Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





11 de nov. de 2016

TEXTO XXXVIII: Immanuel Kant e a Ciência


Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Não obstante houvesse, no início da modernidade, diferentes filósofos em disputa quanto à instância de garantia última do conhecimento, sobressaindo, de um lado, os racionalistas e, por outro, os empiristas, já, no século XVIII, os pensadores denominados iluministas tenderam a considerar o conhecimento como uma conciliação dessas duas capacidades humanas: de razão e de experiência.


02. A sistematização oferecida por Immanuel Kant à tese de que o conhecimento (ciência) é resultado do esforço conjunto das atividades racionais e empíricas marcou a filosofia, senão toda a cultura ocidental, sendo, para alguns, um divisor de águas entre a modernidade e a contemporaneidade. De fato, foi um pensamento que permitiu nascer um novo cenário na filosofia, promovido, por sua vez, por filósofos de grande envergadura, como aqueles que elencam o movimento denominado Idealismo Alemão e que, como já se observa nessa expressão, coloca definitivamente os germânicos no rol dos grandes pensadores ocidentais.

03. Lia-se, no contexto de Kant, respeitáveis filósofos em defesa da fundamentação empírica na elaboração do conhecimento, capaz de não deixar com que este terminasse em vãs especulações, tal qual já avaliavam muitas das chamadas “querelas medievais”, que pressupunham as mais fantasiosas entidades etéreas para justificar uma proposição por uma prévia ideia geral do mundo. Destacamos aqui, para exemplificar o empirismo, a obra Ensaios sobre o conhecimento humano, de John Locke, que recupera a tese aristotélica de que “nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos”, ou seja, sem os dados sensoriais, sem a experiência do mundo, a razão humana é uma “tabula rasa” (uma tábua lisa), literalmente sem qualquer marca ou expressão, um papel em branco, um vazio, simplesmente inexistente.

04. Havia, no extremo oposto, contudo, obras de filósofos que defendiam que os dados instáveis e até mesmo contraditórios fornecidos pelos sentidos humanos acerca do mundo não são capazes de justificar as certezas que a ciência considera possuir. Tais certezas – sugerem – são, de algum modo, fornecidas pelo próprio pensamento humano ao pensá-las. Como contraponto ao empirismo, podemos destacar a obra, de Gottfried Wilhelm Leibniz, Novos ensaios sobre o conhecimento humano, na qual esse autor repete Locke, no sentido de que “nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos”, mas acrescenta, em seguida, “a não ser o próprio intelecto”. Este adendo firma a posição racionalista de Leibniz: o intelecto humano, antes de toda e qualquer experiência, não é uma “tabula rasa” ou um vazio como presumiam os empiristas. Porque humano, tal intelecto devia ser algo precisamente determinado ao modo de um intelecto humano, de tal maneira que o dado empírico é compreendido à luz dessa predeterminação ao modo, para Leibniz, de “ideias virtuais”.

05. Nesse contexto, provocado sobretudo pela obra de um empirista escocês chamado David Hume, que, ao combater quaisquer pressupostos metafísicos dos racionalistas, depara-se com o ceticismo, Kant propõe examinar se há razão humana antes de toda e qualquer experiência do mundo. Assim, importa a Kant que a razão se esforce, antes de atuar criticamente sobre os dados de experiência das coisas, para tomar-se a si mesma como alvo primeiro de sua própria crítica. Essa descentralização ou deslocamento, que vai do exercício do pensamento humano sobre as coisas para o ato do pensamento pensar a si próprio, Kant o compara à Revolução Copernicana que descentralizou a Terra e colocou o Sol como eixo do Cosmos. E é precisamente essa “Revolução Copernicana Kantiana” que justificará o título da mais famosa obra de Kant, Crítica da razão pura, entendendo que crítica é justamente prerrogativa da razão. Enfim, esta razão se torna centro de seu interesse, quanto àquilo que ela é necessariamente e independente, pois, de tudo mais que se lhe possa agregar, tratando-se, dessa forma, da razão “pura”, “a priori” ou, como preferirá Kant dizer, “transcendental”.

06. Se, como disse Kant, foi Hume que o despertou do sono do dogmatismo, o que se seguiu foi a tese kantiana contra Hume, de que a rotina sobre as coisas que consideramos assim conhecer não é condicionada por nossos hábitos adquiridos de repetidas experiências e projetadas, sob a forma de crença e expectativa, em relação às coisas e aos acontecimentos por vir, mas é-nos assegurada, isto sim, por determinações originalmente constitutivas do que denominamos “razão” – formas e categorias “a priori”. O esforço de Kant é, portanto, como que esvaziar a razão de tudo o que lhe é estranho e que ela absorveu da experiência das coisas do mundo, para, por fim, avaliar o que restou e do qual não é possível se desfazer, sem que igualmente a razão se desfaça de si mesma. O que assim soçobra é acidental à razão, restando-lhe apenas o que lhe é constitutivo. Porém, o que lhe é constitutivo, sem mais, só pode ser pensado, mas não propriamente conhecido, conforme diz-nos Kant, porque o conhecimento exige, além dessa forma racional apriorística, a matéria da experiência, na qual aquela possa se aplicar e moldar. Curiosamente, Kant responde metafisicamente a impossibilidade de um conhecimento ou ciência metafísica, ou seja, que despreze a experiência do mundo, mas também considera inaceitável a defesa de um conhecimento ou ciência que se constitua de experiências que se arranjem por si sós e que se depositem num receptáculo mental humano completamente passivo e inoperante. Escreveu ele, ao dar a público a sua Crítica da razão pura: “O conhecimento começa com a experiência, mas nem todo ele advém da experiência.”

07. Desse modo compreendido, percebe-se que Kant elaborou uma teoria do conhecimento efetivamente incapaz de dissociar o sujeito epistêmico da coisa que pretende conhecer. O resultado dessa relação, para ele, é o conhecimento de um objeto. Em outros termos, o que se conhece é o que a coisa é ao modo das predeterminações ou constituição inata do que denominamos capacidade racional do ser humano. Não é, por conseguinte, a compreensão da coisa em si mesma (“noumenon”), porém daquilo que a coisa é para nós (“fe-noumenon”). Claramente, para Kant, o que tomamos por mundo é representação humana. Entretanto, não é representação qualquer, mas assentada, de um lado, em formas e categorias precisas da mente humana e, por outro lado, na coisa tal e qual. Nada além disso, de maneira que Kant condena qualquer elemento passional ou tendência emotiva entre esses extremos e capaz de variar e comprometer a objetividade. Assim, outra curiosidade no pensamento kantiano: o conhecimento é humano, é subjetivo, não impossibilitando, contudo, vencer o relativismo epistemológico; ao contrário, porque somos detentores de mesma capacidade racional, formalmente, e enquanto estamos diante das mesmas coisas, sem mais, conhecemo-las do mesmo modo.

08. O aparato racional inato que garante o mesmo “modus operandi” no trato das coisas do mundo, permitindo, assim, conhecê-las à maneira humana, é constituído por duas capacidades em nós: a faculdade de sensibilidade e a faculdade de entendimento.

09. Para Kant, as coisas sensíveis se dispõem, se organizam, se arranjam primeiramente (por nós, em nós e para nós) por duas formas que nos são “a priori”: o espaço e o tempo. Logo, contra o senso comum, a filosofia kantiana sustenta que espaço e tempo talvez não sejam nada independentemente de nós ou fora de nós. Não são, pois, possivelmente, propriedades ou predicados do mundo, mas são, certamente, formas pelas quais temos a sensação assim mesmo como nos ocorre: todo sensível se distribui no espaço e no tempo. Tal defesa não afronta apenas o senso vulgar, mas afronta igualmente a respeitada física moderna newtoniana, mesmo que seja esta última uma grande inspiradora do Iluminismo, movimento intelectual do qual Kant faz parte: se Isaac Newton considerou espaço e tempo como atributos universais da natureza (“physis”), Kant confirma tal universalidade, mas substituindo, paradoxalmente, seu estatuto físico por um estatuto psíquico, como homens que, possuidores de retinas róseas, sem que o saibam, apreendem um mundo rosado e sempre rosado, como rosado fosse todo o mundo.

10. Se as coisas nos são assim sensíveis (âmbito que Kant denominará “estética”), o que já implica alguma maneira humana de composição, sobre elas podem atuar as categorias ou conceitos, também “a priori”, da faculdade do entendimento humano (âmbito que, por seu turno, Kant chamará de “analítica”). São 12 (doze) essas categorias, que podem ser resumidas em 4 (quatro):

I
QUANTIDADE
II
QUALIDADE
III
RELAÇÃO
IV
MODO

1) Totalidade
2) Pluralidade
3) Unidade
1) Realidade
2) Negação
3) Limitação
1) Substância
2) Causalidade
3) Reciprocidade
1) Possibilidade
2) Existência
3) Necessidade

11. Entendemos as coisas (damo-las-nos) segundo tais categorias – o que não quer dizer que são tais coisas em si mesmas assim como nós as entendemos. Por isso, ajuizamos sobre as coisas segundo essas categorias, o que nos permite sobrepor-lhes o seguinte quadro de juízos:

1) Universais
2) Particulares
3) Singular
1) Afirmativos
2) Negativos
3) Indefinidos
1) Categóricos
2) Hipotéticos
3) Disjuntivos
1) Problemáticos
2) Assertóricos
3) Apodíticos

12. Exemplificando cada juízo:

1) Todo X é Y
2) Algum X é Y
3) Este X é Y
1) X é Y
2) X não é Y
3) X é não-Y
1) X é Y
2) Se X é Y e Y é Z, então X é Z
3) X é Y ou X é Z
1) É possível que X é Y
2) De fato, X é Y
3) Necessariamente, X é Y

13. Isto responde, ao modo kantiano, à pergunta de David Hume de como podemos considerar conexões habituais (advindas das simples experiências corriqueiras e afins, mas contingentes) como conexões necessárias, o que para Hume é logicamente impossível, ilusório e sustentado na precariedade psicológica do costume e da crença de que o futuro dar-se-á tal e qual o passado. Contudo, para compreendermos melhor isso, precisamos recuperar as considerações que preliminarmente Kant faz acerca dos juízos.

14. Segundo a tradição, que Kant adota, há juízos acerca das coisas que são “analíticos” ou “sintéticos”, bem como “a priori” ou “a posteriori”.

15. Se ajuízo que “o corpo é extenso”, realizo um juízo analítico, pois, ao analisar o que faz de um corpo exatamente corpo, entendo que é tudo aquilo que necessariamente o constitui ou tudo aquilo sem o que o corpo deixa de ser o que é: corpo! Ora, ao enumerar esses predicados essenciais a todo e qualquer corpo, vejo ali a “extensão”. Não há como pensar corpo que já não seja algo extenso e de tal maneira que consideramos que todo corpo ocupa um lugar no espaço. Logo, caso eu ouça alguém gritando “olha, um corpo”, sei que este corpo, embora dele eu não tenha experiência, é obrigatoriamente algo extenso ou, do contrário, não é um corpo. Daí que tal predicado não é um acidente ao corpo, mas um atributo do corpo em geral, universal. Podemos, então, ousar dizer não somente que “o corpo é extenso”, mas que “todo corpo é extenso”, os já dados à nossa sensação ou não. Por isso mesmo, todo juízo analítico é também “a priori”, quero dizer, pode ser considerado antes que dele se tenha experiência, como acabamos de fazer no exemplo dado. Trata-se de um juízo estritamente conceitual, racional.

16. Se ajuízo que “o corpo é móvel”, realizo um juízo sintético, pois, ao analisar o que faz de um corpo exatamente corpo, entendo que é tudo aquilo que necessariamente o constitui ou tudo aquilo sem o que o corpo deixa de ser o que é: corpo! Ora, ao enumerar esses predicados essenciais a todo e qualquer corpo, não vejo ali a “mobilidade”. Há como pensar corpo que seja algo “móvel” ou “não móvel”. Logo, caso eu ouça alguém gritando “olha, um corpo”, não sei dizer, sem a experiência do mesmo, se ele está em movimento ou não. Daí o predicado “móvel” (poderia se “imóvel”) é um acidente ao corpo, um atributo que lhe é acessório, que lhe é associado ou sintetizado contingentemente. Por isso mesmo, todo juízo sintético é também “a posteriori”, quero dizer, só posso considerá-lo após dele ter experiência. Trata-se de um juízo imediato e sensível. Neste limite da minha experiência (e acompanhando o exemplo dado), só me cabe dizer que “este corpo é móvel” ou (porque conceitualmente pode deixar de sê-lo ou de outro corpo não o ser) que “algum (ou pelo menos um) corpo é móvel”.

17. Daí, podemos sumamente dizer que para a tradição filosófica havia dois tipos de juízos: os juízos analíticos “a priori” e os juízos sintéticos “a posteriori”. Isso fez com que, por suas características opostas, duas vertentes de pensamento se digladiassem, respectivamente: o racionalismo e o empirismo.

18. Os juízos analíticos “a priori” apresentavam a vantagem de serem enunciados indiscutíveis, donde um René Descartes pudesse, então, pretender erguer o edifício da ciência logicamente rigorosa. Todavia, esses juízos foram acusados de ter a sua certeza calcada numa espécie de redundância, como a tautologia A = A, o que, se por um lado é evidente, por outro lado é praticamente inútil, sendo geralmente chamados de juízos “metafísicos”.

19. Os juízos sintéticos “a posteriori” apresentavam a vantagem do conceito predicado acrescentar algo novo ao conceito sujeito da proposição, o que lhe é assegurado,segundo Francis Bacon, pela experiência do mundo. Porém, o próprio Bacon já compreendia o defeito lógico da indução e que, em tese, produzia prejuízos à garantia técnica no poder de intervenção desse tipo de saber.

20. Foi nesse contexto, pouco promissor, que Kant ousou elaborar uma questão que, se não fosse imediatamente absurda à tradição filosófica, lhe seria de fácil resposta negativa. Perguntou ele sobre a possibilidade de um tipo de juízo que preservasse somente as vantagens de ambos os juízos tradicionais, ao qual chamou de “juízo sintético ‘a priori’”, ou seja, uma proposição pela qual houvesse um incremento do saber (pois, sendo sintético, o conceito predicado acrescentaria algo novo ao conceito sujeito), mas, simultaneamente, este vínculo fosse necessário e não contingente. Surpreendentemente, a resposta que o próprio Kant deu à sua questão não foi negativa. Kant defendeu que há esse tipo de juízo, que é ele o único que se pode fielmente chamar de “conhecimento”, que ele implica uma feliz conciliação de razão e experiência, que é por ele que a ciência moderna se constrói. Por isso mesmo, as teorias científicas se pretendem respaldadas pela experiência do mundo, ao mesmo tempo em que se pretendem universais.

21. Quando dizemos, por exemplo, que “a reta é a menor distância entre dois pontos”, percebemos que o conceito predicado é quantitativo (pois expressa uma medida), mas que o conceito sujeito não é quantitativo, mas qualitativo (tanto que estudamos a reta ao lado de outras ideias como a curva e a quebra – que não se distinguem entre si pelas medidas que têm; aliás, podemos até pensá-las tendo a mesma medida e nem, por isso, são idênticas). Ora, se assim é, então também é inegável que o predicado (quantitativo) acrescenta algo novo ao sujeito (qualitativo). No entanto, tal predicado não é acidental ao sujeito, mas lhe é necessário e universal.

22. Essa novidade, Kant a apresenta como possível, porque, embora possa o homem incrementar o saber através de sua capacidade de experiência do mundo, o modo pelo qual tal material que daí resulta é articulado são segundo as formas e as categorias inatas a todo homem e as quais chamamos, enfim, de razão humana, conforme elucidamos antes. Para Kant, somente esse produto pode ser denominado “conhecimento”. Escreveu ele, nesse sentido, que “conceitos [categorias] sem intuições [intuições sensíveis, matéria da experiência] são vazios e intuições sem conceitos são cegos”.

23. Essa teoria do conhecimento é, para Kant, um despertar do sono dogmático da filosofia metafísica (avessa à experiência do mundo para a construção de um pensar rigoroso), do qual ele mesmo se disse, certa vez, vítima, mas não deixou de ser também um despertar para os que fossem vítimas de um empirismo ingênuo que partia do pressuposto de que as coisas se arranjavam por si mesmas e se davam como tal a um sujeito do conhecimento que fosse “tabula rasa”. Para Kant, o sujeito cognoscente tem que se desfazer de todos os sentimentos, emoções, paixões e tendências passionais que comprometerão a lisura de sua investigação científica, mas não tem como se desfazer da precondição correspondente ao seu aparato psíquico e racional, constitutivo de todo ser humano (por ser precisamente isso que o faz humano). É esta precondição que Kant chama de “transcendental”.


24. Apesar disso tudo, Kant termina a sua obra Crítica da razão pura inquieto com uma questão que será o fio condutor para a sua Crítica da razão prática. Kant considera a ciência como produto da modernidade, como produto recente da humanidade. Ao contrário, a metafísica é algo à qual a humanidade se dedica há muito mais tempo. Ora, se a metafísica não alcança o estatuto de ciência do mundo (defesa de Kant), qual é o estatuto da metafísica, que a fez produto cultural secular do Ocidente? Oportunamente, podemos tratar dessa questão aqui, dando continuidade a este artigo, que, por ora, pretendeu apenas abordar a teoria do conhecimento do pensamento kantiano. Contudo, é instigante já adiantar que, para Kant, a metafísica não responde aos apelos epistemológicos que temos (e conforme vimos), mas aos nossos apelos éticos, isto é, aos desafios de como devemos nos conduzir na vida.

15 de jun. de 2015

TEXTO XXXVII: Sobre o Pensamento Hegeliano

Rodrigo Rodrigues Alvim


01. Teríamos muito que escrever, a fim de compreender o trânsito da filosofia kantiana para o pensamento elaborado por Georg Wilhelm Friedrich Hegel. No entanto, o desafio é, aqui, ao mesmo tempo, ser breve, algo comumente difícil aos filósofos. Mas é, por isso mesmo, um desafio, do qual não esquivaremos, adiantando as nossas desculpas a quem pretende algo mais pormenorizado.

02. Hegel faz parte de um movimento de pensamento europeu que foi denominado “Idealismo Alemão”, que adveio de um entusiasmo de leitura das obras de Immanuel Kant, já considerado um “divisor de águas” dentro da filosofia ocidental. Ocorreram desdobramentos e posicionamentos filosóficos marcantes nesse período, dentre os quais nos cabe destacar os pensamentos de Johann Gottlieb Fichte e Friedrich Schelling, com os quais Hegel estabeleceu diálogos imprescindíveis para uma mais aprofundada compreensão de sua filosofia.Contudo, nos estreitos limites que antes colocamos, começaremos destacando o que o próprio Kant tinha consciência ser uma revolução: se a tradição filosófica se dedicou à tarefa de tentar dizer racionalmente as coisas, a razão deveria, antes, ter se dedicado à tarefa de dizer-se a si mesma, em sua condição “pura” ou “transcendental”, ou seja, sem qualquer coisa que lhe seja estranha ou distinta, tal como qualquer experiência das coisas que dizemos equivalerem ao mundo. A razão como que se pergunta em seu próprio nascedouro: o que sou , este que pergunta sobre o que é tudo mais? É tal intento que dará nome à sua primeira “crítica”, que é a Crítica da Razão Pura. Noutros termos, o eixo epistemológico deixa de ser a coisa sobre a qual a razão translada, mas a razão que aí mesmo se coloca. Não é mais, portanto, a coisa que se quer conhecer que se impõe a uma razão tabula rasa, mas é a coisa que se conforma às determinações constitutivas da razão a priori. Nesse sentido, Kant exemplifica:

Quando Galileu deixou as suas esferas rolar sobre o plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, ou quando Torricelli deixou o ar carregar um peso de antemão pensado como igual o de urna coluna de água conhecida por ele [...]: assim acendeu-se uma luz para todos os pesquisadores da natureza. Compreenderam que a razão só discerne o que ela mesma produz segundo seu projeto[...].


03. Na relação epistemológica entre o sujeito S (razão), que quer conhecer a coisa C, e a coisa C, que o sujeito S (razão) pretende conhecer, o conhecimento deixa de ser compreendido ao modo aristotélico, como uma “adequação do intelecto (razão,) sujeito S, à coisa C”, para ser compreendido como “uma adequação da coisa C às predeterminações inatas do intelecto, sujeito S”, isto é, às condições constitutivas a priori da razão, o que resulta não no que a coisa C seja em si mesma (noumenon), mas no que a coisa C é para nós (fe-noumenon, fenômeno ou objeto), no modo como ela, a coisa C, nos parece ou aparece. Conhecer o mundo implica a experiência (algo em que os empiristas insistiam), mas tal conhecimento ocorre sempre em nível de representação da razão (algo em que os racionalistas insistiam). Assim, de certa forma, Kant promoveu uma conciliação entre razão e experiência, como propugnavam os pensadores iluministas, o que o levou a escrever que “todo conhecimento começa com a experiência, mas nem todo ele advém da experiência.
  
04. Nesse pano de fundo, evidencia-se que o que se denomina “mundo” é necessariamente “mundo humano”. Essa ênfase incidirá na centralidade da “antropologia transcendental” relativamente a qualquer outro campo de interesse filosófico, inclusive relativamente ao próprio campo epistemológico que a gerou, o que ficará ainda mais claro na Crítica da Razão Prática e também na Crítica do Juízo.

05. Essa autonomia da razão ou da consciência encontrou terreno fértil no contexto da Europa que abrigou os ideais da Revolução Francesa e vivia as suas consequências nos seus demais Estados Nacionais ou principados, quando o tema da liberdade e da igualdade eram temas inevitáveis, também nos círculos filosóficos.


06. Os meandros são complexos, mas Hegel considerava que a razão humana não poderia ser fundamento de sua própria crítica, de tal sorte que, em sua obra, a razão se deslocou do campo antropológico para o campo da ontologia: a Razão Universal, a Unidade da Consciência, o Espírito Absoluto são termos afins que compreendiam a própria razão humana, ultrapassando-a infinitamente, entretanto. Ademais, Hegel afirma-a como atividade e processo, como melhor explicitaremos.

07. Salientar que Hegel participou da transição do classicismo ao romantismo talvez facilite a nossa exposição. Uma das grandes características do primeiro período era a ênfase na razão, enquanto o segundo estimava a arte. A distinção que ora nos interessa se encontra no continuum de uma cadeia de raciocínio, de um ir a outro sempre pela mediação de um terceiro, de um processo que contrasta ao sem mediação, ao imediato da inspiração artística, da intuição do artista. Sendo assim, o absoluto caracteriza a manifestação desse segundo, dando-se assim mesmo como é: na sua inteireza, no seu todo, de uma só vez. Esta última compreensão não será a de Hegel, segundo o qual o absoluto é pensamento, é razão, é consciência que se dá a si mesma (autoconsciência) não de uma só vez, mas paulatinamente, em processo, sendo tal desdobramento o que tomamos como tempo e história: os acontecimentos históricos são um filão do mesmo, de uma identidade por princípio e por fim, pensamento de si próprio, pensamento de pensamento, como que uma ex-plicação do Uno, da Unidade, do Absoluto, se lembrarmo-nos que ex-plicare é um verbo latino derivado de plicare, que significa dobrar (dobrar para fora, desdobrar). Sendo assim, a Verdade se revela, para Hegel, como história, numa multiplicidade que se refere ao mesmo e assim tem suas partes interligadas necessariamente, mundo no qual nada é inexplicável como um insight, uma intuição, uma inspiração que não se pode rigorosamente pensar, porque se revela sem antes e sem depois. Arrisca-se, então, que a razão ou unidade não é obra do pensar humano, mas, antes, obra da Totalidade que se revela ao pensar e, se não há outro, ao pensar a si próprio, em cadeia, o que somente depois e, por isso mesmo, permite que a pensemos mediante os acontecimentos que são os seus desdobramentos, que, portanto, se mostra a si mesmo e que se nos mostram como o que tomamos por realidade, vida, existência, universo, mundo.

08. Posto assim, observa-se que a dificuldade que, em geral, o pensamento filosófico tinha com a história e com o mundo, entendidos como multiplicidade inconstante, e que, dessa forma, não favoreciam, a partir de si próprios, a construção de um conhecimento seguro do real, é superada por Hegel, que, por sua vez, considera o real como processo histórico ou, como dissemos anteriormente, como revelação, manifestação ou fenomenologia do verdadeiro, do Espírito Absoluto. Ora, uma das dificuldades da tradição filosófica em assim aceitar é que tal multiplicidade é muitas vezes contraditória ou excludente, o que, pela perspectiva de uma lógica binária (segundo a qual o-que-é é e o-que-não-é não é)incide em confusão e absurdo. Logo, é imprescindível já introduzir a lógica outra pela qual Hegel comporta a contradição, que é a dialética. Conforme essa lógica e muito ao contrário da lógica binária, a contradição não incide em erro ou no irreal, mas é ela o cerne da vida ou o que garante a dinâmica do mundo e do verdadeiro. Melhor dizendo, Hegel recupera uma concepção praticamente esquecida da Antiguidade Clássica Grega e sustentada por Heráclito de Éfeso, segundo a qual algo se revela concomitantemente ao seu oposto, ou seja, sempre quando algo se afirma, sua afirmação (e satisfatória compreensão) só é possível pela igual afirmação do seu contrário, que, por sua turno e não menos, é-lhe a sua negação. Há nisso uma tensão que se resolve não na exclusão de um extremo ou outro (pois um tem o seu ser no outro), porém pela instauração de um terceiro, que supera aquela contradição, mas também a conserva, visto que ele mesmo é resultado e só pode ser compreendido por aquela contradição anterior e pela contradição que agora ele também estabelece com o seu contrário (lembrando que “quando algo se afirma, sua afirmação só é possível pela igual afirmação do seu contrário”), incidindo em nova contradição, que se desdobra em nova síntese, que é nova tese que se coloca em mesmo tempo que o seu contrário, e assim sucessivamente, revelando-se processo infinito, que perpassa todas as coisas, que é o Absoluto. E é dessa a maneira que esse todo se manifesta pouco a pouco como história, acontecimentos, mundo.

09. O Absoluto é pensamento, sendo que a atividade de pensamento se exerce sobre algo. Como no caso do Absoluto não há outro no qual se poderia exercer, esse pensamento se exerce sobre si mesmo, sendo pensamento de pensamento. O pensamento “em-si” se torna “para-si” mesmo: sai como que de si para dar-se a si mesmo, num processo infinito de reflexão. Noutros termos, o Absoluto sujeito se desdobra para “fora-de-si” na condição de Absoluto objeto, mundo, história. E à medida que tal Absoluto vai pensando a si mesmo, destina-se à síntese do Sujeito e Objeto, que Hegel chama de Concreto. Ocorre que todo esse alinhavar de momentos antitéticos e sintéticos também são cada qual desdobra mento antitético e sintético. Em Hegel, pois, a dialética não é propriamente um método, mas, sim, a natureza das próprias coisas e que, por isso mesmo, para que possam ser bem pensadas por nós, só poderão ser bem pensadas dialeticamente.

10. A partir daí, nenhum momento tem sentido em si mesmo, mas somente dentro do todo do qual faz parte, que é o Absoluto. Por isso, inevitavelmente, a filosofia hegeliana propõe-nos um sistema. Cada um só pode ser bem compreendido dentro do contexto do qual faz parte, que, por seu turno, faz parte de um contexto maior e, assim, sucessiva e ininterruptamente . O aqui e agora é um momento necessário do Espírito Absoluto: é como se tudo o que aconteceu assim aconteceu para que o aqui e agora seja; no entanto, também o aqui e agora deixará de ser, a fim de que tudo seja. Cada momento é, enfim, necessário e contingente, pois nada antes ou depois seria se este momento que somos não fosse, porquanto tudo é parte constitutiva do mesmo Espírito. Contraditório? À filosofia hegeliana, isso não é ofensa, porém é a mola dos acontecimentos: dialética!

11. Didaticamente, diz-se que a semente se realiza e se afirma num broto, embora um broto seja exatamente a negação da semente, que assim deixou de ser. Não dá para negar que a semente permanece no broto, pois, não fosse, não se teria igualmente broto. Mas deixou de ser, a fim de que o broto fosse. Assim a semente é necessária e contingente. Da mesma maneira, o broto se realiza e se afirma num arbusto, embora um arbusto seja exatamente a negação do broto, que assim deixou de ser. Não dá para negar que o broto permanece no arbusto, pois, não fosse, não se teria igualmente arbusto. Mas deixou de ser, a fim de que o arbusto fosse. Assim também o broto é necessário e contingente. A dialética é a dinâmica de tudo.

12. Bem, fiz o compromisso de não me delongar no tratamento precisamente do que é uma delonga sem fim. De qualquer forma, espero que este texto possa ser útil àqueles que gostariam de uma primeira palavra sobre o pensamento hegeliano. Por fim, remeto-lhes ao vídeo seguinte, a fim de que possam confirmar, por outra breve exposição, o que aqui foi tratado.



13 de mar. de 2014

TEXTO XXXV: Preâmbulo à Filosofia da Metodologia Científica

Rodrigo Rodrigues Alvim


Metodologia” é um termo da língua portuguesa que vem da confluência de três termos gregos:



Metodologia:


Meta

Odos

Logos
-

-

-
“ao largo”, “além”;

“caminho”;

“discurso”, “estudo”.

Metodologia é o discurso acerca do caminho a se trilhar para se alcançar o que se encontra além ou adiante. Noutros termos, é ela a explicitação antecipada das regras ou dos procedimentos a se observar para se atingir determinados objetivos. Por ela percorre-se idealmente o caminho que se quer realizar a seguir e, neste sentido, ela se impõe como “bússola” imprescindível de toda e qualquer atividade científica, a fim de que não nos percamos no decorrer desta mesma atividade.

Idealização para realização, a metodologia não se reduz a uma preocupação com o método, mas se completa numa igual preocupação técnica.

Técnica”, também de etimologia grega, significa “instrumento”. E como nenhum instrumento tem um fim em si mesmo, também aqui é a técnica científica o meio através do qual transpomo-nos do ideal para o real: no desenvolvimento de um projeto de pesquisa, do que se tem apenas por hipótese ao que se é; no desenvolvimento de um projeto de trabalho, do que se deve ser ao que de fato se realiza.

Quanto à questão dos métodos, os mais conhecidos são o indutivo e o dedutivo.

Indução” é o movimento [“inferência” (passagem ou trânsito de um a outro)] que se faz de casos particulares a uma afirmação geral ou universal:

                        O bronze, quando aquecido, dilata-se;
                        O níquel, quando aquecido, dilata-se;
                        O ferro, quando aquecido, dilata-se;      .
            Logo:  Todo metal, quando aquecido, dilata-se.

Dedução” é o movimento (inferência) que se faz de uma afirmação geral ou universal ao(s) caso(s) particular(es):

                        Todo metal, quando aquecido, dilata-se;
                        A prata é metal;                                      .
            Logo:  A prata, quando aquecida, dilata-se.

Mais adiante, veremos as relações possíveis ou não entre esses dois métodos básicos. Contudo já podemos adiantar que, atualmente, reconhece-se o uso de ambos na atividade científica, mas com diferentes ênfases em momentos bem distintos. Embora logicamente excludentes, seriam eles, nas diversas etapas do labor científico, complementares. Além disso, o domínio da compreensão de ambos é condição sine qua non para a compreensão de métodos outros mais refinados como o histórico ou genético, o sincrônico ou estrutural, o fenomenológico, o dialético (...) e de todo o debate que se construiu sobre a pretensão “explicativa” das Ciências da Natureza e a “compreensiva” das Ciências Humanas.

Sumamente, o objetivo último de toda Ciência, como seu próprio nome já nos revela, é tomar ciência, é conhecer. Por isso, toda Ciência implica projetos de pesquisa. E, uma vez realizada a própria pesquisa e o conhecimento de seu assunto proposto, espera-se ser possível a intervenção nessa realidade que se conhece, seja para mantê-la tal e qual, parcial ou totalmente, seja para transformá-la em algum de seus aspectos ou completamente, o que, por seu turno, faz com que a Ciência também se desdobre como projetos de trabalho. Deve-se destacar que a intervenção ou manipulação da realidade é uma característica predominante e distintiva do que os primeiros modernos chamaram de “Nova Ciência” ou do que nós contemporaneamente chamamos de “Ciência Moderna”, porquanto, entre os antigos e medievais, predominava a concepção segundo a qual já viveríamos no “melhor dos mundos possíveis” e que, assim sendo, qualquer mudança humanamente ensejada nesse mesmo mundo só poderia ser inevitavelmente para piorá-lo. Assim, a Ciência destes traduzia-se num conhecimento “desinteressado”, num “conhecer por conhecer”, num conhecimento estritamente contemplativo.

Tendo, pois, como pano-de-fundo, a “Ciência Moderna”, podemos delinear o seguinte esquema:

Projeto de Pesquisa
Pesquisa
Análise e interpretação dos dados obtidos
(Conhecimento)
Monografia
Projeto de trabalho
Intervenção

Tal esquema explicita, pois, que nenhuma intervenção responsável e satisfatória se faz sobre aquilo do qual não se tem um prévio conhecimento; que toda e qualquer ação humana só é possível à luz de uma concepção da realidade na qual se age; que tanto mais se obtém o que se quer por essa ação quanto mais dela se tem uma representação adequada. Dito de outra forma ainda, uma justa intervenção somente se realiza, em primeira ou em última instância, sobre o amparo de um projeto de pesquisa bem elaborado e que garanta, antes mesmo da intervenção, uma pesquisa bem desenvolvida, que redundará necessariamente num conhecimento, que então há de balizar a nossa proposta de trabalho e intervenção, enfim.

Todavia, todas estas preocupações, como até aqui foram definidas, não perturbam, obviamente, todos os homens – pelo menos não do mesmo modo e em mesmo grau. Pertencem, sim, a alguns homens que exatamente por isso se tornam iguais entre si, uma mesma unidade, por assim dizer, em torno destas preocupações que têm em comum. Esta “comum-unidade” é a dos cientistas, que sustentam os preceitos científicos em voga, a denominada “ciência normal”. Segundo KUHN (1995: 219), “uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”. Assim, todo procedimento investigativo que foge a tais preceitos é considerado como “pseudo-ciência”: pode ser mito, religião, filosofia ou arte, mas não ciência. Portanto, quem deseja participar dessa comunidade científica ou por ela ser reconhecido só o poderá submetendo-se aos seus preceitos de pesquisa e exposição. Por este prisma, as academias são os meios pelos quais conformamos os nossos sentidos e mentes a perceberem e pensarem o mundo de um modo: o modo científico.

Se, por um lado, é a comunidade científica que sustenta o paradigma, é este que sustenta, por outro lado, a comunidade científica. Nas palavras de KUHN (1995: 219), paradigma “é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, [como já acima transcrevemos] uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma. Entretanto, também a ciência tem a sua história. E esta não se faz apenas pela acumulação de novas descobertas que foram sendo feitas à luz dos mesmos procedimentos metodológicos, mas sobretudo pelas contradições entre tais procedimentos ou por rupturas paradigmáticas. Assim, os chamados de “charlatões” pela comunidade científica atual podem se tornar os cientistas do amanhã, do mesmo modo que a “ciência normal” hodierna foi condenada como “pseudociência” no passado. Foi tal observação que permitiu ao mesmo KUHN (1995: 13) escrever que paradigma são “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Grifos nossos).

Paul Feyerabend levará estas considerações às suas últimas conseqüências. Como o título de sua obra mais famosa, Contra o método, já nos permite entrever, Feyerabend se contrapõe a todo método que se arrogue absoluto, defendendo que este deve ser fruto da escolha de cada grupo de pesquisadores, pelo que cada qual julgue estar mais em conformidade para o estudo do objeto de seu interesse naquele momento. Em seus próprios termos, FEYERABEND (1993: 324 e 325) escreve que “a ciência é aquilo que eu faço e aquilo que os meus colegas fazem e aquilo que os meus pares, eu e o público globalmente considerado, temos por ‘científico’”; “não existe um ‘método científico’ uniforme”.

Apesar disso, conduzir-se à luz desse anarquismo metodológico ainda mantém-se controverso e, inevitavelmente, já daria sobrenome próprio a uma comunidade científica dentro da comunidade científica maior. Quem, pois, ainda pretende participar d’a comunidade científica (em seu sentido mais largo e dominante, pois) e por ela ser reconhecido não pode deixar de adequar-se aos seus ditados metodológicos. Só devemos ainda acentuar que esta característica não é característica distintiva da comunidade científica, mas de toda e qualquer instituição social. Também não é justo ver nesses imperativos somente e tão-somente um cerceamento da liberdade criativa.

Para convencermo-nos de que não há teoria desarraigada das concretas condições da vida humana, urge entendermos os motivos pelos quais os homens sempre buscaram a mais fidedigna representação do mundo, isto é, o conhecimento.

O que denominamos ecossistema pode oferecer-nos uma satisfatória ilustração da estreitíssima ligação entre os elementos que compõem a natureza: a cadeia alimentar mostra-nos, mais especificamente, o quanto os animais estão integrados à natureza. Eles não apenas habitam-na, mas também neles a natureza como que faz-se hóspede permanente, sob a forma do que, num só termo, chamamos de instinto. Assim, nunca saem eles da natureza, nem mesmo dela se afastam, porque, antes, esta já se faz completamente neles. Costumamos, por isto, dizer, como ilustração, que tanto aquele joão-de-barro, que viveu há mais de dez anos, quanto este, que ora nasce, têm a mesma natureza, não se distinguindo um do outro rigorosamente: não possuem individualidade (ou distinção formal), mas são simples e semelhantes amostras de uma mesma espécie. Ter as condições para gerar seus filhotes, por exemplo, não lhes é problema, posto que a natureza (neles) já os move igualmente na construção de seus ninhos, em nada diferentes uns dos outros. Sem que percebam, a natureza lhes determina em todos os seus atos, conformando-os entre si e com as demais espécies. Cada parte constitutiva da natureza parece assim estar totalmente integrada às suas demais partes. Toda a multiplicidade em movimento expressa-se, enfim, como uma unidade coesa e ordeira (como um verdadeiro sistema).

De tal coesão, todavia, cada ser humano parece estranhamente escapar em notória medida. Falta-lhe muitos dos instintos animais, embora seja ele qualificado como um animal. Indubitavelmente, não teria ele, por esta ausência, sobrevivido por longo tempo. Contudo, algo nele se desenvolveu para mais do que compensar-lhe tal falta, algo que chamamos genericamente de razão. É certamente ele um animal, mas um animal sui generis: um zoon logikon, como bem expressou, já na antigüidade ocidental, o pensador grego Aristóteles. Esta diferença o faz paradoxal quanto ao que afirmamos acima acerca dos demais elementos constitutivos da natureza, pois ao mesmo tempo em que o homem a esta pertence e dela depende, dela tem a capacidade de transcender-se a si mesma. Estranhamente, o homem é a parte da natureza que dela se afasta, reconhecendo-a, assim, como se fosse alguma coisa outra; por ele, a natureza como que verdadeiramente se desdobra, torna-se para si, consciência de si. Nisto pode resumir-se todos os mistérios da vida, pois somente por tal acontecimento tudo tornou-se passível de crítica ou problematização. Desta maneira, ocorreu o rompimento da original unidade da natureza.

Recuperar a unidade original da natureza tornou-se o desafio de sobrevivência ao próprio homem. Sem instintos que lhe conformassem satisfatoriamente ao seu meio, tudo imediatamente aparecia-lhe caótico e arbitrário, o que sobre ele retroagia sob a forma do sentimento de insegurança. Sem reconhecer instintivamente o devido lugar de cada coisa, não podia também o homem posicionar-se adequadamente a si próprio na natureza. Logo, apesar de tudo imediatamente lhe parecer arbitrário num mundo em incessante mudança, começou, pouco a pouco, a reconhecer sutis constâncias nos próprios movimentos, como, por exemplo, nas estações climáticas, vegetativas e de migração de alguns animais, reconhecimento decisivo para que ele pudesse imaginá-lo estendido a tudo o mais, numa feliz recuperação da unidade coesa e ordeira de todas as coisas. Tal necessidade de se considerar a imutabilidade ou uma constante por detrás de todo movimento aparente foi muito claramente denunciada por outro filósofo da antigüidade clássica grega, chamado Platão: se toda a multiplicidade com a qual nos deparamos estiver em completa mudança, toda possibilidade de conhecimento humano do mundo estará inevitavelmente fadada ao fracasso, pois tão logo venhamos a dizer o que alguma coisa é, ela já se terá tornado outra coisa. Concluiu, portanto, ele, que o mutável jamais poderia ser conhecido por si mesmo, senão somente e tão-somente por outra coisa que fosse permanente e do qual cada coisa da realidade mutável não passasse de simples reflexo possível dentre outros mais. Enfim, toda aparente multiplicidade que compõe o mundo em movimento poderia ser reduzida a uma unidade imutável ou sistema perfeitamente acabado. Desde antes de Socrátes, como em pensadores denominados “físicos” ou “fisiólogos”, o discurso racional ou filosófico tem, fundamentalmente, esta pretensão: alcançar e dizer, a partir dessa unidade-causal (arqué) – portanto primeira na hierarquia dos seres –, todos os seus diversos efeitos que constituem a realidade ou natureza (physis). Obviamente, desde os pensadores sofistas e de Sócrates, também o mundo humano, a psiqué e a cultura, fazem parte dessa realidade totalizante, o existente ou o Ser. Todos os sociólogos, por exemplo, confessamente ou não, trabalham com um modelo ou sistema de realidade social: Émile Durkheim indiscutivelmente; Max Weber, através de seus quadros tipológicos ideais; Karl Marx, ao adotar o materialismo histórico e dialético, o que lhe permitiu prever a necessária derrocada, mais cedo ou mais tarde, do atual modo de produção capitalista. Como as inumeráveis seqüências de movimentos possíveis num jogo de xadrez, por exemplo, podem ser dominadas por todo aquele que bem conhece as suas limitadas regras e peças ou como toda a infinita realidade material pode ser reduzida a uns poucos elementos que perfilam a tabela periódica físico-química e suas finitas combinações numéricas, sempre dependerá o conhecimento humano da construção desses “microcosmos mentais ou ideais” para dominar o “macrocosmos” no qual se insere, antecipando os acontecimentos ao antevê-los logicamente, isto é, em conformidade com os seus modelos teóricos.

Teorias” são assim esses modelos ou “microcosmos mentais ou ideais”. Etimologicamente, significam “ver” ou “contemplar”, mas não com os olhos do corpo, que só nos fornecem a multiplicidade instável e caótica das particularidades do mundo, mas com os olhos do espírito ou da mente (eidos, de onde vem o termo “idéia”), que nos podem fornecer, por sua vez, a unidade imutável de conceitos (universais e necessários), isto é, imperativos ontem, hoje e sempre (a crença de que o futuro há de se dar tal e qual o passado, segundo denunciou-nos David Hume).

Seguramente, só conhecemos a partir desses “modelos” que se querem perfeitos e que trazemos previamente conosco (“pré-conceitos” – na sua acepção não pejorativa), à luz dos quais organizamos as nossas experiências do mundo, ajuizando-nos sobre elas (dizendo se isto é ou não é aquilo, se aquilo é ou não é esse outro ainda e, assim, sucessivamente, interligando as diversas particularidades de nossas sensações e percepções numa unidade compreensiva). Daí também toda as expectativas que em nós alimentamos. É, pois, um equívoco considerar que o conhecimento implica num sujeito tabula rasa, completamente neutro e imparcial. Toda experiência primeira de uma dada realidade vem-nos como caos, ou seja, apenas fornece-nos o problema de nossas pesquisas, mas não a sua solução – pois não se adequam prontamente aos nossos atuais esquemas mentais. E, para a surpresa de muitos, urge destacar que até pensadores como Auguste Comte, que muitos reconhecem como o pai da corrente teórica à qual comumente se atribui a pretensão de um sujeito do conhecimento tabula rasa – o positivismo –, não admitem sequer qualquer tipo de experiência àquele que já não trás consigo qualquer tipo de concepção de mundo ou cosmovisão:

Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os fatos que repousam sobre os fatos observados. Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for aplicada, como convém, ao espírito viril de nossa inteligência, Mas, reportando-se à formação de nossos conhecimentos, não é mesmos certo que o espírito humano, em seu estado primitivo, não podia nem devia pensar assim. Pois, se de um lado toda teoria positiva deve necessariamente fundar-se sobre observações, é igualmente perceptível, de outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito precisa de uma teoria qualquer. Se, contemplando os fenômenos, não os vinculássemos de imediato a algum princípio, não apenas nos seria impossível combinar essas observações isoladas e, por conseguinte, tirar daí algum fruto, mas seríamos inteiramente incapazes de retê-los; no mais das vezes, os fatos passariam despercebidos aos nossos olhos. (COMTE, 1988: 5).

Obviamente que tal concepção de realidade, que antecede a toda experiência, não possui o selo da cientificidade, também segundo Comte, mas advém de concepções puramente imaginárias (como as “teologias” e as “metafísicas”), que desprezam, por princípio, a experiência do mundo no qual estamos; advém do que hodiernamente chamamos, em síntese, de senso comum. Daí a contribuição deste dentro do processo científico: a solução dos problemas que a experiência primeira de uma dada realidade nos trás é sugerida pela imaginação humana socialmente cristalizada, ou seja, pelo senso comum, sob a forma de hipóteses (de micro-sistemas ideais), que suspeita-se poderem dar conta de organizar o “caos primitivo”, transformando-o em cosmos (complexo inteligível). Ora, mas nem tudo o que é imaginado corresponde à realidade. Por isso, a necessidade de confrontar as hipóteses com a experimentação. Experimentação implica em experiências sistematizadas e controladas segundo o problema delimitado. E é isto o que o processo científico faz, distinguindo-se, desta maneira, das outras formas de compreensão e expressão de mundo e inclusive do senso comum.

Contra a possibilidade de um conhecimento totalmente a posteriori, Immanuel Kant escreveu que “o conhecimento começa com a experiência [definição do problema], mas nem todo ele advém da experiência”. E, mais atualmente, Karl Popper insistiu na ausência de solidez lógica da pura inferência indutiva, posto que a passagem da observação de um número sempre limitado de casos particulares (ainda que elevadíssimo e sem exceções) a uma conclusão universal é impossível dentro dos limites da pura experiência: como é possível que da observação de alguns casos particulares, podemos afirmar todos? Uma vez que se considera a impossibilidade deste todos, que tem por característica a universalidade e a necessidade (a imutabilidade no tempo e no espaço), advir da experiência do mundo, torna-se forçoso admiti-lo como fruto de uma capacidade a priori do ser humano, de sua razão.

Para uma melhor visualização destas últimas considerações, podemos apresentar o seguinte esquema do processo científico em geral, sem nos esquecer, todavia, que todo esquema ou generalidade somente cumpre suas finalidades em momentos bastante precisos, quando se quer e se sabe que se quer, por ora, abstrair-se das características distintivas do que se está em questão.

(I)
Experiência
(II)
Hipóteses
(III)
Declinação lógica das consequências particulares de cada hipótese
(IV)
Experimentação
(V)
Comparação de III e IV
(VI)
Teoria

(I)
A experiência primeira de uma dada realidade, como acima já dissemos, coloca-nos problemas, mas não a solução das mesmas. Todavia, a definição do problema do qual se tem a experiência, já pressupõe uma visão de mundo. Além de Comte, também Weber assim considera, afirmando que a delimitação do problema que se escolhe pesquisar dá-se em conformidade com os nossos prévios valores.

(II)
As hipóteses são tentativas de resolução do problema posto. Tem por característica a generalidade: todo e qualquer problema de mesmo tipo deverá ser solucionado do mesmo modo. Portanto, elas já expressam o princípio universal de todo conhecimento, que lhe assegura a capacidade de previsibilidade. Se partimos, por exemplo, do princípio particular de que alguns homens são mortais, não podemos garantir daí que o leitor, embora homem, também seja mortal. Isto somente há de se dar partindo-se do princípio universal de que todos os homens são mortais. Todavia, não obstante assim consideremos, tal universalidade não pode-se considerar advinda da experiência, visto que esta só nos fornece a intuição sensível de alguns homens e não de todos, como outrora insistimos. É, portanto, por princípio, uma construção da nossa imaginação.

(III)
De cada hipótese deve-se desdobrar todas as suas conseqüências lógicas: se é X (primeira hipótese), como imaginamos, então tem-se y, t, s, w e z, pois estes são efeitos necessários daquele; se é R (segunda hipótese), como também se imagina, então tem-se y, k, w, o e z; se é...

(IV)
A experimentação importa num rigor que, indiscutivelmente, as nossas experiências cotidianas não têm. Nela, só as experiências que possam falsificar as hipóteses levantadas têm relevância. Não comporta, então, interesses empíricos alheios ao problema que se delimitou.

(V)
A comparação entre os efeitos particulares necessariamente declinados de cada hipótese e os resultados particulares colhidos na experimentação definirá a credibilidade de cada uma das hipóteses sugeridas e, evidentemente, aquela que mais coincidências apresentou entre suas conseqüências lógicas particulares e os dados afins sistematicamente observados abandonará a sua então condição de mera hipótese dentre outras mais para figurar-se como tese ou teoria.

(VI)
A sustentabilidade de uma teoria só se esgota através do surgimento de uma ulterior hipótese que apresente um poder de antecipação ou previsão dos mesmos movimentos que os seus e de outro(s) mais ou ainda de uma que, apresentando menor complexidade, garanta uma capacidade de antecipação dos seus mesmos acontecimentos (segundo o princípio medieval denominado “navalha de Ockam”: entre duas teorias de igual poder de reconstituição de um mesmo fenômeno, deve-se optar pela mais simples).

Podemos dizer que existem, basicamente, três tipos de pesquisa: a bibliográfica (ou “estritamente teórica”), a de campo e a de laboratório (experimental). Este último interessa muito pouco a nós das Ciências Humanas. No entanto, podemos subdividir o segundo em estudo teórico-empírico e estudo de caso.

COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. Tradução de José Arthur Giannotti. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de José Serras Pereira. Lisboa: Relógio d´Água, 1993.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Boeira e Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.