Rodrigo Rodrigues Alvim
1 – A Importância da Questão do Mito
02. Em verdade, Filosofia e Etnologia sempre estiveram juntas, porque formalmente diversas, em
toda a contemporaneidade (2). Não há filósofo que
atualmente se faça ouvir sem que perpasse o seu pensamento pela diversidade
cultural sublinhada pelos trabalhos antropológicos e sem que por esta se deixe
perpassar. Por outra parte, reconhece-se presentemente que os estudos
etnográficos só se justificam à luz de uma teoria de fundo que os possa fazer o
mais amplamente inteligíveis e em grande medida comensuráveis entre si.
03. Assim rapidamente
esboçado e brevemente justificado o nosso tema, gostaríamos ainda de destacar a
interação entre Filosofia e Etnologia através das palavras de Marcel
Detienne ao se deparar com a declaração confidencial de Marcel Mauss à
Sociedade Francesa de Filosofia, segundo a qual "não nos basta descrever o
mito; seguindo os princípios de Schelling e dos filósofos, queremos saber o que
ele traduz" (MAUSS, 1969: 161):
(...), sendo a questão de
natureza filosófica, é da Filosofia que deve vir a resposta. Schelling já havia
percebido há muito tempo: a filosofia da mitologia é a verdadeira ciência da
mitologia. E a empreitada de [Ernest] Cassirer (em La
philosophie des formes symboliques,
publicada na década de 1920) homenageia as intuições de L'introduction à la
philosophie de la mythologie (1856) [Obra
de Shelling]. (...). Os inúmeros
coletores de mitos são recompensados por seu trabalho e a filosofia neokantiana
põe termos aos tormentos de Mauss: ela se encarrega de enunciar a 'essência
pura' da função mítica (DETIENNE,
1992: 187-188).
04.
Foi impulsionado por esta mesma esperança de se encontrar tal "essência
pura" ou estrutura última dos inumeráveis modos de se sentir, de se pensar
e de se fazer, que o mais famoso antropólogo do século XX, Claude Lévi-Strauss,
ergueu todo o seu trabalho etnográfico e etnológico, o que revigora ainda mais
a atualidade do tema que ora propomo-nos aqui apenas introduzir (3).
2 - Colocação da Questão do Mito
05.
Há uma lei que se impõe a todo conhecimento que se queira obter ou, mais
extensivamente, a toda e qualquer exploração que se almeje fazer: "é preciso proceder do conhecido ao
desconhecido" ou, recodificando, "conhecer é reduzir o desconhecido ao conhecido" (IDE, 1997:
2-5; ALVES, 1993: 45). Imediatamente, nenhum pensador se demora em nos
multiplicar exemplos do nosso próprio cotidiano que nos confirmem esta lei.
Contudo, basta que procuremos percorrer em regresso esta cadeia relacional que
se quer para depararmo-nos com uma questão muito embaraçosa, frontalmente
contraditória ao caráter universal desta mesma lei: caso não queiramos
regressar infinitamente nesta cadeia, deveremos, em tese, finalmente nos deter,
em algum instante, em um conhecimento primeiro, nem nunca outrora desconhecido
e que, portanto, jamais requisesse a antepostagem de um já conhecido, que, do
contrário, reinauguraria aquele interminável regresso que se quer vencer.
Deveríamos, pois, nos deter em algo que nos fosse por si próprio e como que já
impresso em nós mesmos, em algo dado aprioristicamente, em cuja evidência,
portanto, reduziríamos e venceríamos todo o caos com o qual viemos a nos
deparar aposterioristicamente.
06.
O sociologismo durkheimiano sugere-nos que esse parâmetro dado ao indivíduo
seria fruto de sua formação social, recebida por ele desde muito antes do
indivíduo exercer a sua capacidade reflexiva. Entretanto, esta resposta só
encontra satisfação no interior de uma sociedade hermética. Por isto, ao
contrário do estudo sociológico, a investigação etnológica se preocupará com a
comensurabilidade entre as mais distintas sociedades, confiando, como os
primeiros filósofos gregos, na existência de um mesmo arqué, através do qual, para os antropólogos, os grupos humanos se
expressariam de variados modos (4). Somente uma estrutura
original perfiladora do humano seria capaz de assegurar a compreensibilidade
por parte do próprio estudioso - formado numa precisa sociedade - do seu
"objeto" (uma sociedade exótica); somente esta estrutura original
seria capaz de assegurar à antropologia sair do simples
"descritivismo" - que apenas sub-repticiamente convence-nos que pode
oferecer-nos o pleno mostrar-se do próprio "objeto" e somente dele mesmo (5) -; sair do "descritivismo"
sem que se perca a objetivação da investigação. Se não há a mediação dessa
estrutura originante de todas as culturas, somente restaria ao etnólogo
conter-se numa etnografia do sujeito tabula
rasa, embora possa se reconhecer de antemão a impossibilidade dessa postura
abertamente defendida pelos positivistas. Os estruturalistas levistraussianos,
assim, propõe-nos não a absoluta negação da sugestão do sociologismo
durkheimiano, mas lançam, para além dos precisos contornos de uma dada
sociedade, o parâmetro que enseja não apenas estes contornos (da sociedade
complexa européia, por exemplo) e, sim, mais amplamente, de todas as sociedades
existentes, amostras atualizadas dentre os inúmeros possíveis de um universal,
que pode ser entrevisto nas relações de parentesco ou nos muitos mitos
existentes.
07.
Por conseguinte, os antropólogos se vêem - eles mesmos, que se deparam com uma
infinita constelação cultural - preocupados com o universal que lhes
possibilite alinhavar, mediar, ordenar e compreender o que foi colhido
dispersamente. Tão somente assim é possível a tradução das tradições e a
extradição em todas as direções que perfazem o amplo e único tecido humano,
tecido que denominamos fundamentalmente antropológico. Tal exigência da Ciência Antropológica ou "condição
de possibilidade" da atividade reconhecidamente humana e cultural coincide
com a mesma exigência ou "condição de possibilidade" epistemológica
de toda ciência física ou biológica e a sua detecção mais próxima encontra-se
na expressão mitológica, uma vez que o universal que se procura coincide com o
próprio mito. Isto é o que procuraremos entrever.
3 - O Mito como "Conhecimento" Primacial
08.
Do que afirmamos acima, a necessidade de um conhecimento primeiro que não
requeira demonstração, mas que se faz parâmetro a partir do qual todos os
demais conhecimentos poderiam se construir, se demonstrar e se correlacionar,
deve ter-nos parecido uma exigência razoável, mas impossível de se obter.
Porém, em verdade, como também anteriormente já o dissemos, este conhecimento é
um dado, não uma conquista. Por ser distinto dos outros conhecimentos,
diríamos, como Immanuel Kant, que ele estaria muito mais para um pensamento do
que para um conhecimento propriamente dito.
Para muitos, inclusive, ele estaria assentado na própria estrutura
mental humana, como propôs-nos Sigmund Freud. E por não prescindir-se de
demonstração, diríamos que ele se nos vem como crença. Freud tentou elucidar
tal estrutura mental em sua porção a
priori mediante os mitos. E os mitos são fundamentalmente crença. Embora
por um traçado tão breve, o que desejamos ponderar é que aquele
"conhecimento" original e basilar é mítico e que não requer
comprovação como os demais conhecimentos porque é crença, é dado - malgrado o
nosso querer -, é constitutivo de nossa humanidade, é, aliás, o que nos faz
humanos e diferentes dos demais animais, ou seja, seres de cultura.
09.
Logo, não obstante os inúmeros trabalhos antropológicos de campo tenham
contribuído para denunciar o etnocentrismo europeu e norte-americano - atributo
aliás pertencente a todas as sociedades (LÉVI-STRAUSS, 1989 a: 15-16) -, o
princípio universal que sempre assombrou os epistemólogos nunca abandonou a Etnografia, nem mesmo quando esta se
baseou num só caso (6).
O contato com outras sociedades fez com que, paulatinamente, ficasse
insustentável aos próprios europeus se considerarem a cultura per excellence,
a "civilização" modelo para todos os demais povos. Mas esta crise que
abalou irreversivelmente a supremacia das leis, dos hábitos e dos costumes da
Europa ainda persiste na tentativa de comprometer definitivamente a referência
a um universal, que, se não mais se expressa tal e qual numa cultura em
particular, faz-se presente no mais detrás de todas as sociedades, nos
interstícios de cada particularidade social.
10.
Na esfera antropológica, Claude Lévi-Strauss se tornou o maior porta-voz dessa
inquietude. Não se pode conhecer o que está em constante transformação ou
indefinidamente múltiplo (ALVES, 1993: 40-41). Esta
antiga consideração, donde se despontou o nosso discurso racional (7) - sempre tão caro aos
ocidentais -, encontrou hodiernamente a sua primeira exceção no estudo sobre o
homem, proposto pela filosofia existencialista. Irredutível em seu ser no
mundo, cada homem seria, então, dotado da mais completa singularidade, fruto,
por sua vez e em última instância, de sua condição de ente dotado de liberdade.
Na extrema consideração de Jean-Paul Sartre, a única característica comum e
determinantemente irrevogável de todos os homens seria paradoxalmente a sua
condenação a ser livre (SARTRE, 1987: 9-19). Frente a essa corrente de
pensamento, que tão logo se popularizou na Europa, o estruturalismo
antropológico levistraussiano foi acusado de "matar o homem" para
dele poder fazer ciência, negando-lhe assim o que este homem pensa ter como
atributo distintivo: a tarefa de escolher sua essência absolutamente
particular, uma vez que esta não estaria previamente estabelecida por nenhuma
natureza ou estrutura (8). Foi, no entanto, bem
percebido que, se se quiser desenvolver uma teoria geral das culturas, a aposta
de uma estrutura basilar e universal sobre a qual todas elas se assentam é uma
correlata inevitável. E deve-se esperar que, numa sociedade científica
crescentemente laica e materialista como a atual, este fundamento dos
fundamentos venha a ser procurado numa redução dos processos culturais aos
processos psíquicos estruturais, dos processos psíquicos estruturais às funções
de cunho neuro-biológico e destas às combinações físico-químicas, como bem
sugeriu o próprio Claude Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 280; 285 e 292). É
em virtude dessa hipótese que ele delimitará o papel das ciências
exatas e naturais, a saber:
(...)
reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas
condições físico-químicas. (...). O dia em que chegarmos a compreender a vida
como uma função da matéria inerte, será para descobrir nestas propriedades
muito diferentes das que lhe eram atribuídas anteriormente (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 275-276).
12.
De bom grado, como lemos n'O Pensamento
Selvagem, Lévi-Strauss aceitou-se como "materialista transcendental e
esteta", designação originária da crítica de Sartre ao seu pensamento e
não escondeu que, no que tange à epistemologia, ele se sentia cada vez mais
kantiano (URDANOZ, 1985: 293-294). Esta proximidade não poderia ser mais feliz,
visto que a Antropologia Cultural
hoje desenvolve exatamente o que Immanuel Kant propôs à Filosofia, promovendo nesta última, por isto mesmo, uma revolução
de inestimáveis repercussões. O século XVII ficou conhecido como "o século
do método", mas indubitavelmente foi somente nos finais dos oitocentos que
a divisão de águas no campo da Epistemologia
se deu. Até Kant, os filósofos apressavam-se basicamente na delimitação ou
definição do objeto que se pretendia conhecer. Kant, então, deslocará a atenção
filosófica deste objeto (do qual se fala) para o sujeito (que fala),
perguntando pela sua delimitação, ou seja, pelas condições de possibilidade a priori do sujeito cognoscente. Somente
este simples deslocamento já instaura grande parte da revolução kantiana, posto
que subitamente denuncia a existência de limites às capacidades humanas, no que
se refere ao conhecimento. Apesar de hodiernamente esta finitude não nos causar
mais qualquer surpresa, há apenas duzentos anos atrás os próprios filósofos,
racionalistas ou empiristas, encontravam-se imersos num "realismo ingênuo",
calcado num antropocentrismo não menos ingênuo, por acreditar na onipotência do
sujeito cognoscente. Com a necessidade de antes definir ou "dar os
precisos contornos" daquele que fala, nasceu a Antropologia como disciplina filosófica e fincou-se o marco inaugural
do Pensamento Contemporâneo.
13.
Desde então, o mundo em si e por si mesmo estará para sempre perdido, pois o
sujeito, que com aquele se correlaciona, não é uma tabula rasa que a aquele pode-se conformar plenamente, porém é
algo, antes de qualquer experiência, constituído de limitadas capacidades -
ainda que, sob determinados aspectos, bastante amplas -, capacidades pelas
quais o sujeito conforma o mundo ou com as quais ele filtra o mundo. Este
mundo, por conseguinte, não é mais como em si mesmo, mas para um dado sujeito,
em interação com este, ao modo deste, como este. O mundo não é o mesmo para
todas as espécies que o captam, mas pode ser o mesmo para os indivíduos de uma
mesma espécie que o captam. O mundo em si,
como a própria expressão já o diz, não é para
o homem, mas o mundo na sua relação e interação com os indivíduos da espécie
humana ainda pode assegurar-se uma certa objetividade, se estes mesmos
indivíduos suspenderem as suas particularidades emocionais e as suas
experiências vividas outrora singularmente. Não é mais uma objetividade que se
apoia no pólo "objeto" da tradicional relação da Teoria do Conhecimento (S-O), mas na interpenetração de ambos os
pólos.
14.
O "Eu transcendental de Kant", que se identifica com cada eu
particular em sua estrutura a priori,
sobreviveu bem ao cenário europeu. E não obstante tenha recebido incontáveis
críticas no âmbito filosófico, foram exatamente os trabalhos etnográficos,
mormente de outras sociedades e culturas, que lhe impuseram os seus maiores
desafios e quase o golpearam fatalmente mediante os diferentes modos de se
pensar e conhecer, relatadas pelas expedições antropológicas.
15.
Mas a reação não demorou fazer-se sentir. Com a descrição de modos de cultura
tão diversos, a própria Antropologia
Cultural ressentiu-se da importância da existência de um aparato comum e
substantivo a todos estes materiais coletados e que os fizessem inteligíveis
entre si. Foi por este prisma que recuperamos até aqui um itinerário
antropológico que tende a ficar à sombra de um "relativismo cultural"
mais vulgar ou vulgarizado, isto é, mais apaixonadamente difundido pelos
próprios acadêmicos, que não percebem nisto um irracionalismo que compromete
principalmente o exercício a que são chamados.
16.
É contra esta tendência que Claude Lévi-Strauss mais atualizou esforços. A
princípio não fala como Kant de uma estrutura de pensamento, mas encanta-se com
a estrutura linguística, sobremaneira a par dos trabalhos de Ferdinand de
Saussure, fazendo uma transposição do método fonológico à Etnologia. Coincidentemente, a Filosofia
Contemporânea, de uma maneira especial na sua vertente
"analítica", passou a considerar o próprio pensamento como linguagem,
o que poderia em alguma medida justificar um inevitável encontro ulterior de
Lévi-Strauss com Kant e a sua grande afinidade para com a obra deste.
17.
Na busca de invariáveis universais, a Antropologia
Cultural encontra-se, portanto, com a Filosofia.
E pela sua tenra idade, também não escapa de demoradas preocupações
metacientíficas. E, de fato, a sua contribuição para a reavaliação e
redefinição de método(s) no seio das Ciências
Humanas e das próprias Ciências
em geral não podem ser economizadas em sua grandeza. A prática atualmente tão
banal da interdisciplinaridade, por exemplo, é conseqüência do vitorioso
caminho já trilhado pela Etnologia
desde um tempo em que o sectarismo positivista entre as Ciências consolidadas ainda era hegemonicamente recomendado. Foi
nesse seu percurso que inevitavelmente a Antropologia
Cultural se deparou com uma questão de primeira ordem no campo
epistemológico: ao do fundamento primeiro e último das Ciências, dela mesma especialmente, questão que ela estenderá ao
seu próprio objeto de investigação, que, enfim, abarcaria estas mesmas Ciências como subfenônomenos seus: a(s)
cultura(s).
18.
Os resultados advindos do tratamento dessa problemática são múltiplos, mas
todos superam a linearidade e simplicidade da resposta neopositivista. A
evidência por detrás de todo aparato epistemológico e cultural, desde onde
começa, termina e se mantém inclusive a mais rigorosa demonstração científica
ou sistema social - relembremos os procedimentos do método fonológico,
destacadamente o segundo e o terceiro, que capacita as Ciências Sociais a formular as relações necessárias latentes em seu
objeto (10) - indica-nos uma
estrutura inconsciente, visto que o mais evidente é, contraditoriamente, o
menos vidente. Logo as suas manifestações mais basilares têm estatuto de
crença, como o mito ou a religião. Não se pretende diante disso avaliar tais
fenômenos humanos como pejorativamente inferiores às manifestações de traços
denominados técnico-científicos. Afinal tudo emerge de uma mesma matriz.
Contudo, aqueles fenômenos são diacrônica, lógica e ontologicamente inferiores,
ou melhor, anteriores (no sentido de primaciais e, conseqüentemente,
fundamentais à ciência). Também em outros campos do saber, muitos estudiosos
entreveram isto. Na famosa carta, de 1932, que o pai da Psicanálise escreve a Albert Einstein, Freud interpela ao grande
físico: "Não será verdade que cada
Ciência, no fim, reduz-se a um tipo de mitologia?" E muito mais
próximo da Antropologia Cultural, o
positivista d'As Regras do Método
Sociológico, Émile Durkheim, conclui em sua última obra: "(...) até as noções essenciais da lógica
científica são de origem religiosa" (DURKHEIM, 1989: 507). E noutra
parte: "A Ciência é fragmentária,
incompleta; avança muito lentamente e jamais está concluída; mas a vida não
pode esperar" (DURKHEIM, 1989: 509). Portanto, o cabedal
mítico-religioso é um todo compacto e totalizante, primeiro estamento humano
que se acha colado à estrutura íntima das coisas, confundindo-se mesmo com
esta; dá unidade, organização e sentido à vida humana, antes que a Ciência se gere, posteriormente, em sua
dissecação.
19.
Tais considerações ressaltam, então, a importância da participação primacial do
mito na formação do mundo humano,
seja natural seja cultural, e, particularmente, por inclusão, na formação da Ciência, como instituição igualmente
humana, ou de qualquer outra instância
gnoseológica. Ocupando também aí um lugar central, o mito deve receber de todas estas uma atenção que a
"assepsia" positivista simplesmente lhe negou por acreditar que, se
assim o fizesse, estaria comprometendo a plena objetividade do conhecimento
científico, objetividade esta completamente ilusória, se estamos convencidos de
que o saber humano, exatamente porque humano, jamais poderá verdadeiramente
prescindir-se do sujeito como um dos pólos intrínsecos a todo constructo
epistemológico que efetivamente se possa ensejar.
Referências
ALVES,
Rubem. Filosofia da ciência. 17. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1993.
DETIENNE,
Marcel. A invenção da mitologia. Rio
de Janeiro: José Olympio / Brasília: UnB, 1992.
DURKHEIM,
Émile. As formas elementares da vida
religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
IDE,
Pascal. A arte de pensar. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
LÉVI-STRAUSS,
Claude. Antropologia estrutural. 4.
ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d.
____________.
Raça e história. In: Antropologia
cultural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 (a).
____________.
O pensamento selvagem. Campinas:
Papirus, 1989 (b).
MAUSS,
Marcel. Œuvres. Paris, 1969, v. 2.
MELLO, Luiz Gonzaga. Antropologia
cultural. 6. ed. Petrópolis: Vozes,
1995.
REDFIELD, Robert. Introdução. In: MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa:
Edições 70, 1988.
SARTRE,
Jean-Paul. O existencialismo é um
humanismo. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
URDANOZ,
Teofilo. Historia de la filosofia. Madrid: Catolica, 1985, v. 8.
(1) A Metaciência foi o único espaço que os
próprios neo-empiristas ou neopositivistas (guardiães da ciência moderna
clássica) ainda reservaram à Filosofia.
Esta não passaria, portanto, de uma discurso analítico sobre o discurso
científico, diverso dos discursos religioso e "metafísico" ou da
expressões mítica e artística. A Filosofia
resumiu-se, então, numa simples filosofia da linguagem. A Ciência seria uma linguagem que permitiria ao homem um discurso
objetivo, isto é, fidedigno, acerca da realidade. E se é por ela que a Ciência se faz, dela a ciência não
poderia tratar sem cair numa petição de princípio. Tal tarefa foi,
conseqüentemente, delegada à Filosofia,
da qual, antes, os mesmos positivistas haviam usurpado qualquer validade
enquanto discurso sobre o mundo. O pensador Ludwig Wittgenstein é
indubitavelmente a melhor ilustração que temos nesse sentido. Sua obra Tratado Lógico-Filosófico foi
considerada pelos mais importantes neo-empiristas da sua época como a
"gramática da Ciência".
Qualquer elucubração que não respeitasse estas normas gramaticais estaria para
o além-fronteira científico, denominado pelo próprio Wittgenstein como a
instância do "místico".
(2) A Filosofia no seu sentido mais amplo e
remoto é entendida como a busca do sentido último, universal e necessário, de
tudo o que é. A Etnologia, por sua
vez e ao contrário, é entendida como um estudo das culturas pelo que cada qual
apresenta como distintivo na constituição do modus vivendi das sociedades.
(3) Este artigo
foi publicado na Rhema – Revista de
Filosofia e Teologia.
(4) Há aqui
uma clara alusão a Aristóteles, para quem, depois de ter passado em revista
todos os grandes pensadores gregos até o seu tempo, "o ser [o que é] se
diz de vários modos, mas nenhum modo diz o ser [em todas as suas
possibilidades]". Isto refere-se a tudo o que é, a tudo o que existe. Era,
todavia, inimaginável a Aristóteles e a algum outro coetâneo ou contemporâneo
seu a aplicação desse ditado ao pluralismo cultural. A tentativa, porém, de
muitos estudiosos das sociedades em comparar as suas conclusões de campo com
elaborações alheias, feitas em tempos, espaços e culturas diferentes, contribui
para a seriedade da suspeita de que tacitamente todos eles tendiam a acreditar
na existência de um parâmetro comum para a diversidade de seu objeto, uma
unidade estrutural opaca por detrás de toda multiplicidade cultural.
(5) De fato,
a corrente antropológica difusionista, principalmente pelo seu viés
norte-americano, inaugurado por Franz Boas, procurou dar ênfase à simples
coleta de dados, criticando a hegemonia evolucionista desde o nascimento da
antropologia na modernidade e propondo a suplantação da etnologia pela
etnografia: "Os difusionistas passaram a ver na explicação evolucionista
da cultura uma forte marca de apriorismo, muita especulação e pouca ciência.
(...). Alguns chegaram a dizer que havia urgência em coletar dados e
informações sobre os povos primitivos antes que os mesmos desaparecessem ou
fossem atingidos pela civilização. Boa parte dos antropólogos entenderam que,
ao menos por enquanto, o mais importante era coletar os dados e não explicar o
fenômeno cultural. Este último poderia esperar algum tempo. No momento, o
importante era coletar o máximo de informações que propiciassem, mais tarde, elementos
suficientes que permitissem as elaborações teóricas" (MELLO, 1995:
223-224). Logo, visto em si mesmo, o difusionismo foi mal interpretado e
amplamente divulgado como defensor de um "relativismo cultural" (como
exemplo, recorramos ao verbete Antropologia
Cultural que compõe a edição atual da Larousse
Cultural, volume II, página 350), o que repentinamente se dissipa se
ousarmos elucidá-lo numa esfera mais ampla, em relação às vertentes
antropológicas que o antecederam e sobrevieram. De qualquer modo, pela tarefa
primacial que o difusionismo se colocou, a simples coleta de dados, qualquer
tentativa de teorização seria-lhe impossível. Em verdade, porém, os
difusionistas norte-americanos "não desprezavam a possibilidade de um
estudo universal da cultura, nem o método comparativo. Negavam, e com
veemência, fosse possível pô-lo em prática no estágio em que se encontrava a
antropologia. Achavam que, antes de se partir para tal realização, mister seria
realizarem-se numerosos estudos de pequenas comunidades; destarte seria
possível, futuramente, proceder-se a um estudo mais vasto" (MELLO, 1995:
231).
(6) Neste
sentido, podemos recorrer à clássica introdução que Robert Redfield, professor
da Universidade de Chicago, fez às obras de Bronislaw Malinowski ("Magia,
Ciência e Religião", "O Mito na Psicologia Primitiva" e
"Baloma; os Espíritos dos Mortos nas Ilhas Trobriand"): "A
crítica tantas vezes feita a Malinowski, de que generalizou a partir de um só
caso, perde grande parte de sua força a partir do momento em que se pode
admitir o pressuposto de que existem uma natureza humana e um padrão universal
de cultura. Nunca nenhum outro autor melhor o justificou. Podemos ficar a saber
muito de todas as sociedades a partir de uma única, de todos os homens a partir
de alguns, se o invulgar conhecimento for combinado com o estudo paciente e
prolongado do que outros autores escreveram a respeito de outras
sociedades" (REDFIELD, 1988: 12). Mais contemporaneamente, escreve
Lévi-Strauss: "O valor eminente da Etnologia é o de corresponder à
primeira etapa de um processo que comporta outras: para além da diversidade
empírica das sociedades humanas, a atividade etnográfica pretende atingir
invariantes (...)" (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 275).
(7) Seria
interessante aqui rememorarmos o parentesco que o "ato de racionalizar as coisas" teria, em
sua franja etimológica, com o "ato de racionar
as coisas". Racionalizar é justamente isto: reduzir toda uma
multiplicidade em um, do qual todos seriam, em primeira ou em última fronteira,
originários.
(8) "O
conhecimento dos homens às vezes parece mais fácil para aqueles que se deixam
prender na armadilha da identidade pessoal. Mas assim eles fecham para si a
porta do conhecimento do homem: (...). De fato, Sartre torna-se cativo de seu Cogito" (LÉVI-STRAUSS, 1989 b:
277).
(9) O que
para Immanel Kant tratava-se de uma Antropologia
Empírica será denominado por Claude Lévi-Strauss de Etnografia; o que para o primeiro constituía uma Antropologia Transcendental será chamado
pelo segundo de Etnologia, de um modo
geral, e de Antropologia Estrutural,
de um modo particular.
(10) Escreve-nos Lévi-Strauss: “A fonologia não pode deixar de desempenhar, perante
as ciências sociais, o mesmo papel renovador que a física nuclear, por exemplo,
desempenhou no conjunto das ciências exatas. Em que consiste esta revolução,
quando tratamos de encará-la em suas implicações mais gerais? É o ilustre
mestre da fonologia, N. Trubetzkoy, quem nos fornecerá a resposta a esta
questão. Num artigo programa, ele reduz, em suma, o método fonológico a quatro
procedimentos fundamentais: [1] em primeiro lugar, a fonologia passa dos
fenômenos lingüísticos conscientes ao estudo de sua
infraestrutura inconsciente; [2] ela
se recusa a tratar os termos como
entidades independentes, tomando, ao contrário, como base de sua análise as relações entre os termos; [3] introduz a
noção de sistema – ‘A fonologia atual
não se limita a declarar que os fonemas são sempre membros de um sistema, ela mostra sistemas fonológicos concretos e
torna patente sua estrutura’ –; [4] enfim, visa à descoberta de leis gerais, quer encontradas por
indução, ‘quer (...) deduzidas logicamente, o que lhes dá um caráter absoluto’”
(LÉVI-STRAUSS, s/d: 47-48).
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