Rodrigo Rodrigues Alvim
01.
É importante observar a dinâmica que pretende pensar o mundo ao modo dos
filósofos, ao modo do que, então, se define pela inteligibilidade da dita
realidade, a sua razão.
02. Trata-se de algo que não se encontra propriamente em conteúdos, mas
na forma do proposto, de tal maneira que se equivoca nesse sentido quem se prende
à simplicidade da diferença entre, por exemplo, a proposta de Tales e a de
Anaximandro quanto à origem ou governo das coisas, na umidade (água) ou num
indeterminado (ápeiron: ἄπειρον), respectivamente, quando aí é decisivo observar que se assemelham
quanto à proposta de se referir ao princípio do mundo no próprio mundo, contra
a tendência mítico-religiosa predominante de anunciá-lo para além das nossas
condições, ou seja, de anunciá-lo como de origem divina, na vontade dos deuses
que sequer se entendem entre si, conforme reclame de Xenófanes de Colofão.
03. Ainda formalmente, Tales e Anaximandro assemelham-se também na proposta de que todas as coisas estejam interligadas e são intercambiáveis por serem compostos por esse mesmo elemento “arqueológico” [elemento, ou seja, algo simples, não-composto, pois, se composto, importaria, antes, no que o compõe, este, sim, agora, rigorosamente simples e “a-tômico” (não divisível)]. As coisas deixariam de ser, assim, de governo distinto entre os seus diferentes deuses, cada qual responsável por um aspecto do mundo, aspecto isolado dos demais. A proposta filosófica faz o mundo formalmente ao alcance da compreensão humana, pois tem sua origem e governo no próprio mundo que habita. Por sua capacidade racional específica, pode o homem abarcar as coisas do mundo nas relações entre si, pelas quais elas se definem. Não há, pois, significativa diferença entre Tales e Anaximandro naquilo que os fez do mesmo modo filósofos. Então, podemos dizer que a indeterminação enquanto princípio que tudo determina e que, portanto, sendo primeiro, não-pode-ser-determinado, como claramente afirmou Anaximandro, já estava presente no "úmido" de Tales, na sua "água" que queria ser isso mesmo: aquilo que tudo determina e que, por conseguinte, não pode ser determinado.
04. Vê-se, então, que, desde os primeiros filósofos do Ocidente, é a forma do pensamento que importa, ainda que associado à sua matéria, porque a sua matéria mesma quer dizer que a origem do mundo está no próprio mundo e o faz inteligível por si só. Nesses termos, apesar do conteúdo de uma experiência do mundo, a novidade a que se chamou filosofia está nas "abstrações" de um encadeamento racional, pois um indeterminado não se predica dos dados sensíveis que se nos mostram, nem das representações e imagens oferecidas nas narrativas míticas e religiosas.
03. Ainda formalmente, Tales e Anaximandro assemelham-se também na proposta de que todas as coisas estejam interligadas e são intercambiáveis por serem compostos por esse mesmo elemento “arqueológico” [elemento, ou seja, algo simples, não-composto, pois, se composto, importaria, antes, no que o compõe, este, sim, agora, rigorosamente simples e “a-tômico” (não divisível)]. As coisas deixariam de ser, assim, de governo distinto entre os seus diferentes deuses, cada qual responsável por um aspecto do mundo, aspecto isolado dos demais. A proposta filosófica faz o mundo formalmente ao alcance da compreensão humana, pois tem sua origem e governo no próprio mundo que habita. Por sua capacidade racional específica, pode o homem abarcar as coisas do mundo nas relações entre si, pelas quais elas se definem. Não há, pois, significativa diferença entre Tales e Anaximandro naquilo que os fez do mesmo modo filósofos. Então, podemos dizer que a indeterminação enquanto princípio que tudo determina e que, portanto, sendo primeiro, não-pode-ser-determinado, como claramente afirmou Anaximandro, já estava presente no "úmido" de Tales, na sua "água" que queria ser isso mesmo: aquilo que tudo determina e que, por conseguinte, não pode ser determinado.
04. Vê-se, então, que, desde os primeiros filósofos do Ocidente, é a forma do pensamento que importa, ainda que associado à sua matéria, porque a sua matéria mesma quer dizer que a origem do mundo está no próprio mundo e o faz inteligível por si só. Nesses termos, apesar do conteúdo de uma experiência do mundo, a novidade a que se chamou filosofia está nas "abstrações" de um encadeamento racional, pois um indeterminado não se predica dos dados sensíveis que se nos mostram, nem das representações e imagens oferecidas nas narrativas míticas e religiosas.
05. Voltemos,
assim, para o foco do primeiro parágrafo, para a dinâmica que pretende pensar o
mundo ao modo dos filósofos, ao modo do que se define pela intelegibilidade da
dita realidade, a sua razão.
06. Paradigmaticamente,
essa dinâmica se revela nas considerações de Heráclito de Éfeso e de Parmênides
de Eleia, excludentes entre si para muitos comentadores, nem tanto assim para
alguns poucos. Apresentaremo-las aqui de maneira dramática, ou seja, opondo-as
radicalmente, como caricaturas que ressaltam alguns traços, aparentemente
deformando, para nos aproximar do que lhes é próprio.
07. Parmênides
se detém na mais radical das oposições: “o-que-é
é; o-que-não-é não é”. Se além de o-que-é absolutamente não pode ser, então
o-que-é jamais deixou de ser, pois se o tivesse deixado de ser, já não seria,
pois do não-ser não pode vir a ser. Heráclito, por sua vez, parece já se deter
nas relações admitidas como que na interioridade de o-que-é, em duas teses ou
afirmações excludentes que, assim se contradizendo, são negações
também, negações uma da outra. Heráclito vê nisso uma correspondência com os
opostos que se manifestam no mundo, num mundo ora quente ora frio, por exemplo.
Daí pensa que a contradição é a mola e essência da realidade, sempre nessa
tensão que se resolve num outro que, como nova tese, é nova oposição a uma
outra tese e, assim, nova tensão a se resolver, em movimento perpétuo.
Heráclito se encanta com essas oposições, pois os opostos ao mesmo tempo se confirmam
mutuamente: o maior, por exemplo, é a negação do menor e o menor, a negação do
maior; no entanto, o maior só se afirma em face do menor e vice-versa, ou seja,
um afirma o outro, um existe pelo outro, apesar de se negarem e se excluirem ao
mesmo tempo. Por força da transitoriedade das coisas no mundo, parece a
Heráclito que tais coisas são assim mesmo, por entre essas oposições
(dialéticas).
08. Parmênides
avalia que esse caminho trilhado por Heráclito é ilusório, pois não nos permite
decidir com segurança. É o caminho dos sentidos, afeito apenas a opiniões.
Mesmo entre os não eruditos, assim se dá: quando, senso comum, não estamos
certos do que nos ocorre em pensamento, dizemos, quando o emitimos, se tratar
de uma "opinião" (do grego doxa),
sendo, pois, aceitáveis outras opiniões distintas da nossa, do mesmo modo que
nos é facultado mudar de opinião a qualquer tempo. Ademais, quando alguém
emite o que classifica como sua opinião, sentimo-nos confortáveis em proferir
diferentemente. Por consequência, no caminho dos sentidos e das opiniões tem-se
o múltiplo e mutável, sem qualquer certeza. Parmênides, entretanto, aponta para
um caminho não ambíguo para se trilhar rumo ao conhecimento do verdadeiro, com
segurança. Aliás, "conhecimento do verdadeiro" é, em Parmênides, uma
repetição e, como tal, desnecessária: "conhecimento" (do grego épisthéme) é, inevitavelmente, apreensão
do verdadeiro e "verdadeiro" é aquilo que, não podendo ser pensado de
outro modo, só pode ser assim mesmo. Também aqui, essa compreensão se revela
entre os menos eruditos, pois quando, senso comum, estamos diante de duas
pessoas que afirmam conhecer sobre determinado assunto, ficamos na expectativa
de que ambos manifestem o mesmo sobre tal assunto, se é que realmente ambos o
conheçam. Este parece ser o caminho da razão (no grego: λόγος), da lógica: o
evidente é o que só pode ser visto (do latim, vides) do mesmo modo, sem
confusão com aquilo que ele não é, claro e distintamente. Logo, no caminho da
razão e do conhecimento tem-se o universal e imutável.
- Princípio de identidade (também chamado de Princípio de não-identidade) : X
é (idêntico a) X:
X=X, uma tautologia, é obviamente verdadeiro, sendo, pois, a sua
negação, falsa.
- Princípio do terceiro excluído: ou X é ou não é:
ou X=Y ou X ≠ Y possuem valores de verdade (ou verdadeiro ou falso) necessariamente opostos.
- Princípio de contradição (também chamado de Princípio de não-contradição): Ao
mesmo tempo, X não pode ser e não ser Y, mas X pode ser e não ser em relações
diferentes; em tempos diferentes, X pode ser e pode não ser, ainda que em mesma
relação:
Ao mesmo tempo, X=Y e X≠Z (relações diferentes).
Em tempos diferentes, embora em mesma relação, (“antes”) X=Y e (“agora”)
X ≠ Y.
10. Em Heráclito, as oposições são ambivalentes, conforme dissemos
antes: os opostos, ao mesmo tempo em que se excluem, se afirmam, de tal modo
que não seria possível a um dos extremos excluir o outro sem excluir a si
mesmo. A solução, explicitada na transição da modernidade para a
contemporaneidade por G. W. Friedrich Hegel, foi a negação do princípio do terceiro excluído da lógica
de Parmênides, pela consideração de um terceiro a que chamou de “síntese”,
conforme o esquema abaixo:
TESE X
TESE
↓
TESE
↓
TESE
X nesse esquema significa uma oposição, uma oposição entre teses radicalmente
extremas. Assim, se tomamos por referência a tese da direita, a da esquerda é a
contra-tese, a anti-tese; do mesmo modo, se tomamos a tese da esquerda como
referência, é a da esquerda que é a antítese.
O vetor ↓ significa a condução da oposição das duas primeiras teses a
uma terceira tese, que é como que uma união por suprassunção (um superar
conservando) das teses anteriormente em tensão. Só que, sendo uma nova tese, ela também
só se afirma pela sua tese oposta, inaugurando uma nova tensão, que é
suprassumida numa nova síntese. Temos assim um esquema infinitamente mais amplo
e de movimento perpétuo em todas as direções:
(...)
↓
TESE X
ANTÍTESE
↓
↓
SÍNTESE
(Nova) TESE X
ANTÍTESE
↓
(...)
↓
(...)
11. Como se vê, tal movimento (vir-a-ser ou
devir) não tem origem e nem fim, sendo o mundo eterno. Também não é um movimento arbitrário ou mágico, mas expressa uma ordem, uma inteligibilidade, uma razão, segundo lemos no seguinte fragmento de Heráclito: "Este mundo, igual para todos, nenhum dos
deuses e nenhum dos homens o fez; sempre foi e será um fogo eternamente vivo,
acendendo-se e apagando-se conforme a medida." (Fragmento, 30).
12. Mais uma vez aqui, embora de modo não
predominante, há como se vê alguma proximidade com o que Parmênides defenderá
mais tarde, pois se pode dizer que o mundo para Heráclito é único e mesmo,
comportando assim todo existente. Por isso, além dele, não é. Contudo, o todo,
único e mesmo que é, Parmênides considera-o finito e imutável, enquanto, para
Heráclito, trata-se de um movimento infinito pela mola da contradição que se
harmoniza: Eles não compreendem como,
separando-se, podem harmonizar-se: harmonia de forças contrárias, como o arco e
a lira. (Fragmento, 51).