Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





26 de nov. de 2020

VÍDEO III: A Dialética Hegeliana.

 Rodrigo Rodrigues Alvim


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3 de nov. de 2020

VÍDEO II: Protágoras de Abdera e Górgias de Leontinos.

 

Rodrigo Rodrigues Alvim

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29 de out. de 2020

TEXTO XXXIX: Algumas Palavras sobre a Ética Kantiana.

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tratamos em outro texto (1) do pensamento de Immanuel Kant em relação à ciência. Segundo as razões apresentadas pela filosofia kantiana, a ciência seria o único modo de compreensão e expressão de mundo que poderia ser adequadamente denominado “conhecimento”. Isto seria o mesmo que dizer que tratamos de uma de duas de suas obras de maior referência ainda hoje, intitulada Crítica da Razão Pura, na qual Kant define a capacidade racional humana, cujos limites estabelecem o que humanamente podemos conhecer (cientificamente) e o que, estando para além das fronteiras dessa nossa capacidade racional, não podemos conhecer. Toda essa reflexão kantiana acontece, obviamente, em seu diálogo indireto com as principais considerações epistemológicas de seu contexto, da cultura europeia moderna, expressas sumamente por quatro vertentes, o intelectualismo, o empirismo, o fideísmo e o ceticismo, das quais também já tratamos em outro texto (2). Disso resultou a posição epistemológica paradigmática à transição da modernidade para a contemporaneidade filosófica europeia, a qual comumente denominamos “criticismo”, que assim pautará as dedicações das filosofias mais marcantes do início deste período histórico ao qual ainda dizemo-nos pertencer.


02. A Crítica da Razão Pura defendeu ao seu modo a tese do filósofo David Hume quanto à impossibilidade de um conhecimento da natureza pretensamente metafísico, insistindo Kant, pois, que todo conhecimento começa com a experiência do mundo, precondição da “nova” ciência, da ciência moderna a que as obras “físicas” de Galileu-Galilei e Isaac Newton estavam filiadas. Pela dialética das formas da sensibilidade e das categorias do entendimento humanas aplicada à matéria da experiência, temos para nós um mundo onde tudo acontece em arranjo necessário, expressas em leis científicas. No contexto desse “reino da necessidade”, onde as coisas só podem assim ser, a ciência é imperatriz e resultado de uma razão que reconhece os seus próprios limites, daí concluindo que muito se pode conhecer, mas não o que possa se encontrar para além desses seus limites, como a metafísica historicamente se aventurou em temas como a existência de Deus, a liberdade da alma humana, o mundo em sua inteireza.

03. Nem tudo, todavia, termina aí para Kant, o que nos revela aquela segunda obra que, com a Crítica da Razão Pura, garantiu fama ao seu autor, obra que recebeu o título de Crítica da Razão Prática.


04. A história da filosofia foi vivamente movida por atenção a dois horizontes: pelo horizonte concernente ao conhecimento humano (e verdadeiro) acerca do mundo e pelo horizonte concernente ao agir humano (e virtuoso) no mundo. Para Kant, é a ciência que adequadamente realiza o primeiro, sendo a ética a realização do segundo. Se a ciência cuida do conhecimento do “reino da necessidade”, conforme ao que no mundo é ou pode ser, a ética nos reporta à ação humana no “reino da liberdade”, conforme ao que deve ser. Se no primeiro reino o homem se submete à experiência do mundo – o que faz da ciência obrigatoriamente “antimetafísica”, no segundo reino o homem decide sem levar em conta o que o mundo possa lhe oferecer, o que, neste sentido, faz da ética uma manifestação “metafísica”. 

05. Compreendamos isso melhor, mas já tomando por certa a nossa compreensão da concepção dessa ciência “antimetafísica” em Kant, pelo que, já dito, tratamos em outro lugar, de maneira que agora ficamos tão-só disponíveis à abordagem ética.

06. Como a responsabilidade da ação humana só pode ser atribuída ao sujeito da ação enquanto sujeito livre, Kant não permite uma associação da ética à “heteronomia” ou, em outras palavras, da decisão do agir por uma adesão a uma norma ou regra originalmente estranha ao sujeito da ação e, neste sentido, “mundana”. A determinação da ação do sujeito deve se dar a partir da consciência que ele é e a partir da qual ele, portanto, responde ao que o contexto lhe coloca. Então, Kant propõe uma decisão que acontece no mundo em que o humano se insere, mas que não se impõe pelo mundo ao humano. A responsabilidade e virtuose éticas evocam “autonomia” do sujeito. Veremos, contudo, que esta decisão subjetiva não é relativa ou arbitrária, porém, muito pelo contrário, é ela, por princípio, universal, pois radica na consciência de todo e qualquer ser humano, uma vez que, para Kant, como igualmente presente em sua epistemologia, o que nos faz especificamente humanos é compartilharmos de uma mesma estrutura psíquica ou mental, uma consciência ou razão que Kant chama de “transcendental”, de tal modo que todas as particularidades são, para ele, aquisições posteriores que, aqui, não devem ser levadas em conta. Essas aquisições “a posteriori” são de interesse de uma antropologia empírica (que hoje denominaríamos predominantemente de cultural). À antropologia “transcendental” kantiana, somente aquela estrutura formal e inata em todo e qualquer ser humano importa na garantia de uma instância que seja, por consequência, universal ao humano e universalizante do humano.

07. Observa-se, então, que Kant, em sua obra ética Crítica da Razão Prática retorna à sua concepção do sujeito transcendental, cuja estrutura não se define pelos contextos acidentais vividos por cada ser humano, mas por aquilo que ele é aprioristicamente, como que antes de toda e qualquer experiência sua no mundo ou contextualização particular. Para Kant, o sujeito transcendental é constituído do que ele denominou “imperativos categóricos”, de mandatos de ação presentes em toda consciência humana e que se fazem ouvir no sujeito que, estando no mundo, tem que tomar decisões em conformidade com essa sua própria consciência transcendental, incondicional, garantindo-lhe, assim, a sua liberdade, responsabilidade e decisão eticamente adequada. Escreve Kant:

“Proposições fundamentais práticas são proposições que contêm uma determinação universal da vontade, « determinação » que tem sob si diversas regras práticas. Essas proposições são subjetivas ou máximas, se a condição for considerada pelo sujeito como válida somente para a vontade dele; mas elas são objetivas ou leis práticas, se a condição for conhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ente racional.” (3).

08. Esses “imperativos categóricos” que devem nos nortear a todos e não somente a alguns e em determinadas situações são diferentes dos “imperativos hipotéticos”, pois enquanto estes últimos visam a determinados fins no mundo, sendo a sua fórmula “se (queres) X, então (faças) Y”, aqueles primeiros não estabelecem propriamente finalidades ou, na insistência de se manter tais termos, só se poderia dizer que eles têm fins em si mesmos, na própria consciência transcendental dos quais são constitutivos, na humanidade, jamais admitindo o próprio humano como meio, sendo a sua fórmula simplesmente “(deves) W”, quando, pois, à possível pergunta “mas, por que devo?”, não se tem resposta em outra coisa, senão nele mesmo: devo porque devo.

09. Quem, pois, assim não decide, porém decide pelo que o mundo, o seu contexto, possa naquele momento lhe impor como determinação de sua ação, torna-se escravo do mundo, não é livre, é “heterônomo” e se põe tutelado ao mundo, à experiência do mundo, como se assim não houvesse ainda saído de uma menoridade moral. Eis, para Kant, a lei fundamental da razão prática pura:

“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal.” (4).


10. Como palavras finais, deixo as palavras finais do próprio Kant em sua obra Crítica da Razão Prática, num paralelo breve do que tratou nesta obra (a ética) e o que tratou na Crítica da Razão Pura (a ciência):

“Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas; o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. Não me cabe procurar e simplesmente presumir ambas como envoltas em obscuridade, ou no transcendente além de meu horizonte; vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a consciência de minha existência. A primeira começa no lugar que ocupo no mundo sensorial externo e estende a conexão, em que me encontro, ao imensamente grande com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, além disso, ainda a tempos ilimitados de seu movimento periódico, seu início e duração. A segunda começa em meu si-mesmo [Selbst] invisível, em minha personalidade, e expõe-se em um mundo que tem verdadeira infinitude, mas que é acessível somente ao entendimento e com o qual (mas deste modo também ao mesmo tempo com todos aqueles mundos visíveis) reconheço-me, não como lá, em ligação meramente contingente, mas em conexão universal e necessária. O primeiro espetáculo de uma inumerável quantidade de mundos como que aniquila minha importância enquanto criatura animal, que tem de devolver novamente ao planeta (um simples ponto no universo) a matéria da qual ela se formara, depois que fora por um curto espaço de tempo (não se sabe como) dotada de força vital. O segundo espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente meu valor enquanto inteligência, mediante minha personalidade, na qual a lei moral revela-me uma vida independente da animalidade e mesmo de todo o mundo sensorial, pelo menos o quanto se deixa depreender da determinação conforme a fins de minha existência por essa lei, que não está circunscrita a condições e limites dessa vida mas penetra o infinito.”

“No entanto, admiração e respeito podem, em verdade, estimular a investigação, mas não substituir a sua falta. Que é que se precisa, pois, fazer para pôr em marcha esta investigação de modo útil e adequado à sublimidade do objeto? Exemplos podem servir aqui de advertência, mas também para a imitação. A contemplação do mundo começou do mais grandioso espetáculo que só os sentidos humanos podem sempre oferecer e que só o nosso entendimento, em sua vasta abrangência, pode sempre suportar perseguir, e terminou – na astrologia. A moral começou na mais nobre propriedade da natureza humana, cujo desenvolvimento e cultura voltam-se a uma utilidade infinita, e terminou – no fanatismo [Schwärmerei] ou na superstição. Assim se passa com todas as tentativas ainda rudes, nas quais a parte mais nobre do ofício depende do uso da razão, que não se verifica por si mesmo, como o uso dos pés, pelo exercício frequente, principalmente se ele concerne a propriedades que não podem apresentar-se tão imediatamente na experiência comum. Mas depois que, embora tardiamente, entrou em voga a máxima de examinar antes bem todos os passos que a razão se propõe dar, e de não a deixar seguir o seu curso de outro modo que na linha de um método bem refletido o ajuizamento do sistema do universo tomou uma direção totalmente diversa e, com essa, ao mesmo tempo uma saída incomparavelmente mais feliz. A queda de uma pedra, o movimento de uma funda, resolvidos em seus elementos e nas forças que neles se mostram e elaborados matematicamente, produziram enfim na estrutura do mundo aquela perspiciência clara e imutável para todo o futuro, que pela observação continuada só pode esperar ampliar-se sempre, mas jamais deve temer que tenha de voltar atrás. 

“Aquele exemplo pode aconselhar-nos a encetar agora este caminho no tratamento das disposições morais de nossa natureza e dar-nos esperança de um bom êxito semelhante. Pois temos à mão os exemplos da razão que julga moralmente. Ora, analisando-os em seus conceitos elementares, propondo-se – mediante repetidos ensaios sobre o entendimento comum – na falta da Matemática, um procedimento, contudo, semelhante à Química, de separar o empírico do racional suscetível de encontrar-se neles, podem ambos os elementos ser com certeza reconhecidos por nós em sua pureza e o que cada um possa por si só realizar. Deste modo pode em parte evitar-se a desorientação de um ajuizamento ainda rude e pouco exercitado e, em parte (o que é de longe mais necessário), as extravagâncias do gênio, pelas quais, como sói acontecer com os adeptos da pedra da sabedoria, sem nenhuma investigação metódica e nenhum conhecimento da natureza são prometidos tesouros sonhados e são dissipados tesouros verdadeiros. Em uma palavra, a ciência (buscada criticamente e introduzida metodicamente) é a porta estreita que conduz à doutrina da sabedoria, se por esta não se entender simplesmente o que se deve fazer, mas o que deve servir de norma a mestres para aplanar bem e demarcadamente o caminho da sabedoria, que cada qual deve seguir, e proteger a outros de caminhos falsos; uma ciência cuja guardiã tem que permanecer sempre a Filosofia, em cuja investigação sutil o público não tem de tomar nenhuma parte, mas certamente nas doutrinas, que após uma tal elaboração podem tornar-se pela primeira vez verdadeiramente claras a ele.” (5).
___________________________ 

(1) “Immanuel Kant e a ciência”. 
(2) “Traços da filosofia moderno” 
(3) KANT, Immanuel. Crítica a razão prática. Tradução, introdução e notas de Valerio Rohden. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. p. 31-32. 
(4) Idem. p. 51. 
(5) Idem. p. 255-258.

5 de out. de 2020

VÍDEO I: Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia.


Rodrigo Rodrigues Alvim

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11 de nov. de 2016

TEXTO XXXVIII: Immanuel Kant e a Ciência


Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Não obstante houvesse, no início da modernidade, diferentes filósofos em disputa quanto à instância de garantia última do conhecimento, sobressaindo, de um lado, os racionalistas e, por outro, os empiristas, já, no século XVIII, os pensadores denominados iluministas tenderam a considerar o conhecimento como uma conciliação dessas duas capacidades humanas: de razão e de experiência.


02. A sistematização oferecida por Immanuel Kant à tese de que o conhecimento (ciência) é resultado do esforço conjunto das atividades racionais e empíricas marcou a filosofia, senão toda a cultura ocidental, sendo, para alguns, um divisor de águas entre a modernidade e a contemporaneidade. De fato, foi um pensamento que permitiu nascer um novo cenário na filosofia, promovido, por sua vez, por filósofos de grande envergadura, como aqueles que elencam o movimento denominado Idealismo Alemão e que, como já se observa nessa expressão, coloca definitivamente os germânicos no rol dos grandes pensadores ocidentais.

03. Lia-se, no contexto de Kant, respeitáveis filósofos em defesa da fundamentação empírica na elaboração do conhecimento, capaz de não deixar com que este terminasse em vãs especulações, tal qual já avaliavam muitas das chamadas “querelas medievais”, que pressupunham as mais fantasiosas entidades etéreas para justificar uma proposição por uma prévia ideia geral do mundo. Destacamos aqui, para exemplificar o empirismo, a obra Ensaios sobre o conhecimento humano, de John Locke, que recupera a tese aristotélica de que “nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos”, ou seja, sem os dados sensoriais, sem a experiência do mundo, a razão humana é uma “tabula rasa” (uma tábua lisa), literalmente sem qualquer marca ou expressão, um papel em branco, um vazio, simplesmente inexistente.

04. Havia, no extremo oposto, contudo, obras de filósofos que defendiam que os dados instáveis e até mesmo contraditórios fornecidos pelos sentidos humanos acerca do mundo não são capazes de justificar as certezas que a ciência considera possuir. Tais certezas – sugerem – são, de algum modo, fornecidas pelo próprio pensamento humano ao pensá-las. Como contraponto ao empirismo, podemos destacar a obra, de Gottfried Wilhelm Leibniz, Novos ensaios sobre o conhecimento humano, na qual esse autor repete Locke, no sentido de que “nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos”, mas acrescenta, em seguida, “a não ser o próprio intelecto”. Este adendo firma a posição racionalista de Leibniz: o intelecto humano, antes de toda e qualquer experiência, não é uma “tabula rasa” ou um vazio como presumiam os empiristas. Porque humano, tal intelecto devia ser algo precisamente determinado ao modo de um intelecto humano, de tal maneira que o dado empírico é compreendido à luz dessa predeterminação ao modo, para Leibniz, de “ideias virtuais”.

05. Nesse contexto, provocado sobretudo pela obra de um empirista escocês chamado David Hume, que, ao combater quaisquer pressupostos metafísicos dos racionalistas, depara-se com o ceticismo, Kant propõe examinar se há razão humana antes de toda e qualquer experiência do mundo. Assim, importa a Kant que a razão se esforce, antes de atuar criticamente sobre os dados de experiência das coisas, para tomar-se a si mesma como alvo primeiro de sua própria crítica. Essa descentralização ou deslocamento, que vai do exercício do pensamento humano sobre as coisas para o ato do pensamento pensar a si próprio, Kant o compara à Revolução Copernicana que descentralizou a Terra e colocou o Sol como eixo do Cosmos. E é precisamente essa “Revolução Copernicana Kantiana” que justificará o título da mais famosa obra de Kant, Crítica da razão pura, entendendo que crítica é justamente prerrogativa da razão. Enfim, esta razão se torna centro de seu interesse, quanto àquilo que ela é necessariamente e independente, pois, de tudo mais que se lhe possa agregar, tratando-se, dessa forma, da razão “pura”, “a priori” ou, como preferirá Kant dizer, “transcendental”.

06. Se, como disse Kant, foi Hume que o despertou do sono do dogmatismo, o que se seguiu foi a tese kantiana contra Hume, de que a rotina sobre as coisas que consideramos assim conhecer não é condicionada por nossos hábitos adquiridos de repetidas experiências e projetadas, sob a forma de crença e expectativa, em relação às coisas e aos acontecimentos por vir, mas é-nos assegurada, isto sim, por determinações originalmente constitutivas do que denominamos “razão” – formas e categorias “a priori”. O esforço de Kant é, portanto, como que esvaziar a razão de tudo o que lhe é estranho e que ela absorveu da experiência das coisas do mundo, para, por fim, avaliar o que restou e do qual não é possível se desfazer, sem que igualmente a razão se desfaça de si mesma. O que assim soçobra é acidental à razão, restando-lhe apenas o que lhe é constitutivo. Porém, o que lhe é constitutivo, sem mais, só pode ser pensado, mas não propriamente conhecido, conforme diz-nos Kant, porque o conhecimento exige, além dessa forma racional apriorística, a matéria da experiência, na qual aquela possa se aplicar e moldar. Curiosamente, Kant responde metafisicamente a impossibilidade de um conhecimento ou ciência metafísica, ou seja, que despreze a experiência do mundo, mas também considera inaceitável a defesa de um conhecimento ou ciência que se constitua de experiências que se arranjem por si sós e que se depositem num receptáculo mental humano completamente passivo e inoperante. Escreveu ele, ao dar a público a sua Crítica da razão pura: “O conhecimento começa com a experiência, mas nem todo ele advém da experiência.”

07. Desse modo compreendido, percebe-se que Kant elaborou uma teoria do conhecimento efetivamente incapaz de dissociar o sujeito epistêmico da coisa que pretende conhecer. O resultado dessa relação, para ele, é o conhecimento de um objeto. Em outros termos, o que se conhece é o que a coisa é ao modo das predeterminações ou constituição inata do que denominamos capacidade racional do ser humano. Não é, por conseguinte, a compreensão da coisa em si mesma (“noumenon”), porém daquilo que a coisa é para nós (“fe-noumenon”). Claramente, para Kant, o que tomamos por mundo é representação humana. Entretanto, não é representação qualquer, mas assentada, de um lado, em formas e categorias precisas da mente humana e, por outro lado, na coisa tal e qual. Nada além disso, de maneira que Kant condena qualquer elemento passional ou tendência emotiva entre esses extremos e capaz de variar e comprometer a objetividade. Assim, outra curiosidade no pensamento kantiano: o conhecimento é humano, é subjetivo, não impossibilitando, contudo, vencer o relativismo epistemológico; ao contrário, porque somos detentores de mesma capacidade racional, formalmente, e enquanto estamos diante das mesmas coisas, sem mais, conhecemo-las do mesmo modo.

08. O aparato racional inato que garante o mesmo “modus operandi” no trato das coisas do mundo, permitindo, assim, conhecê-las à maneira humana, é constituído por duas capacidades em nós: a faculdade de sensibilidade e a faculdade de entendimento.

09. Para Kant, as coisas sensíveis se dispõem, se organizam, se arranjam primeiramente (por nós, em nós e para nós) por duas formas que nos são “a priori”: o espaço e o tempo. Logo, contra o senso comum, a filosofia kantiana sustenta que espaço e tempo talvez não sejam nada independentemente de nós ou fora de nós. Não são, pois, possivelmente, propriedades ou predicados do mundo, mas são, certamente, formas pelas quais temos a sensação assim mesmo como nos ocorre: todo sensível se distribui no espaço e no tempo. Tal defesa não afronta apenas o senso vulgar, mas afronta igualmente a respeitada física moderna newtoniana, mesmo que seja esta última uma grande inspiradora do Iluminismo, movimento intelectual do qual Kant faz parte: se Isaac Newton considerou espaço e tempo como atributos universais da natureza (“physis”), Kant confirma tal universalidade, mas substituindo, paradoxalmente, seu estatuto físico por um estatuto psíquico, como homens que, possuidores de retinas róseas, sem que o saibam, apreendem um mundo rosado e sempre rosado, como rosado fosse todo o mundo.

10. Se as coisas nos são assim sensíveis (âmbito que Kant denominará “estética”), o que já implica alguma maneira humana de composição, sobre elas podem atuar as categorias ou conceitos, também “a priori”, da faculdade do entendimento humano (âmbito que, por seu turno, Kant chamará de “analítica”). São 12 (doze) essas categorias, que podem ser resumidas em 4 (quatro):

I
QUANTIDADE
II
QUALIDADE
III
RELAÇÃO
IV
MODO

1) Totalidade
2) Pluralidade
3) Unidade
1) Realidade
2) Negação
3) Limitação
1) Substância
2) Causalidade
3) Reciprocidade
1) Possibilidade
2) Existência
3) Necessidade

11. Entendemos as coisas (damo-las-nos) segundo tais categorias – o que não quer dizer que são tais coisas em si mesmas assim como nós as entendemos. Por isso, ajuizamos sobre as coisas segundo essas categorias, o que nos permite sobrepor-lhes o seguinte quadro de juízos:

1) Universais
2) Particulares
3) Singular
1) Afirmativos
2) Negativos
3) Indefinidos
1) Categóricos
2) Hipotéticos
3) Disjuntivos
1) Problemáticos
2) Assertóricos
3) Apodíticos

12. Exemplificando cada juízo:

1) Todo X é Y
2) Algum X é Y
3) Este X é Y
1) X é Y
2) X não é Y
3) X é não-Y
1) X é Y
2) Se X é Y e Y é Z, então X é Z
3) X é Y ou X é Z
1) É possível que X é Y
2) De fato, X é Y
3) Necessariamente, X é Y

13. Isto responde, ao modo kantiano, à pergunta de David Hume de como podemos considerar conexões habituais (advindas das simples experiências corriqueiras e afins, mas contingentes) como conexões necessárias, o que para Hume é logicamente impossível, ilusório e sustentado na precariedade psicológica do costume e da crença de que o futuro dar-se-á tal e qual o passado. Contudo, para compreendermos melhor isso, precisamos recuperar as considerações que preliminarmente Kant faz acerca dos juízos.

14. Segundo a tradição, que Kant adota, há juízos acerca das coisas que são “analíticos” ou “sintéticos”, bem como “a priori” ou “a posteriori”.

15. Se ajuízo que “o corpo é extenso”, realizo um juízo analítico, pois, ao analisar o que faz de um corpo exatamente corpo, entendo que é tudo aquilo que necessariamente o constitui ou tudo aquilo sem o que o corpo deixa de ser o que é: corpo! Ora, ao enumerar esses predicados essenciais a todo e qualquer corpo, vejo ali a “extensão”. Não há como pensar corpo que já não seja algo extenso e de tal maneira que consideramos que todo corpo ocupa um lugar no espaço. Logo, caso eu ouça alguém gritando “olha, um corpo”, sei que este corpo, embora dele eu não tenha experiência, é obrigatoriamente algo extenso ou, do contrário, não é um corpo. Daí que tal predicado não é um acidente ao corpo, mas um atributo do corpo em geral, universal. Podemos, então, ousar dizer não somente que “o corpo é extenso”, mas que “todo corpo é extenso”, os já dados à nossa sensação ou não. Por isso mesmo, todo juízo analítico é também “a priori”, quero dizer, pode ser considerado antes que dele se tenha experiência, como acabamos de fazer no exemplo dado. Trata-se de um juízo estritamente conceitual, racional.

16. Se ajuízo que “o corpo é móvel”, realizo um juízo sintético, pois, ao analisar o que faz de um corpo exatamente corpo, entendo que é tudo aquilo que necessariamente o constitui ou tudo aquilo sem o que o corpo deixa de ser o que é: corpo! Ora, ao enumerar esses predicados essenciais a todo e qualquer corpo, não vejo ali a “mobilidade”. Há como pensar corpo que seja algo “móvel” ou “não móvel”. Logo, caso eu ouça alguém gritando “olha, um corpo”, não sei dizer, sem a experiência do mesmo, se ele está em movimento ou não. Daí o predicado “móvel” (poderia se “imóvel”) é um acidente ao corpo, um atributo que lhe é acessório, que lhe é associado ou sintetizado contingentemente. Por isso mesmo, todo juízo sintético é também “a posteriori”, quero dizer, só posso considerá-lo após dele ter experiência. Trata-se de um juízo imediato e sensível. Neste limite da minha experiência (e acompanhando o exemplo dado), só me cabe dizer que “este corpo é móvel” ou (porque conceitualmente pode deixar de sê-lo ou de outro corpo não o ser) que “algum (ou pelo menos um) corpo é móvel”.

17. Daí, podemos sumamente dizer que para a tradição filosófica havia dois tipos de juízos: os juízos analíticos “a priori” e os juízos sintéticos “a posteriori”. Isso fez com que, por suas características opostas, duas vertentes de pensamento se digladiassem, respectivamente: o racionalismo e o empirismo.

18. Os juízos analíticos “a priori” apresentavam a vantagem de serem enunciados indiscutíveis, donde um René Descartes pudesse, então, pretender erguer o edifício da ciência logicamente rigorosa. Todavia, esses juízos foram acusados de ter a sua certeza calcada numa espécie de redundância, como a tautologia A = A, o que, se por um lado é evidente, por outro lado é praticamente inútil, sendo geralmente chamados de juízos “metafísicos”.

19. Os juízos sintéticos “a posteriori” apresentavam a vantagem do conceito predicado acrescentar algo novo ao conceito sujeito da proposição, o que lhe é assegurado,segundo Francis Bacon, pela experiência do mundo. Porém, o próprio Bacon já compreendia o defeito lógico da indução e que, em tese, produzia prejuízos à garantia técnica no poder de intervenção desse tipo de saber.

20. Foi nesse contexto, pouco promissor, que Kant ousou elaborar uma questão que, se não fosse imediatamente absurda à tradição filosófica, lhe seria de fácil resposta negativa. Perguntou ele sobre a possibilidade de um tipo de juízo que preservasse somente as vantagens de ambos os juízos tradicionais, ao qual chamou de “juízo sintético ‘a priori’”, ou seja, uma proposição pela qual houvesse um incremento do saber (pois, sendo sintético, o conceito predicado acrescentaria algo novo ao conceito sujeito), mas, simultaneamente, este vínculo fosse necessário e não contingente. Surpreendentemente, a resposta que o próprio Kant deu à sua questão não foi negativa. Kant defendeu que há esse tipo de juízo, que é ele o único que se pode fielmente chamar de “conhecimento”, que ele implica uma feliz conciliação de razão e experiência, que é por ele que a ciência moderna se constrói. Por isso mesmo, as teorias científicas se pretendem respaldadas pela experiência do mundo, ao mesmo tempo em que se pretendem universais.

21. Quando dizemos, por exemplo, que “a reta é a menor distância entre dois pontos”, percebemos que o conceito predicado é quantitativo (pois expressa uma medida), mas que o conceito sujeito não é quantitativo, mas qualitativo (tanto que estudamos a reta ao lado de outras ideias como a curva e a quebra – que não se distinguem entre si pelas medidas que têm; aliás, podemos até pensá-las tendo a mesma medida e nem, por isso, são idênticas). Ora, se assim é, então também é inegável que o predicado (quantitativo) acrescenta algo novo ao sujeito (qualitativo). No entanto, tal predicado não é acidental ao sujeito, mas lhe é necessário e universal.

22. Essa novidade, Kant a apresenta como possível, porque, embora possa o homem incrementar o saber através de sua capacidade de experiência do mundo, o modo pelo qual tal material que daí resulta é articulado são segundo as formas e as categorias inatas a todo homem e as quais chamamos, enfim, de razão humana, conforme elucidamos antes. Para Kant, somente esse produto pode ser denominado “conhecimento”. Escreveu ele, nesse sentido, que “conceitos [categorias] sem intuições [intuições sensíveis, matéria da experiência] são vazios e intuições sem conceitos são cegos”.

23. Essa teoria do conhecimento é, para Kant, um despertar do sono dogmático da filosofia metafísica (avessa à experiência do mundo para a construção de um pensar rigoroso), do qual ele mesmo se disse, certa vez, vítima, mas não deixou de ser também um despertar para os que fossem vítimas de um empirismo ingênuo que partia do pressuposto de que as coisas se arranjavam por si mesmas e se davam como tal a um sujeito do conhecimento que fosse “tabula rasa”. Para Kant, o sujeito cognoscente tem que se desfazer de todos os sentimentos, emoções, paixões e tendências passionais que comprometerão a lisura de sua investigação científica, mas não tem como se desfazer da precondição correspondente ao seu aparato psíquico e racional, constitutivo de todo ser humano (por ser precisamente isso que o faz humano). É esta precondição que Kant chama de “transcendental”.


24. Apesar disso tudo, Kant termina a sua obra Crítica da razão pura inquieto com uma questão que será o fio condutor para a sua Crítica da razão prática. Kant considera a ciência como produto da modernidade, como produto recente da humanidade. Ao contrário, a metafísica é algo à qual a humanidade se dedica há muito mais tempo. Ora, se a metafísica não alcança o estatuto de ciência do mundo (defesa de Kant), qual é o estatuto da metafísica, que a fez produto cultural secular do Ocidente? Oportunamente, podemos tratar dessa questão aqui, dando continuidade a este artigo, que, por ora, pretendeu apenas abordar a teoria do conhecimento do pensamento kantiano. Contudo, é instigante já adiantar que, para Kant, a metafísica não responde aos apelos epistemológicos que temos (e conforme vimos), mas aos nossos apelos éticos, isto é, aos desafios de como devemos nos conduzir na vida.

15 de jun. de 2015

TEXTO XXXVII: Sobre o Pensamento Hegeliano

Rodrigo Rodrigues Alvim


01. Teríamos muito que escrever, a fim de compreender o trânsito da filosofia kantiana para o pensamento elaborado por Georg Wilhelm Friedrich Hegel. No entanto, o desafio é, aqui, ao mesmo tempo, ser breve, algo comumente difícil aos filósofos. Mas é, por isso mesmo, um desafio, do qual não esquivaremos, adiantando as nossas desculpas a quem pretende algo mais pormenorizado.

02. Hegel faz parte de um movimento de pensamento europeu que foi denominado “Idealismo Alemão”, que adveio de um entusiasmo de leitura das obras de Immanuel Kant, já considerado um “divisor de águas” dentro da filosofia ocidental. Ocorreram desdobramentos e posicionamentos filosóficos marcantes nesse período, dentre os quais nos cabe destacar os pensamentos de Johann Gottlieb Fichte e Friedrich Schelling, com os quais Hegel estabeleceu diálogos imprescindíveis para uma mais aprofundada compreensão de sua filosofia.Contudo, nos estreitos limites que antes colocamos, começaremos destacando o que o próprio Kant tinha consciência ser uma revolução: se a tradição filosófica se dedicou à tarefa de tentar dizer racionalmente as coisas, a razão deveria, antes, ter se dedicado à tarefa de dizer-se a si mesma, em sua condição “pura” ou “transcendental”, ou seja, sem qualquer coisa que lhe seja estranha ou distinta, tal como qualquer experiência das coisas que dizemos equivalerem ao mundo. A razão como que se pergunta em seu próprio nascedouro: o que sou , este que pergunta sobre o que é tudo mais? É tal intento que dará nome à sua primeira “crítica”, que é a Crítica da Razão Pura. Noutros termos, o eixo epistemológico deixa de ser a coisa sobre a qual a razão translada, mas a razão que aí mesmo se coloca. Não é mais, portanto, a coisa que se quer conhecer que se impõe a uma razão tabula rasa, mas é a coisa que se conforma às determinações constitutivas da razão a priori. Nesse sentido, Kant exemplifica:

Quando Galileu deixou as suas esferas rolar sobre o plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, ou quando Torricelli deixou o ar carregar um peso de antemão pensado como igual o de urna coluna de água conhecida por ele [...]: assim acendeu-se uma luz para todos os pesquisadores da natureza. Compreenderam que a razão só discerne o que ela mesma produz segundo seu projeto[...].


03. Na relação epistemológica entre o sujeito S (razão), que quer conhecer a coisa C, e a coisa C, que o sujeito S (razão) pretende conhecer, o conhecimento deixa de ser compreendido ao modo aristotélico, como uma “adequação do intelecto (razão,) sujeito S, à coisa C”, para ser compreendido como “uma adequação da coisa C às predeterminações inatas do intelecto, sujeito S”, isto é, às condições constitutivas a priori da razão, o que resulta não no que a coisa C seja em si mesma (noumenon), mas no que a coisa C é para nós (fe-noumenon, fenômeno ou objeto), no modo como ela, a coisa C, nos parece ou aparece. Conhecer o mundo implica a experiência (algo em que os empiristas insistiam), mas tal conhecimento ocorre sempre em nível de representação da razão (algo em que os racionalistas insistiam). Assim, de certa forma, Kant promoveu uma conciliação entre razão e experiência, como propugnavam os pensadores iluministas, o que o levou a escrever que “todo conhecimento começa com a experiência, mas nem todo ele advém da experiência.
  
04. Nesse pano de fundo, evidencia-se que o que se denomina “mundo” é necessariamente “mundo humano”. Essa ênfase incidirá na centralidade da “antropologia transcendental” relativamente a qualquer outro campo de interesse filosófico, inclusive relativamente ao próprio campo epistemológico que a gerou, o que ficará ainda mais claro na Crítica da Razão Prática e também na Crítica do Juízo.

05. Essa autonomia da razão ou da consciência encontrou terreno fértil no contexto da Europa que abrigou os ideais da Revolução Francesa e vivia as suas consequências nos seus demais Estados Nacionais ou principados, quando o tema da liberdade e da igualdade eram temas inevitáveis, também nos círculos filosóficos.


06. Os meandros são complexos, mas Hegel considerava que a razão humana não poderia ser fundamento de sua própria crítica, de tal sorte que, em sua obra, a razão se deslocou do campo antropológico para o campo da ontologia: a Razão Universal, a Unidade da Consciência, o Espírito Absoluto são termos afins que compreendiam a própria razão humana, ultrapassando-a infinitamente, entretanto. Ademais, Hegel afirma-a como atividade e processo, como melhor explicitaremos.

07. Salientar que Hegel participou da transição do classicismo ao romantismo talvez facilite a nossa exposição. Uma das grandes características do primeiro período era a ênfase na razão, enquanto o segundo estimava a arte. A distinção que ora nos interessa se encontra no continuum de uma cadeia de raciocínio, de um ir a outro sempre pela mediação de um terceiro, de um processo que contrasta ao sem mediação, ao imediato da inspiração artística, da intuição do artista. Sendo assim, o absoluto caracteriza a manifestação desse segundo, dando-se assim mesmo como é: na sua inteireza, no seu todo, de uma só vez. Esta última compreensão não será a de Hegel, segundo o qual o absoluto é pensamento, é razão, é consciência que se dá a si mesma (autoconsciência) não de uma só vez, mas paulatinamente, em processo, sendo tal desdobramento o que tomamos como tempo e história: os acontecimentos históricos são um filão do mesmo, de uma identidade por princípio e por fim, pensamento de si próprio, pensamento de pensamento, como que uma ex-plicação do Uno, da Unidade, do Absoluto, se lembrarmo-nos que ex-plicare é um verbo latino derivado de plicare, que significa dobrar (dobrar para fora, desdobrar). Sendo assim, a Verdade se revela, para Hegel, como história, numa multiplicidade que se refere ao mesmo e assim tem suas partes interligadas necessariamente, mundo no qual nada é inexplicável como um insight, uma intuição, uma inspiração que não se pode rigorosamente pensar, porque se revela sem antes e sem depois. Arrisca-se, então, que a razão ou unidade não é obra do pensar humano, mas, antes, obra da Totalidade que se revela ao pensar e, se não há outro, ao pensar a si próprio, em cadeia, o que somente depois e, por isso mesmo, permite que a pensemos mediante os acontecimentos que são os seus desdobramentos, que, portanto, se mostra a si mesmo e que se nos mostram como o que tomamos por realidade, vida, existência, universo, mundo.

08. Posto assim, observa-se que a dificuldade que, em geral, o pensamento filosófico tinha com a história e com o mundo, entendidos como multiplicidade inconstante, e que, dessa forma, não favoreciam, a partir de si próprios, a construção de um conhecimento seguro do real, é superada por Hegel, que, por sua vez, considera o real como processo histórico ou, como dissemos anteriormente, como revelação, manifestação ou fenomenologia do verdadeiro, do Espírito Absoluto. Ora, uma das dificuldades da tradição filosófica em assim aceitar é que tal multiplicidade é muitas vezes contraditória ou excludente, o que, pela perspectiva de uma lógica binária (segundo a qual o-que-é é e o-que-não-é não é)incide em confusão e absurdo. Logo, é imprescindível já introduzir a lógica outra pela qual Hegel comporta a contradição, que é a dialética. Conforme essa lógica e muito ao contrário da lógica binária, a contradição não incide em erro ou no irreal, mas é ela o cerne da vida ou o que garante a dinâmica do mundo e do verdadeiro. Melhor dizendo, Hegel recupera uma concepção praticamente esquecida da Antiguidade Clássica Grega e sustentada por Heráclito de Éfeso, segundo a qual algo se revela concomitantemente ao seu oposto, ou seja, sempre quando algo se afirma, sua afirmação (e satisfatória compreensão) só é possível pela igual afirmação do seu contrário, que, por sua turno e não menos, é-lhe a sua negação. Há nisso uma tensão que se resolve não na exclusão de um extremo ou outro (pois um tem o seu ser no outro), porém pela instauração de um terceiro, que supera aquela contradição, mas também a conserva, visto que ele mesmo é resultado e só pode ser compreendido por aquela contradição anterior e pela contradição que agora ele também estabelece com o seu contrário (lembrando que “quando algo se afirma, sua afirmação só é possível pela igual afirmação do seu contrário”), incidindo em nova contradição, que se desdobra em nova síntese, que é nova tese que se coloca em mesmo tempo que o seu contrário, e assim sucessivamente, revelando-se processo infinito, que perpassa todas as coisas, que é o Absoluto. E é dessa a maneira que esse todo se manifesta pouco a pouco como história, acontecimentos, mundo.

09. O Absoluto é pensamento, sendo que a atividade de pensamento se exerce sobre algo. Como no caso do Absoluto não há outro no qual se poderia exercer, esse pensamento se exerce sobre si mesmo, sendo pensamento de pensamento. O pensamento “em-si” se torna “para-si” mesmo: sai como que de si para dar-se a si mesmo, num processo infinito de reflexão. Noutros termos, o Absoluto sujeito se desdobra para “fora-de-si” na condição de Absoluto objeto, mundo, história. E à medida que tal Absoluto vai pensando a si mesmo, destina-se à síntese do Sujeito e Objeto, que Hegel chama de Concreto. Ocorre que todo esse alinhavar de momentos antitéticos e sintéticos também são cada qual desdobra mento antitético e sintético. Em Hegel, pois, a dialética não é propriamente um método, mas, sim, a natureza das próprias coisas e que, por isso mesmo, para que possam ser bem pensadas por nós, só poderão ser bem pensadas dialeticamente.

10. A partir daí, nenhum momento tem sentido em si mesmo, mas somente dentro do todo do qual faz parte, que é o Absoluto. Por isso, inevitavelmente, a filosofia hegeliana propõe-nos um sistema. Cada um só pode ser bem compreendido dentro do contexto do qual faz parte, que, por seu turno, faz parte de um contexto maior e, assim, sucessiva e ininterruptamente . O aqui e agora é um momento necessário do Espírito Absoluto: é como se tudo o que aconteceu assim aconteceu para que o aqui e agora seja; no entanto, também o aqui e agora deixará de ser, a fim de que tudo seja. Cada momento é, enfim, necessário e contingente, pois nada antes ou depois seria se este momento que somos não fosse, porquanto tudo é parte constitutiva do mesmo Espírito. Contraditório? À filosofia hegeliana, isso não é ofensa, porém é a mola dos acontecimentos: dialética!

11. Didaticamente, diz-se que a semente se realiza e se afirma num broto, embora um broto seja exatamente a negação da semente, que assim deixou de ser. Não dá para negar que a semente permanece no broto, pois, não fosse, não se teria igualmente broto. Mas deixou de ser, a fim de que o broto fosse. Assim a semente é necessária e contingente. Da mesma maneira, o broto se realiza e se afirma num arbusto, embora um arbusto seja exatamente a negação do broto, que assim deixou de ser. Não dá para negar que o broto permanece no arbusto, pois, não fosse, não se teria igualmente arbusto. Mas deixou de ser, a fim de que o arbusto fosse. Assim também o broto é necessário e contingente. A dialética é a dinâmica de tudo.

12. Bem, fiz o compromisso de não me delongar no tratamento precisamente do que é uma delonga sem fim. De qualquer forma, espero que este texto possa ser útil àqueles que gostariam de uma primeira palavra sobre o pensamento hegeliano. Por fim, remeto-lhes ao vídeo seguinte, a fim de que possam confirmar, por outra breve exposição, o que aqui foi tratado.