Rodrigo Rodrigues Alvim
01. Estamos numa condição temporal, a qual, em geral,
denominamos “mundo”, “vida”, “existência”, “realidade”, etc. Nela, as coisas
vêm a ser e deixam de ser, num movimento (devir) que nos permite intuir o tempo
– são as coisas que nos são dadas à nossa sensação, as coisas “visíveis”, “materiais”.
02. Apesar disso, perpassando a história, vemos
surgir nesses entremeios um pretenso atemporal ou eterno, também, por isso
mesmo, denominado “extramundano”, “extraordinário”, “sobrenatural”, como se o
mundo “visível” e “material” não pudesse ser compreendido (quiçá existir) por
si mesmo, mas somente se pressupondo esse “invisível” e “imaterial”.
04. O caráter naturalmente precário e contingente do
sensível foi, enfim, desabonado como fonte e suporte do que se apresentava como
impossibilidade de ser de outro modo (o necessário e essencial, que não pode
deixar de ser, imutável e absoluto).
05. Desde a antiguidade da nossa cultura, exemplos,
nesse sentido, foram multiplicados. Paradoxalmente, até no movimento encontrou-se
o imobilismo, como no movimento dos planetas, o “sempre e mesmo” movimento, o cíclico.
Notou-se na multiplicidade do movimento de uma espécie de animal, um hábito que
nos sugeriu a existência de um mesmo “instinto”. Aliás, o termo espécie já é
uma expressão de uma “conformidade” entre inumeráveis indivíduos. As
matemáticas também nos concatenam, desde os seus primórdios, tantas outras
expressões universais, “abstratas” aos dados sensivelmente imediatos.
06. Assim, mesmo quando os primeiros filósofos da
cultura grega tentaram uma compreensão do mundo prontamente manifesta a partir
do próprio mundo, alheia às entidades fundantes míticas e religiosas,
apresentando a “água”, o “ar”, o “fogo”, a “terra” como a origem de tudo, essa
abordagem significou o salto inaugural da maneira racional de compreender o
nosso mundo por si só, mas não foi suficiente para romper radicalmente com a
ideia de transcendentes ao mundo, bem ilustrado no pensamento de quem é
considerado o primeiro filósofo ocidental, Tales de Mileto, a quem se atribui,
por um lado, a afirmação de que a “água” é a origem de tudo e, por outro lado,
de que tudo está prenhe de “deuses”.
07. O “humano, mundano e profano” também foram
apresentados como antitéticos ao “divino e sagrado”, reforçando essa distinção
entre o transitório e o imutável, entre o material e imaterial. No período
medieval ou feudal da cultura europeia, quando predominou a cosmovisão
religiosa de mundo, a igreja cristã se tornou a guardiã maior desse dualismo e
Deus, por sua vez, a entidade absoluta por excelência, traduzindo-se na
filosofia especulativa e racionalista no supraconceito do pensamento metafísico,
abstrato, dogmático e imaterial.
08. Por esse mesmo prisma, também se pode compreender
em alguma medida a modernidade, pois uma de suas características marcantes é o
que se nomeou “processo de secularização”. “Secular” é, por sua etimologia,
aquilo que está no tempo. Trata-se, portanto, do que é imanente e não
transcendente ao mundo imediatamente dado aos nossos sentidos e material.
09. No âmbito das reflexões políticas modernas, esse “processo
de secularização logo se fez sentir. O antigo regime estava assentado na
governança monárquica absolutista, que, por seu tuno, estava assentado na ideia
do direito divino dos reis, pela narrativa de que Deus mesmo havia escolhido o
primogênito humano para governar e que o rei de então era o mais próximo dessa
origem. Sem detalhar, podemos ver surgindo, nesse contexto, filósofos que defenderão que
o poder não advém de Deus, mas de um acordo que os homens (que assim se tornam
uma comunidade) fazem entre si, seja para preservar pretensos direitos naturais
(sua vida, sua liberdade, suas posses) ao modo de um John Locke, seja para
assegurar simplesmente a duração da vida, ao modo de um Thomas Hobbes. Mesmo
antes, por Nicolau Maquiavel, tentou-se pensar o comportamento político, em
especial do governante, não mais à luz de valores etéreos, universais e transcendentes (como estabelecia a ética religiosa cristã), mas como resultado do próprio interesse humano
de manter a ordem vigente, podendo inclusive recorrer a meios condenáveis ética
e religiosamente, todavia efetivos para a própria manutenção do poder e do “status
quo”. Portanto, o que move a política são estritamente os interesses humanos –
e comumente os mais baixos – e não a observância de preceitos sagrados. Vê-se, por esses exemplos, que o pensamento moderno tendeu a esclarecer os próprios atos humanos, as suas interações e disposições por motes mundanos mesmo e não mais por motes ideais e veneráveis.
10. De igual modo, podemos encontrar os delineamentos desse "processo de secularização" na elaboração da cosmologia e física modernas. Já Galileu-Galilei defendia que os textos
bíblicos não tinham interesse em tratar das coisas naturais e que, portanto,
não seria coerente recorrer a eles para contrapor argumentos à sua investigação
da natureza, que se pretendia comprovada por suas observações da natureza, especialmente
da lua e de Júpiter - ressalvando-se que hoje se sabe que algumas de suas importantes “experiências”
não eram propriamente sensíveis, porém mentais (como a ideia do movimento no vácuo e inercial).
Como Galileu, também Kepler e Newton não contrapuseram os resultados de suas
pesquisas naturais à teologia cristã, mas trataram de considerar que o
interesse e modo de tratamento dessas duas áreas eram completamente diferentes,
auxiliados por filósofos importantes, que, no contexto dos primeiros séculos da
modernidade, abordaram questões de método investigativo adequado à ciência, como René Descartes e Francis
Bacon, que, embora apresentando instâncias de decisão últimas do real e
verdadeiro diferentes (respectivamente, a capacidade racional e a capacidade de
experiência sensível), ambas instâncias eram estritamente humanas e comuns a
todos os seres humanos, não dependendo de uma ocasional revelação divina, como se
pensava presente na própria escrituração da Bíblia ou em outras ocorrências que consideravam sobrenaturais - os milagres. Para muitos desses pensadores da
modernidade, a ordem do mundo é expressão da inteligência de um arquiteto
divino e que podia o ser humano, dotado de inteligência, revelar,
independentemente da ação direta de Deus. A ideia de um Deus como um relojoeiro
e o mundo como o seu relógio bem ilustrava o quanto o funcionamento da criatura
já não mais dependia da presença do seu criador. A inteligência do criador
estava no seu relógio, mas já não era o seu próprio criador, de tal
modo que, nesta distinção, Deus era transcendente (e imaterial, pois não
espácio-temporal) e, como tal, completamente transcendente às capacidades
humanas, e o mundo era o imanente (e material, pois submetido ao tempo e ao
espaço), no qual estamos inseridos, sendo-nos acessível e passível de ser por nós perscrutado diretamente, alcançando as constantes de seus movimentos. Pouco a pouco e cada vez mais, a teoria
do conhecimento moderna acreditava-se desvinculada dos pressupostos metafísicos,
ainda predominantemente compreendida como o que não nos é dado imediatamente
aos nossos sentidos corpóreos.
11. Essa tendência no campo epistemológico moderno alcançou
o seu ápice com a ciência pensada ao modo kantiano, que tenta manter a ciência
para dentro dos limites da razão humana e que se constrói a partir da
experiência. Para além dos limites dessas nossas capacidades, somos incapazes
de conhecimento rigoroso, ficando entregues às especulações, antinomias ou aporias
lógicas, divagações e ilusões. Em contrapartida, temos aqui um “subjetivismo transcendental”,
que incidirá numa efervescência filosófica chamada “idealismo alemão”, que na
pena de Hegel tudo reduzirá a um “Espírito Absoluto”, a uma unidade inegavelmente
metafísica, ainda que se apresente como desdobramento histórico panteico.
12. É nesse período de predominância do
pensamento hegeliano que surgem as reflexões de Ludwig Feuerbach, que inclusive
participa de um grupo de pensadores “revolucionários”, a “esquerda hegeliana. O
importante na obra de Feuerbach é que ela se irrompe no seio da esfera que se
tem inequivocamente como “metafísica”, a religião, alvejando a concepção maior
da filosofia da religião, o conceito de Deus, reduzindo toda teologia a uma antropologia,
ou seja, reduzindo todo o seu caráter ainda metafísico às contingências das
necessidades mais mundanas do ser humano, que é a de expressão de si próprio,
mas dialeticamente. Tudo o que é limite ou falta em si mesmo (subjetivo), o
homem o projeta para fora de si (objetivo): se o homem conhece algumas coisas,
mas não tudo, a onisciência está para além do humano; se o homem tem algum
poder, mas não todo poder, a onipotência está para além dele; se o homem se faz
presente aqui e agora, a onipresença é algo para além dele... Ou seja, projetamos
para fora de nós mesmos o que, sendo falta em nós, se nos apresenta como objeto
maior do nosso amor, acreditando que o poder infinito, o conhecimento infinito,
etc., são o próprio infinito, ao qual também chamamos de Deus ou Absoluto. Em
Deus se encontra maximamente o que almejamos e, assim, amamos a Deus sobre todas
as coisas. E como Deus (embora assim criado por nós) nos parece ulteriormente maior
do que nós mesmos, tomamo-lo não na condição de objeto (como realmente é), mas
como sujeito, ao mesmo tempo que nós que o criamos disso esquecemos e nos
percebemos a nós mesmos como por ele criados, na condição, pois, de objetos.
Finalmente, consideramos que fomos criados por ele à sua imagem e semelhança,
não obstante, em verdade, fomos nós quem o criamos à nossa imagem e semelhança.
Conclui-se disso, que nem mesmo o sumo-conceito metafísico tem a existência em
si e por si mesmo, mas é produto humano, não ultrapassando as cercanias
mundanas. Tudo sucumbe à condição concreta do mundo humano. Estabelece-se,
assim, as bases do materialismo contemporâneo, seguro que o Deus da religião
está morto, por não ser precisamente como o homem religioso o pensa, mas não é irreal, quando é compreendido como a expressão máxima e infinita de tudo o que o
ser humano mais ama.