sociedade hermética. Por isto, ao contrário do estudo sociológico, a investigação etnológica se preocupará com a comensurabilidade entre as mais distintas sociedades, confiando, como os primeiros filósofos gregos, na existência de um mesmo arqué, através do qual, para os antropólogos, os grupos humanos se expressariam de variados modos (4). Somente uma estrutura original perfiladora do humano seria capaz de assegurar a compreensibilidade por parte do próprio estudioso - formado numa precisa sociedade - do seu "objeto" (uma sociedade exótica); somente esta estrutura original seria capaz de assegurar à antropologia sair do simples "descritivismo" - que apenas sub-repticiamente convence-nos que pode oferecer-nos o pleno mostrar-se do próprio "objeto" e somente dele mesmo (5) -; sair do "descritivismo" sem que se perca a objetivação da investigação. Se não há a mediação dessa estrutura originante de todas as culturas, somente restaria ao etnólogo conter-se numa etnografia do sujeito tabula rasa, embora possa se reconhecer de antemão a impossibilidade dessa postura abertamente defendida pelos positivistas. Os estruturalistas levistraussianos, assim, propõe-nos não a absoluta negação da sugestão do sociologismo durkheimiano, mas lançam, para além dos precisos contornos de uma dada sociedade, o parâmetro que enseja não apenas estes contornos (da sociedade complexa européia, por exemplo) e, sim, mais amplamente, de todas as sociedades existentes, amostras atualizadas dentre os inúmeros possíveis de um universal, que pode ser entrevisto nas relações de parentesco ou nos muitos mitos existentes.

07. Por conseguinte, os antropólogos se vêem - eles mesmos, que se deparam com uma infinita constelação cultural - preocupados com o universal que lhes possibilite alinhavar, mediar, ordenar e compreender o que foi colhido dispersamente. Tão somente assim é possível a tradução das tradições e a extradição em todas as direções que perfazem o amplo e único tecido humano, tecido que denominamos fundamentalmente antropológico. Tal exigência da Ciência Antropológica ou "condição de possibilidade" da atividade reconhecidamente humana e cultural coincide com a mesma exigência ou "condição de possibilidade" epistemológica de toda ciência física ou biológica e a sua detecção mais próxima encontra-se na expressão mitológica, uma vez que o universal que se procura coincide com o próprio mito. Isto é o que procuraremos entrever.

3 - O Mito como "Conhecimento" Primacial

08. Do que afirmamos acima, a necessidade de um conhecimento primeiro que não requeira demonstração, mas que se faz parâmetro a partir do qual todos os demais conhecimentos poderiam se construir, se demonstrar e se correlacionar, deve ter-nos parecido uma exigência razoável, mas impossível de se obter. Porém, em verdade, como também anteriormente já o dissemos, este conhecimento é um dado, não uma conquista. Por ser distinto dos outros conhecimentos, diríamos, como Immanuel Kant, que ele estaria muito mais para um pensamento do que para um conhecimento propriamente dito.  Para muitos, inclusive, ele estaria assentado na própria estrutura mental humana, como propôs-nos Sigmund Freud. E por não prescindir-se de demonstração, diríamos que ele se nos vem como crença. Freud tentou elucidar tal estrutura mental em sua porção a priori mediante os mitos. E os mitos são fundamentalmente crença. Embora por um traçado tão breve, o que desejamos ponderar é que aquele "conhecimento" original e basilar é mítico e que não requer comprovação como os demais conhecimentos porque é crença, é dado - malgrado o nosso querer -, é constitutivo de nossa humanidade, é, aliás, o que nos faz humanos e diferentes dos demais animais, ou seja, seres de cultura.

09. Logo, não obstante os inúmeros trabalhos antropológicos de campo tenham contribuído para denunciar o etnocentrismo europeu e norte-americano - atributo aliás pertencente a todas as sociedades (LÉVI-STRAUSS, 1989 a: 15-16) -, o princípio universal que sempre assombrou os epistemólogos nunca abandonou a Etnografia, nem mesmo quando esta se baseou num só caso (6). O contato com outras sociedades fez com que, paulatinamente, ficasse insustentável aos próprios europeus se considerarem a cultura per excellence, a "civilização" modelo para todos os demais povos. Mas esta crise que abalou irreversivelmente a supremacia das leis, dos hábitos e dos costumes da Europa ainda persiste na tentativa de comprometer definitivamente a referência a um universal, que, se não mais se expressa tal e qual numa cultura em particular, faz-se presente no mais detrás de todas as sociedades, nos interstícios de cada particularidade social.

10. Na esfera antropológica, Claude Lévi-Strauss se tornou o maior porta-voz dessa inquietude. Não se pode conhecer o que está em constante transformação ou indefinidamente múltiplo (ALVES, 1993: 40-41). Esta antiga consideração, donde se despontou o nosso discurso racional (7) - sempre tão caro aos ocidentais -, encontrou hodiernamente a sua primeira exceção no estudo sobre o homem, proposto pela filosofia existencialista. Irredutível em seu ser no mundo, cada homem seria, então, dotado da mais completa singularidade, fruto, por sua vez e em última instância, de sua condição de ente dotado de liberdade. Na extrema consideração de Jean-Paul Sartre, a única característica comum e determinantemente irrevogável de todos os homens seria paradoxalmente a sua condenação a ser livre (SARTRE, 1987: 9-19). Frente a essa corrente de pensamento, que tão logo se popularizou na Europa, o estruturalismo antropológico levistraussiano foi acusado de "matar o homem" para dele poder fazer ciência, negando-lhe assim o que este homem pensa ter como atributo distintivo: a tarefa de escolher sua essência absolutamente particular, uma vez que esta não estaria previamente estabelecida por nenhuma natureza ou estrutura (8). Foi, no entanto, bem percebido que, se se quiser desenvolver uma teoria geral das culturas, a aposta de uma estrutura basilar e universal sobre a qual todas elas se assentam é uma correlata inevitável. E deve-se esperar que, numa sociedade científica crescentemente laica e materialista como a atual, este fundamento dos fundamentos venha a ser procurado numa redução dos processos culturais aos processos psíquicos estruturais, dos processos psíquicos estruturais às funções de cunho neuro-biológico e destas às combinações físico-químicas, como bem sugeriu o próprio Claude Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 280; 285 e 292). É em virtude dessa hipótese que ele delimitará o papel das ciências exatas e naturais, a saber:

(...) reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas. (...). O dia em que chegarmos a compreender a vida como uma função da matéria inerte, será para descobrir nestas propriedades muito diferentes das que lhe eram atribuídas anteriormente (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 275-276).


11.A influência que Lévi-Strauss sofre de Immanuel Kant é incontestável. À Antropologia caberia perseguir um substrato sócio-humano "trancendental", no sentido rigoroso do termo, que pouco a pouco, portanto, superasse a aparente dispersão do material colhido pela Antropologia Empírica (9). Os estabelecimentos da Antropologia Transcendental, não obstante sejam dados a priori, não nos são, contudo, dados conscientemente a priori, mas exigem-nos um esforço de abstração ("tirar de") para depurá-los de suas inúmeras expressões a posteriori (culturais), o que é possível através de vários entrecruzamentos comparativos. Pretender radicá-los em mecanismos biológicos (estrutura do cérebro, lesões, secreções internas) - como o faz Lévi-Strauss - é apenas uma atualização do pensamento kantiano à ciência moderna, que este mesmo prestigiou, em seus aproximadamente duzentos anos - na sua "Crítica da Razão Pura".

12. De bom grado, como lemos n'O Pensamento Selvagem, Lévi-Strauss aceitou-se como "materialista transcendental e esteta", designação originária da crítica de Sartre ao seu pensamento e não escondeu que, no que tange à epistemologia, ele se sentia cada vez mais kantiano (URDANOZ, 1985: 293-294). Esta proximidade não poderia ser mais feliz, visto que a Antropologia Cultural hoje desenvolve exatamente o que Immanuel Kant propôs à Filosofia, promovendo nesta última, por isto mesmo, uma revolução de inestimáveis repercussões. O século XVII ficou conhecido como "o século do método", mas indubitavelmente foi somente nos finais dos oitocentos que a divisão de águas no campo da Epistemologia se deu. Até Kant, os filósofos apressavam-se basicamente na delimitação ou definição do objeto que se pretendia conhecer. Kant, então, deslocará a atenção filosófica deste objeto (do qual se fala) para o sujeito (que fala), perguntando pela sua delimitação, ou seja, pelas condições de possibilidade a priori do sujeito cognoscente. Somente este simples deslocamento já instaura grande parte da revolução kantiana, posto que subitamente denuncia a existência de limites às capacidades humanas, no que se refere ao conhecimento. Apesar de hodiernamente esta finitude não nos causar mais qualquer surpresa, há apenas duzentos anos atrás os próprios filósofos, racionalistas ou empiristas, encontravam-se imersos num "realismo ingênuo", calcado num antropocentrismo não menos ingênuo, por acreditar na onipotência do sujeito cognoscente. Com a necessidade de antes definir ou "dar os precisos contornos" daquele que fala, nasceu a Antropologia como disciplina filosófica e fincou-se o marco inaugural do Pensamento Contemporâneo.

13. Desde então, o mundo em si e por si mesmo estará para sempre perdido, pois o sujeito, que com aquele se correlaciona, não é uma tabula rasa que a aquele pode-se conformar plenamente, porém é algo, antes de qualquer experiência, constituído de limitadas capacidades - ainda que, sob determinados aspectos, bastante amplas -, capacidades pelas quais o sujeito conforma o mundo ou com as quais ele filtra o mundo. Este mundo, por conseguinte, não é mais como em si mesmo, mas para um dado sujeito, em interação com este, ao modo deste, como este. O mundo não é o mesmo para todas as espécies que o captam, mas pode ser o mesmo para os indivíduos de uma mesma espécie que o captam. O mundo em si, como a própria expressão já o diz, não é para o homem, mas o mundo na sua relação e interação com os indivíduos da espécie humana ainda pode assegurar-se uma certa objetividade, se estes mesmos indivíduos suspenderem as suas particularidades emocionais e as suas experiências vividas outrora singularmente. Não é mais uma objetividade que se apoia no pólo "objeto" da tradicional relação da Teoria do Conhecimento (S-O), mas na interpenetração de ambos os pólos.

14. O "Eu transcendental de Kant", que se identifica com cada eu particular em sua estrutura a priori, sobreviveu bem ao cenário europeu. E não obstante tenha recebido incontáveis críticas no âmbito filosófico, foram exatamente os trabalhos etnográficos, mormente de outras sociedades e culturas, que lhe impuseram os seus maiores desafios e quase o golpearam fatalmente mediante os diferentes modos de se pensar e conhecer, relatadas pelas expedições antropológicas.

15. Mas a reação não demorou fazer-se sentir. Com a descrição de modos de cultura tão diversos, a própria Antropologia Cultural ressentiu-se da importância da existência de um aparato comum e substantivo a todos estes materiais coletados e que os fizessem inteligíveis entre si. Foi por este prisma que recuperamos até aqui um itinerário antropológico que tende a ficar à sombra de um "relativismo cultural" mais vulgar ou vulgarizado, isto é, mais apaixonadamente difundido pelos próprios acadêmicos, que não percebem nisto um irracionalismo que compromete principalmente o exercício a que são chamados.

16. É contra esta tendência que Claude Lévi-Strauss mais atualizou esforços. A princípio não fala como Kant de uma estrutura de pensamento, mas encanta-se com a estrutura linguística, sobremaneira a par dos trabalhos de Ferdinand de Saussure, fazendo uma transposição do método fonológico à Etnologia. Coincidentemente, a Filosofia Contemporânea, de uma maneira especial na sua vertente "analítica", passou a considerar o próprio pensamento como linguagem, o que poderia em alguma medida justificar um inevitável encontro ulterior de Lévi-Strauss com Kant e a sua grande afinidade para com a obra deste.

17. Na busca de invariáveis universais, a Antropologia Cultural encontra-se, portanto, com a Filosofia. E pela sua tenra idade, também não escapa de demoradas preocupações metacientíficas. E, de fato, a sua contribuição para a reavaliação e redefinição de método(s) no seio das Ciências Humanas e das próprias Ciências em geral não podem ser economizadas em sua grandeza. A prática atualmente tão banal da interdisciplinaridade, por exemplo, é conseqüência do vitorioso caminho já trilhado pela Etnologia desde um tempo em que o sectarismo positivista entre as Ciências consolidadas ainda era hegemonicamente recomendado. Foi nesse seu percurso que inevitavelmente a Antropologia Cultural se deparou com uma questão de primeira ordem no campo epistemológico: ao do fundamento primeiro e último das Ciências, dela mesma especialmente, questão que ela estenderá ao seu próprio objeto de investigação, que, enfim, abarcaria estas mesmas Ciências como subfenônomenos seus: a(s) cultura(s).

18. Os resultados advindos do tratamento dessa problemática são múltiplos, mas todos superam a linearidade e simplicidade da resposta neopositivista. A evidência por detrás de todo aparato epistemológico e cultural, desde onde começa, termina e se mantém inclusive a mais rigorosa demonstração científica ou sistema social - relembremos os procedimentos do método fonológico, destacadamente o segundo e o terceiro, que capacita as Ciências Sociais a formular as relações necessárias latentes em seu objeto (10) - indica-nos uma estrutura inconsciente, visto que o mais evidente é, contraditoriamente, o menos vidente. Logo as suas manifestações mais basilares têm estatuto de crença, como o mito ou a religião. Não se pretende diante disso avaliar tais fenômenos humanos como pejorativamente inferiores às manifestações de traços denominados técnico-científicos. Afinal tudo emerge de uma mesma matriz. Contudo, aqueles fenômenos são diacrônica, lógica e ontologicamente inferiores, ou melhor, anteriores (no sentido de primaciais e, conseqüentemente, fundamentais à ciência). Também em outros campos do saber, muitos estudiosos entreveram isto. Na famosa carta, de 1932, que o pai da Psicanálise escreve a Albert Einstein, Freud interpela ao grande físico: "Não será verdade que cada Ciência, no fim, reduz-se a um tipo de mitologia?" E muito mais próximo da Antropologia Cultural, o positivista d'As Regras do Método Sociológico, Émile Durkheim, conclui em sua última obra: "(...) até as noções essenciais da lógica científica são de origem religiosa" (DURKHEIM, 1989: 507). E noutra parte: "A Ciência é fragmentária, incompleta; avança muito lentamente e jamais está concluída; mas a vida não pode esperar" (DURKHEIM, 1989: 509). Portanto, o cabedal mítico-religioso é um todo compacto e totalizante, primeiro estamento humano que se acha colado à estrutura íntima das coisas, confundindo-se mesmo com esta; dá unidade, organização e sentido à vida humana, antes que a Ciência se gere, posteriormente, em sua dissecação.


19. Tais considerações ressaltam, então, a importância da participação primacial do mito na formação do mundo humano, seja natural seja cultural, e, particularmente, por inclusão, na formação da Ciência, como instituição igualmente humana, ou de qualquer outra instância gnoseológica. Ocupando também aí um lugar central, o mito deve receber de todas estas uma atenção que a "assepsia" positivista simplesmente lhe negou por acreditar que, se assim o fizesse, estaria comprometendo a plena objetividade do conhecimento científico, objetividade esta completamente ilusória, se estamos convencidos de que o saber humano, exatamente porque humano, jamais poderá verdadeiramente prescindir-se do sujeito como um dos pólos intrínsecos a todo constructo epistemológico que efetivamente se possa ensejar.

Referências

ALVES, Rubem. Filosofia da ciência. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
DETIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: UnB, 1992.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
IDE, Pascal. A arte de pensar. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d.
____________. Raça e história. In: Antropologia cultural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 (a).
____________. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989 (b).
MAUSS, Marcel. Œuvres. Paris, 1969, v. 2.
MELLO, Luiz Gonzaga. Antropologia cultural. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
REDFIELD, Robert. Introdução. In: MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Edições 70, 1988.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
URDANOZ, Teofilo. Historia de la filosofia. Madrid: Catolica, 1985, v. 8.


(1) A Metaciência foi o único espaço que os próprios neo-empiristas ou neopositivistas (guardiães da ciência moderna clássica) ainda reservaram à Filosofia. Esta não passaria, portanto, de uma discurso analítico sobre o discurso científico, diverso dos discursos religioso e "metafísico" ou da expressões mítica e artística. A Filosofia resumiu-se, então, numa simples filosofia da linguagem. A Ciência seria uma linguagem que permitiria ao homem um discurso objetivo, isto é, fidedigno, acerca da realidade. E se é por ela que a Ciência se faz, dela a ciência não poderia tratar sem cair numa petição de princípio. Tal tarefa foi, conseqüentemente, delegada à Filosofia, da qual, antes, os mesmos positivistas haviam usurpado qualquer validade enquanto discurso sobre o mundo. O pensador Ludwig Wittgenstein é indubitavelmente a melhor ilustração que temos nesse sentido. Sua obra Tratado Lógico-Filosófico foi considerada pelos mais importantes neo-empiristas da sua época como a "gramática da Ciência". Qualquer elucubração que não respeitasse estas normas gramaticais estaria para o além-fronteira científico, denominado pelo próprio Wittgenstein como a instância do "místico".
(2) A Filosofia no seu sentido mais amplo e remoto é entendida como a busca do sentido último, universal e necessário, de tudo o que é. A Etnologia, por sua vez e ao contrário, é entendida como um estudo das culturas pelo que cada qual apresenta como distintivo na constituição do modus vivendi das sociedades.
(3) Este artigo foi publicado na Rhema – Revista de Filosofia e Teologia.
(4) Há aqui uma clara alusão a Aristóteles, para quem, depois de ter passado em revista todos os grandes pensadores gregos até o seu tempo, "o ser [o que é] se diz de vários modos, mas nenhum modo diz o ser [em todas as suas possibilidades]". Isto refere-se a tudo o que é, a tudo o que existe. Era, todavia, inimaginável a Aristóteles e a algum outro coetâneo ou contemporâneo seu a aplicação desse ditado ao pluralismo cultural. A tentativa, porém, de muitos estudiosos das sociedades em comparar as suas conclusões de campo com elaborações alheias, feitas em tempos, espaços e culturas diferentes, contribui para a seriedade da suspeita de que tacitamente todos eles tendiam a acreditar na existência de um parâmetro comum para a diversidade de seu objeto, uma unidade estrutural opaca por detrás de toda multiplicidade cultural.
(5) De fato, a corrente antropológica difusionista, principalmente pelo seu viés norte-americano, inaugurado por Franz Boas, procurou dar ênfase à simples coleta de dados, criticando a hegemonia evolucionista desde o nascimento da antropologia na modernidade e propondo a suplantação da etnologia pela etnografia: "Os difusionistas passaram a ver na explicação evolucionista da cultura uma forte marca de apriorismo, muita especulação e pouca ciência. (...). Alguns chegaram a dizer que havia urgência em coletar dados e informações sobre os povos primitivos antes que os mesmos desaparecessem ou fossem atingidos pela civilização. Boa parte dos antropólogos entenderam que, ao menos por enquanto, o mais importante era coletar os dados e não explicar o fenômeno cultural. Este último poderia esperar algum tempo. No momento, o importante era coletar o máximo de informações que propiciassem, mais tarde, elementos suficientes que permitissem as elaborações teóricas" (MELLO, 1995: 223-224). Logo, visto em si mesmo, o difusionismo foi mal interpretado e amplamente divulgado como defensor de um "relativismo cultural" (como exemplo, recorramos ao verbete Antropologia Cultural que compõe a edição atual da Larousse Cultural, volume II, página 350), o que repentinamente se dissipa se ousarmos elucidá-lo numa esfera mais ampla, em relação às vertentes antropológicas que o antecederam e sobrevieram. De qualquer modo, pela tarefa primacial que o difusionismo se colocou, a simples coleta de dados, qualquer tentativa de teorização seria-lhe impossível. Em verdade, porém, os difusionistas norte-americanos "não desprezavam a possibilidade de um estudo universal da cultura, nem o método comparativo. Negavam, e com veemência, fosse possível pô-lo em prática no estágio em que se encontrava a antropologia. Achavam que, antes de se partir para tal realização, mister seria realizarem-se numerosos estudos de pequenas comunidades; destarte seria possível, futuramente, proceder-se a um estudo mais vasto" (MELLO, 1995: 231).
(6) Neste sentido, podemos recorrer à clássica introdução que Robert Redfield, professor da Universidade de Chicago, fez às obras de Bronislaw Malinowski ("Magia, Ciência e Religião", "O Mito na Psicologia Primitiva" e "Baloma; os Espíritos dos Mortos nas Ilhas Trobriand"): "A crítica tantas vezes feita a Malinowski, de que generalizou a partir de um só caso, perde grande parte de sua força a partir do momento em que se pode admitir o pressuposto de que existem uma natureza humana e um padrão universal de cultura. Nunca nenhum outro autor melhor o justificou. Podemos ficar a saber muito de todas as sociedades a partir de uma única, de todos os homens a partir de alguns, se o invulgar conhecimento for combinado com o estudo paciente e prolongado do que outros autores escreveram a respeito de outras sociedades" (REDFIELD, 1988: 12). Mais contemporaneamente, escreve Lévi-Strauss: "O valor eminente da Etnologia é o de corresponder à primeira etapa de um processo que comporta outras: para além da diversidade empírica das sociedades humanas, a atividade etnográfica pretende atingir invariantes (...)" (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 275).
(7) Seria interessante aqui rememorarmos o parentesco que o "ato de racionalizar as coisas" teria, em sua franja etimológica, com o "ato de racionar as coisas". Racionalizar é justamente isto: reduzir toda uma multiplicidade em um, do qual todos seriam, em primeira ou em última fronteira, originários.
(8) "O conhecimento dos homens às vezes parece mais fácil para aqueles que se deixam prender na armadilha da identidade pessoal. Mas assim eles fecham para si a porta do conhecimento do homem: (...). De fato, Sartre torna-se cativo de seu Cogito" (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 277).
(9) O que para Immanel Kant tratava-se de uma Antropologia Empírica será denominado por Claude Lévi-Strauss de Etnografia; o que para o primeiro constituía uma Antropologia Transcendental será chamado pelo segundo de Etnologia, de um modo geral, e de Antropologia Estrutural, de um modo particular.
(10) Escreve-nos Lévi-Strauss: “A fonologia não pode deixar de desempenhar, perante as ciências sociais, o mesmo papel renovador que a física nuclear, por exemplo, desempenhou no conjunto das ciências exatas. Em que consiste esta revolução, quando tratamos de encará-la em suas implicações mais gerais? É o ilustre mestre da fonologia, N. Trubetzkoy, quem nos fornecerá a resposta a esta questão. Num artigo programa, ele reduz, em suma, o método fonológico a quatro procedimentos fundamentais: [1] em primeiro lugar, a fonologia passa dos fenômenos  lingüísticos conscientes ao estudo de sua infraestrutura inconsciente; [2] ela se recusa a tratar os termos como entidades independentes, tomando, ao contrário, como base de sua análise as relações entre os termos; [3] introduz a noção de sistema – ‘A fonologia atual não se limita a declarar que os fonemas são sempre membros de um sistema, ela mostra sistemas fonológicos concretos e torna patente sua estrutura’ –; [4] enfim, visa à descoberta de leis gerais, quer encontradas por indução, ‘quer (...) deduzidas logicamente, o que lhes dá um caráter absoluto’” (LÉVI-STRAUSS, s/d: 47-48).