Rodrigo Rodrigues Alvim
01. Teríamos muito que escrever, a fim de compreender o trânsito da
filosofia kantiana para o pensamento elaborado por Georg Wilhelm Friedrich
Hegel. No entanto, o desafio é, aqui, ao mesmo tempo, ser breve, algo comumente
difícil aos filósofos. Mas é, por isso mesmo, um desafio, do qual não
esquivaremos, adiantando as nossas desculpas a quem pretende algo mais
pormenorizado.
02. Hegel faz parte de um movimento de pensamento europeu que foi
denominado “Idealismo Alemão”, que adveio de um entusiasmo de leitura das obras
de Immanuel Kant, já considerado um “divisor de águas” dentro da filosofia
ocidental. Ocorreram desdobramentos e posicionamentos filosóficos marcantes
nesse período, dentre os quais nos cabe destacar os pensamentos de Johann
Gottlieb Fichte e Friedrich Schelling, com os quais Hegel estabeleceu diálogos
imprescindíveis para uma mais aprofundada compreensão de sua filosofia.Contudo, nos estreitos limites que antes colocamos, começaremos destacando o
que o próprio Kant tinha consciência ser uma revolução: se a tradição
filosófica se dedicou à tarefa de tentar dizer racionalmente as coisas, a razão
deveria, antes, ter se dedicado à tarefa de dizer-se a si mesma, em sua
condição “pura” ou “transcendental”, ou seja, sem qualquer coisa que lhe seja
estranha ou distinta, tal como qualquer experiência das coisas que dizemos
equivalerem ao mundo. A razão como que se pergunta em seu próprio nascedouro: o
que sou , este que pergunta sobre o que é tudo mais? É tal intento que dará
nome à sua primeira “crítica”, que é a Crítica
da Razão Pura. Noutros termos, o eixo epistemológico deixa de ser a coisa
sobre a qual a razão translada, mas a razão que aí mesmo se coloca. Não é mais,
portanto, a coisa que se quer conhecer que se impõe a uma razão tabula rasa, mas é a coisa que se
conforma às determinações constitutivas da razão a priori. Nesse sentido, Kant exemplifica:
Quando Galileu deixou as suas
esferas rolar sobre o plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, ou
quando Torricelli deixou o ar carregar um peso de antemão pensado como igual o
de urna coluna de água conhecida por ele [...]: assim acendeu-se uma luz para todos os pesquisadores da natureza.
Compreenderam que a razão só discerne o que ela mesma produz segundo seu
projeto[...].
03. Na relação epistemológica entre o sujeito S (razão), que quer conhecer
a coisa C, e a coisa C, que o sujeito S (razão) pretende conhecer, o conhecimento
deixa de ser compreendido ao modo aristotélico, como uma “adequação do
intelecto (razão,) sujeito S, à coisa C”, para ser compreendido como “uma
adequação da coisa C às predeterminações inatas do intelecto, sujeito S”, isto
é, às condições constitutivas a priori
da razão, o que resulta não no que a coisa C seja em si mesma (noumenon), mas no que a coisa C é para
nós (fe-noumenon, fenômeno ou
objeto), no modo como ela, a coisa C, nos parece ou aparece. Conhecer o mundo
implica a experiência (algo em que os empiristas insistiam), mas tal
conhecimento ocorre sempre em nível de representação da razão (algo em que os
racionalistas insistiam). Assim, de certa forma, Kant promoveu uma conciliação
entre razão e experiência, como propugnavam os pensadores iluministas, o que o
levou a escrever que “todo conhecimento
começa com a experiência, mas nem todo ele advém da experiência.”
04. Nesse pano de fundo, evidencia-se que o que se denomina “mundo” é
necessariamente “mundo humano”. Essa ênfase incidirá na centralidade da
“antropologia transcendental” relativamente a qualquer outro campo de interesse
filosófico, inclusive relativamente ao próprio campo epistemológico que a
gerou, o que ficará ainda mais claro na Crítica
da Razão Prática e também na Crítica
do Juízo.
05. Essa autonomia da razão ou da consciência encontrou terreno fértil no
contexto da Europa que abrigou os ideais da Revolução Francesa e vivia as suas
consequências nos seus demais Estados Nacionais ou principados, quando o tema
da liberdade e da igualdade eram temas inevitáveis, também nos círculos
filosóficos.
06. Os meandros são complexos, mas Hegel considerava que a razão humana não
poderia ser fundamento de sua própria crítica, de tal sorte que, em sua obra, a
razão se deslocou do campo antropológico para o campo da ontologia: a Razão
Universal, a Unidade da Consciência, o Espírito Absoluto são termos afins que compreendiam
a própria razão humana, ultrapassando-a infinitamente, entretanto. Ademais,
Hegel afirma-a como atividade e processo, como melhor explicitaremos.
07. Salientar que Hegel participou da transição do classicismo ao
romantismo talvez facilite a nossa exposição. Uma das grandes características
do primeiro período era a ênfase na razão, enquanto o segundo estimava a arte.
A distinção que ora nos interessa se encontra no continuum de uma cadeia de raciocínio, de um ir a outro sempre pela
mediação de um terceiro, de um processo que contrasta ao sem mediação, ao
imediato da inspiração artística, da intuição do artista. Sendo assim, o
absoluto caracteriza a manifestação desse segundo, dando-se assim mesmo como é:
na sua inteireza, no seu todo, de uma só vez. Esta última compreensão não será
a de Hegel, segundo o qual o absoluto é pensamento, é razão, é consciência que
se dá a si mesma (autoconsciência) não de uma só vez, mas paulatinamente, em
processo, sendo tal desdobramento o que tomamos como tempo e história: os
acontecimentos históricos são um filão do mesmo, de uma identidade por
princípio e por fim, pensamento de si próprio, pensamento de pensamento, como
que uma ex-plicação do Uno, da
Unidade, do Absoluto, se lembrarmo-nos que ex-plicare
é um verbo latino derivado de plicare,
que significa dobrar (dobrar para fora, desdobrar). Sendo assim, a Verdade se
revela, para Hegel, como história, numa multiplicidade que se refere ao mesmo e
assim tem suas partes interligadas necessariamente, mundo no qual nada é
inexplicável como um insight, uma
intuição, uma inspiração que não se pode rigorosamente pensar, porque se revela
sem antes e sem depois. Arrisca-se, então, que a razão ou unidade não é obra do
pensar humano, mas, antes, obra da Totalidade que se revela ao pensar e, se não
há outro, ao pensar a si próprio, em cadeia, o que somente depois e, por isso
mesmo, permite que a pensemos mediante os acontecimentos que são os seus
desdobramentos, que, portanto, se mostra a si mesmo e que se nos mostram como o
que tomamos por realidade, vida, existência, universo, mundo.
08. Posto assim, observa-se que a dificuldade que, em geral, o pensamento
filosófico tinha com a história e com o mundo, entendidos como multiplicidade
inconstante, e que, dessa forma, não favoreciam, a partir de si próprios, a
construção de um conhecimento seguro do real, é superada por Hegel, que, por
sua vez, considera o real como processo histórico ou, como dissemos
anteriormente, como revelação, manifestação ou fenomenologia do verdadeiro, do
Espírito Absoluto. Ora, uma das dificuldades da tradição filosófica em assim aceitar
é que tal multiplicidade é muitas vezes contraditória ou excludente, o que,
pela perspectiva de uma lógica binária (segundo a qual o-que-é é e o-que-não-é
não é)incide em confusão e absurdo. Logo, é imprescindível já introduzir a
lógica outra pela qual Hegel comporta a contradição, que é a dialética.
Conforme essa lógica e muito ao contrário da lógica binária, a contradição não
incide em erro ou no irreal, mas é ela o cerne da vida ou o que garante a
dinâmica do mundo e do verdadeiro. Melhor dizendo, Hegel recupera uma concepção
praticamente esquecida da Antiguidade Clássica Grega e sustentada por Heráclito
de Éfeso, segundo a qual algo se revela concomitantemente ao seu oposto, ou
seja, sempre quando algo se afirma, sua afirmação (e satisfatória compreensão)
só é possível pela igual afirmação do seu contrário, que, por sua turno e não
menos, é-lhe a sua negação. Há nisso uma tensão que se resolve não na exclusão
de um extremo ou outro (pois um tem o seu ser no outro), porém pela instauração
de um terceiro, que supera aquela contradição, mas também a conserva, visto que
ele mesmo é resultado e só pode ser compreendido por aquela contradição
anterior e pela contradição que agora ele também estabelece com o seu contrário
(lembrando que “quando algo se afirma, sua afirmação só é possível pela igual
afirmação do seu contrário”), incidindo em nova contradição, que se desdobra em
nova síntese, que é nova tese que se coloca em mesmo tempo que o seu contrário,
e assim sucessivamente, revelando-se processo infinito, que perpassa todas as
coisas, que é o Absoluto. E é dessa a maneira que esse todo se manifesta pouco
a pouco como história, acontecimentos, mundo.
09. O Absoluto é pensamento, sendo que a atividade de pensamento se exerce
sobre algo. Como no caso do Absoluto não há outro no qual se poderia exercer,
esse pensamento se exerce sobre si mesmo, sendo pensamento de pensamento. O
pensamento “em-si” se torna “para-si” mesmo: sai como que de si para dar-se a
si mesmo, num processo infinito de reflexão. Noutros termos, o Absoluto sujeito
se desdobra para “fora-de-si” na condição de Absoluto objeto, mundo, história.
E à medida que tal Absoluto vai pensando a si mesmo, destina-se à síntese
do Sujeito e Objeto, que Hegel chama de Concreto. Ocorre que todo esse
alinhavar de momentos antitéticos e sintéticos também são cada qual desdobra
mento antitético e sintético. Em Hegel, pois, a dialética não é propriamente um
método, mas, sim, a natureza das próprias coisas e que, por isso mesmo, para
que possam ser bem pensadas por nós, só poderão ser bem pensadas
dialeticamente.
10. A partir daí, nenhum momento tem sentido em si mesmo, mas somente
dentro do todo do qual faz parte, que é o Absoluto. Por isso, inevitavelmente,
a filosofia hegeliana propõe-nos um sistema. Cada um só pode ser bem
compreendido dentro do contexto do qual faz parte, que, por seu turno, faz
parte de um contexto maior e, assim, sucessiva e ininterruptamente . O aqui e
agora é um momento necessário do Espírito Absoluto: é como se tudo o que
aconteceu assim aconteceu para que o aqui e agora seja; no entanto, também o
aqui e agora deixará de ser, a fim de que tudo seja. Cada momento é, enfim,
necessário e contingente, pois nada antes ou depois seria se este momento que
somos não fosse, porquanto tudo é parte constitutiva do mesmo Espírito.
Contraditório? À filosofia hegeliana, isso não é ofensa, porém é a mola dos
acontecimentos: dialética!
11. Didaticamente, diz-se que a semente se realiza e se afirma num broto,
embora um broto seja exatamente a negação da semente, que assim deixou de ser.
Não dá para negar que a semente permanece no broto, pois, não fosse, não se
teria igualmente broto. Mas deixou de ser, a fim de que o broto fosse. Assim a
semente é necessária e contingente. Da mesma maneira, o broto se realiza e se
afirma num arbusto, embora um arbusto seja exatamente a negação do broto, que
assim deixou de ser. Não dá para negar que o broto permanece no arbusto, pois,
não fosse, não se teria igualmente arbusto. Mas deixou de ser, a fim de que o
arbusto fosse. Assim também o broto é necessário e contingente. A dialética é a
dinâmica de tudo.
12. Bem,
fiz o compromisso de não me delongar no tratamento precisamente do que é uma
delonga sem fim. De qualquer forma, espero que este texto possa ser útil
àqueles que gostariam de uma primeira palavra sobre o pensamento hegeliano. Por fim, remeto-lhes ao vídeo seguinte, a fim de que possam confirmar, por outra breve exposição, o que aqui foi tratado.