Rodrigo Rodrigues Alvim
I – A NOVIDADE
01. A
parte do Oriente Médio, então habitada pelos judeus, a Palestina, também foi
conquistada pelos romanos, que a denominaram “Judeia”. Foi nessa nova província
romana que nasceu uma criança, a quem seus pais chamaram “Jesus”, nome não
muito incomum. Não seria de se esperar muita coisa de alguém nascido nesse
rincão do mundo greco-romano. Sua família era pobre, mas não tão pobre como
ainda se poderia ser, uma vez que seu pai tinha uma profissão, a de
carpinteiro, mão de obra qualificada e muito necessária à expansão e à
construção de novas cidades. Filho de carpinteiro, muito provavelmente Jesus
também exerceu as habilidades do pai, como era de praxe acontecer, daí tirando
o seu sustento desde moço ainda. Por volta dos trinta anos de idade, reuniu em
torno de si um grupo de homens e mulheres, ele na condição de seu mestre. Não
era o único. Muitos assim viviam e eram tomados por “sábios” e “profetas”,
dando continuidade à tradição judaica de organização de mundo à luz de
considerações religiosas, em mesmo tempo que inevitavelmente
político-ideológicas.
02. Apesar de sua morte prematura
e “vergonhosa”, pois morreu ao modo dos criminosos condenados (ou seja,
crucificado), impressionou por suas palavras e modo de vida os seus discípulos.
Como estes não eram pessoas influentes e, no entanto, não se intimidaram em
propagar a mensagem do seu mestre, mesmo em momentos de grande perseguição aos
“cristãos”, como passaram a ser designados em virtude do cognome “cristo” (do
grego Χριστός, Khristós, ungido) que atribuíram a Jesus [vindo de
“messias” (do hebraico מָשִׁיחַ, Māšîaḥ), aquele que,
segundo profecias, haveria de vir protegido pelo óleo divino e realizaria
grandes feitos], pode-se concluir que, independentemente de sua “divindade”,
certamente Jesus fora alguém impressionante: a mensagem de amor que se propagou
em seu nome, de conceder a outra face quando lhe batem e de oração pelos
inimigos em tempo tão beligerante (de todas as partes), tomou eco, paulatinamente, em pessoas de diferentes povos, condições materiais de vida e de
pensamento.
03. O modo de vida de Jesus e suas
palavras ecoaram em muitos, através do engajamento de seus discípulos,
fundando assim comunidades que o tomaram como “o Caminho”, comunidades
relativamente autônomas, embora todas pretendentes à filiação de um daqueles
que com ele haviam convivido pessoalmente,
testemunhas oculares que a elas transmitiram, oral e diretamente, as palavras
daquele mestre.
04. Contudo, com a morte, no decorrer
do tempo, desses primeiros porta-vozes da mensagem e feitos de Jesus, as
comunidades passaram a registrar, pela escrita, o testemunho desses homens.
Tratava-se de obra que garantisse a memória e tradição à posteridade, comumente
reescrita, por acréscimos, substituições e supressões, promovidos pela repetida
leitura de muitos, membros dessas comunidades originárias da conversão, adesão
e afinidade de vida, pelo menos pretendida, aos passos de Jesus. Portanto, já
no final do primeiro século, estimado desde o nascimento de Jesus, os textos que o têm
por motivo, denominados “Evangelhos” (do grego ευαγγέλιον, euangelion, boa mensagem), são muitos e filiados à
autoridade, senão do próprio Jesus, a de seus discípulos e apóstolos (o "Evangelho de Mateus", o "de Tiago", o "de Judas"...). Como estes, são também confeccionados
escritos referentes ao que se segue à vida de Jesus, mas tão-só importantes
por sua causa dessa mesma vida, como o “Apocalipse” (do grego αποκάλυψις, apokálypsis,
"revelação"), os “Atos” (do grego Πράξεις, praxeis, feitos – "dos Apóstolos", "de Filipe"...), as “Cartas” ou
“Epístola” (também do grego ἐπιστολή, mensagem
enviada ou ordenada), dos apóstolos às comunidades.
05. O inacreditável crescimento
do número de adeptos a esse novo movimento não pode, assim, deixar de chamar a atenção
das autoridades políticas do império romano, bem como das autoridades
político-religiosas judaicas. Como sói acontecer às autoridades constituídas,
toda novidade é uma ameaça potencial ao estado estabelecido e, por conseguinte,
deve ser vigiado. Tomando volume, deve ser contido. Por conseguinte, não tardou
o acirramento da perseguição aos cristãos, que nem por isso deixaram de se
multiplicar. Ao contrário, o martírio de muitos fomentou a conversão de muitos
outros que, admirados com a coragem desses que não abdicavam de sua fé nem
diante da morte, convenceram-se de que se devia tratar de obra de um deus
verdadeiro. Enfim, na clandestinidade durante o dia e na reunião em catacumbas
durante a noite, as comunidades cristãs se multiplicavam, se avolumavam, se
consolidavam.
II – A INSTITUCIONALIZAÇÃO
06. Em lutas intestinas para a
conquista do trono de Roma, Constantino venceu o seu rival, mas não sem grandes
preocupações e tormentos. Em desvantagem na disputa, manifestou sua esperança,
traduzida em vozes e visões, confessadas a Eusébio de Cesareia, importante
historiador da época: Meus pace est cum
Vos... In hoc signo vinces (Minha paz está contigo... com este sinal
vencerás). O sinal extraordinariamente apresentado foi traduzido no lábaro de
Constantino, uma figura formada pelas duas primeiras letras, o Chi (χ) e Ro (ρ),
sobrepostas, da palavra Χριστός (Cristo). Embora improvável, a vitória de
Constantino aconteceu e, mais tarde, graças à liberdade de manifestação que os
cristãos alcançaram em razão desse desfecho, o lábaro de Constantino se tornou
um dos grandes símbolos do ideal ulterior da cristandade.
07. Era corrente aos imperadores
buscar divindades que os amparassem em seus empreendimentos de guerra. A
novidade, talvez, no caso de Constantino, foi tê-lo buscado no deus único
cristão. Talvez o tenha feito porque igualmente impressionado com a expansão do
cristianismo, apesar das perseguições contra ela promovidas pelas autoridades romanas,
interpretadas como grande força de seus adeptos e desse deus pelo qual eram
capazes de dar a própria vida. Ainda que a conversão pública de Constantino
tenha sido motivada por estratagema sua de trazer para junto de si a força
desses homens, muitos dos quais certamente pertencentes ao contingente de seu
próprio exército, sem poderem, no entanto, assim se manifestar livremente, alguns
estudiosos interpretam que a sua conversão realmente se deu, pouco a pouco, no
decorrer de sua vida e principalmente sob a influência de sua mãe.
08. Ao se converter, o imperador
Constantino se aproximou de uma das comunidades cristãs, que, como antes
dissemos, eram muitas. Com isso, predomina a preocupação com a unidade das
comunidades cristãs que acompanhasse a permanente preocupação de manutenção da
própria unidade do Império Romano. Tal empenho fará com que a comunidade com
tal preocupação seja chamada, desde cedo, de “católica” (do grego καθολικος,
que significa “universal”), que se organizará paulatinamente através de forte
hierarquia, disposta geopoliticamente ao modo do Império, ou seja, por regiões,
dioceses (do grego διοίκησις, dióikessis), subdivididas em distritos (mais
tarde chamados de “paróquias”), com suas sedes geralmente em cidades de maior
porte. Toda diocese estaria sob direção de um bispo e cada paróquia sob a
direção de um padre ou pároco. As dioceses maiores se denominariam “arquidioceses”
e seus responsáveis, “arcebispos”. Contudo, todas essas autoridades
episcopais estariam submetidas ao primado do bispo de Roma (a “cidade eterna”),
o Papa.
09. Uma outra importante expressão
da preocupação de Constantino com a unidade das comunidades cristãs foi a
elaboração de uma profissão de fé nos estritos limites daquilo que todos os
bispos cristãos pudessem estar de acordo entre si, o que foi promovido a partir
da convocação, pelo imperador, do Concílio de Niceia, donde o nome pelo qual
essa profissão ficou conhecida: Credo Niceno. Mais tarde, em 381, essa
profissão de fé foi revista e confirmada no Concílio de Constantinopla, nos
seguintes termos:
Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso,
Criador do céu e da terra,
de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,
Filho Unigênito de Deus,
gerado do Pai antes de todos os séculos,
Deus de Deus, Luz da luz,
verdadeiro Deus de verdadeiro Deus,
gerado, não feito,
da mesma substância do Pai.
Por Ele todas as coisas foram feitas.
E, por nós, homens,
e para a nossa salvação,
desceu dos céus:
se encarnou pelo Espírito Santo,
no seio da Virgem Maria,
e se fez homem.
Também por nós foi crucificado
sob Pôncio Pilatos,
padeceu e foi sepultado.
Ressuscitou dos mortos ao terceiro dia,
conforme as Escrituras,
e subiu aos céus,
onde está assentado à direita de Deus Pai,
donde há de vir, em glória,
para julgar os vivos e os mortos;
e o Seu reino não terá fim.
Creio no Espírito Santo,
senhor e fonte de vida,
que procede do Pai (e do Filho);
e com o Pai e o Filho
é adorado e glorificado:
Ele falou pelos profetas.
Creio na Igreja
Una, Santa, Católica e Apostólica.
Confesso um só batismo para remissão dos pecados.
Espero a ressurreição dos mortos
e a vida do mundo vindouro.
Amém.
10. Inevitavelmente, o desejo de
unidade do cristianismo reavivou as perseguições religiosas entre os próprios
cristãos. A concepção de um cristianismo “oficial” e “católico” colocava todo
resto pretensamente cristão sob a insígnia da “heresia” (αἵρεσις, em grego; haerĕsis, em latim: escolha – no
caso, opção pelo não verdadeiro).
11. Se em 313, pela sua conversão
ao cristianismo, Constantino, pelo Édito de Milão, garantiu liberdade religiosa
aos cristãos até então perseguidos, foi somente no apagar das luzes do
século IV que o último grande imperador romano, Teodósio I, proclamou o
cristianismo como religião oficial do Império Romano.
III - REORGANIZAÇÃO DO MUNDO
3.1 – A Filosofia Cristã
12. Nesse encontro da cultura
greco-romana com a cultura judaica e a mensagem cristã, uma organização do
pensamento também se fazia necessária. Muitos desde cedo se empenharam nisso.
Paulo de Tarso, em virtude de sua exemplar formação dentro dos costumes e
pensamento judaicos, exerceu, durante a sua vida, um papel inigualável no
entrecruzamento do judaísmo com a “boa nova” de Jesus, além de cedo ter
compreendido que esta, diferentemente daquela, não se destinava a um povo
apenas, mas a todos os homens, empreendendo esforços nesse sentido, como nos
mostra o seu encontro em Jerusalém com os discípulos de Jesus, na defesa de
que, sendo a “boa nova” do Cristo para todos, não precisavam os gentios (os
estrangeiros convertidos à nova fé) submeterem-se às práticas da tradição
judaica, como a circuncisão. Também foi Paulo que se deparou com os gregos,
guardiões da cultura ainda predominante àquela época, como nos mostram os Atos dos Apóstolos e as suas Cartas (Epístolas) dirigidas às comunidades cristãs
de Atenas, Corinto e Éfeso, experimentando diretamente as dificuldades dessa
empreitada.
13. Com a morte dos discípulos e
dos primeiros apóstolos, vieram os seus sucessores, denominados “bispos” (επίσκοπος,
em grego, ou seja, administrador), auxiliados por outros ministros de
diferentes denominações e atribuições dentro das comunidades cristãs. Dentre
estes, muitos dos quais convertidos ao cristianismo em sua juventude ou idade
adulta e, portanto, educados ao modo da tradição greco-romana, assumiram o
desafio de compatibilizar tal tradição à mensagem de Jesus. Mais tarde chamados
de “primeiros padres”, deram, por esse título, nome ao primeiro período de
sistematização de uma “filosofia cristã”, a saber, “patrística”.
14. Nota-se, pois, a grande
dificuldade que será, nesse período, separar o pensamento filosófico do
pensamento religioso cristão e teológico, do mesmo modo que não se compreende
bem a sua política, a sua economia e a sua arte, se quisermos separá-las da
cosmovisão religiosa cristã.
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Aurélio Agostinho |
15. Inúmeros são os filósofos
patrísticos e não temos a pretensão de desenvolvê-los aqui, até porque somente
um conseguiu produzir uma obra filosófica de ampla sistematização: Aurélio
Agostinho. É ele o autor da primeira teologia cristã que, tendo nascido na
transição do século IV para o século V, ultrapassará muitos séculos. Mesmo
Tomás de Aquino, maior responsável por uma nova teologia, que predominaria
somente a partir do século XII, ainda havia se formado sob a exclusiva
orientação da teologia patrística agostiniana. A vida de Agostinho, ele mesmo
nô-la apresentou em obra que, apesar de seu perfil autobiográfico, se tornou
texto filosófico de suma importância. Em outras obras suas, estabeleceu diálogo
com diversas vertentes filosóficas, apresentando argumentos inovadores na
compreensão de mundo, sempre tendo, como pano de fundo, a escritura bíblica.
Embora de tendência platonizante, sua obra inovou sobre a questão do mal no
mundo, sobre a aquisição do conhecimento, sobre o sentido da história, sempre
promovendo um intenso diálogo entre a filosofia antiga, as vertentes de
pensamento dominantes no seu tempo e os textos sagrados ao cristianismo.
16. Conta-nos ele mesmo de seu
compromisso com a busca da verdade. Instigado por sua mãe, Mônica, à leitura da
Bíblia, rejeitava-a como alguma coisa séria e digna de maiores atenções. No
entanto, recém chegado a Milão como professor de retórica, toma, nesse sentido,
ciência das habilidades presentes nas pregações de Ambrósio, bispo da cidade.
Interessado em averiguá-las, passa a freqüentar os sermões ambrosianos.
Conta-nos ele:
Ardorosamente o ouvia quando pregava ao povo, não com o
espírito que convinha, mas como que a sondar a sua eloqüência para ver se
correspondia à fama, ou se realmente se exagerava ou diminuía a sua reputação
oratória (1).
17. Esse acontecimento foi
decisivo à posterior conversão de Agostinho ao cristianismo, pois, imperceptivelmente, Ambrósio reeducava o seu olhar para as Escrituras Bíblicas, como Agostinho
mesmo nos relata em
suas Confissões:
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Ambrósio de Milão |
Alegrava-me também de ver que já me não propunham a leitura
dos antigos escritos da Lei e dos Profetas, com a mesma panorâmica em que,
tempos antes, me pareciam absurdas tais doutrinas, quando arguía os vossos santos,
na suposição de que os interpretavam como eu julgava, quando na verdade os não
interpretavam assim. Cheio de gozo, ouvia muitas vezes Ambrósio dizer nos
sermões ao povo, como recomendar, diligentemente, esta verdade: “A letra mata e
o espírito vivifica” (2).
18. Deixando a literalidade de
muitos dos textos bíblicos e buscando seu sentido nas entrelinhas, Agostinho
encontra uma chave de leitura que lhe permite compreender os textos bíblicos
que antes desprezava. Mesmos textos, mas outros olhos!
19. A
“gota d’água” para sua conversão acontece quando ele abre aleatoriamente uma
das Epístolas de Paulo que se encontra no jardim de sua casa, enquanto lhe vem
uma canção que lhe solicita a leitura. Então, seus olhos caem no seguinte
trecho: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e
dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e
não procureis a satisfação da carne com seus apetites” (3).
20. Como exemplos de originalidade
da sua filosofia, podemos selecionar dois trechos de seus escritos, um, no qual
ele reflete sobre o que é o mal, e outro, no qual reflete sobre o que é o
tempo:
(Primeiro): Sobre o mal:
Vi Claramente que todas as coisas que se corrompem são
boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam
corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam
incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se
corrompesse.
De fato, a corrupção é nociva, e, se não diminuísse o bem,
não seria nociva. Portanto, ou a corrupção nada prejudica – o que não é
aceitável – ou todas as coisas que se corrompem são privadas de algum bem. Isto não
admite dúvida. Se, porém, fossem privadas de todo o bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e já não pudessem
ser alteradas, seriam melhores porque permaneceriam incorruptíveis. Que maior
monstruosidade do que afirmar que as coisas se tornariam melhores com perder
todo o bem?
Por isso, se são privadas de todo o bem, deixarão
totalmente de existir. Logo, enquanto existem, são boas. Portanto, todas as
coisas que existem são boas, e aquele mal que se procurava não é uma
substância, pois, se fosse uma substância, seria um bem. [...].
Em absoluto, o mal não existe em Vós, nem para as vossas
criaturas, [...]. Mas porque, em algumas de suas partes, certos elementos não se
harmonizam com outros, são considerados maus. Mas estes coadunam-se com outros,
e por isso são bons (no conjunto) e
bons em si mesmos (4).
21. O problema do mal no mundo é
uma das questões mais embaraçosas para a humanidade, porém especialmente para
os cristãos que professam um Deus único, sumamente bom, criador de todas as
coisas. Afinal, se assim é, donde provém o inconteste mal que presenciamos no
mundo por ele criado? Pelo trecho de Agostinho, dado imediatamente acima, temos
uma boa amostra da força argumentativa desse filósofo, bem como de sua
capacidade intuitiva, expressa na sua tese de que o mal não é uma substância,
mas uma privação de substância, ou seja, o mal não é um bem, mas uma privação
do bem. Ora, em si mesmo, o mal não é, não existe e, por conseguinte, não exige
criação.
22. Por fim, considera Agostinho
sobre o mal:
Procurei o que era a maldade e não encontrei uma
substância, mas sim uma perversão da
vontade desviada da substância suprema –
de Vós, ó Deus - [...] (5).
(Segundo): Sobre o tempo:
Senhor, não houve um tempo em que nada fizeste, porque o
próprio tempo foi feito por ti. E não há um tempo eterno contigo, porque tu és
estável, e se o tempo fosse estável não seria o tempo. O que é realmente o
tempo? Quem poderia explicá-lo de modo fácil e breve? Que poderia captar o seu
conceito, para exprimi-lo em palavras? No entanto, que assunto mais familiar e
mais conhecido em nossas conversações? Sem dúvida, nós compreendemos também o
que nos dizem quando dele nos falam. Por conseguinte, o que é o tempo? Se
ninguém me pergunta, eu sei; porém, se quero explicá-lo a quem me pergunta,
então não sei. No entanto, posso dizer com segurança que não existiria um tempo
passado, se nada passasse; e não existiria um tempo futuro, se nada devesse
vir; e não haveria o tempo presente, se nada existisse. De que modo existem
esses dois tempos – passado e futuro –, uma vez que o passado não mais existe e
o futuro ainda não existe? E quanto ao presente, se permanecesse sempre
presente e não se tornasse passado, não seria mais tempo, mas eternidade.
Portanto, se o presente, para ser tempo, devesse tornar-se passado, como
poderemos dizer que existe, uma vez que a sua razão de ser é a mesma pela qual
deixará de existir? Daí não podermos falar verdadeiramente da existência do
tempo, senão enquanto tende a não existir (6).
23. A
questão do tempo também é imposta ao cristianismo em virtude de sua profissão
de um Deus criador, mas eterno. Se Deus é antes da criação do mundo, antes
implica tempo e tempo também em Deus, comprometendo a sua imutabilidade.
Agostinho, então, trata do tempo como condição apenas do mundo (da criatura) e,
portanto, nossa. Daí que a sua abordagem, por coerência, ser “psicológica” (ou
seja, como as coisas no tempo e o próprio tempo nos aparecem) e não ontológica
(ou seja, o que é o tempo em si mesmo – o que nos seria indizível pela nossa
própria condição já temporal). Daí que ele associa o passado à nossa memória já
em nós (enquanto presente do passado), o futuro à nossa expectativa igualmente
já em nós (enquanto presente do futuro) e o presente à nossa intuição (dado
imediato) (enquanto presente do presente). Assim passado, presente e futuro
certamente são em nós e da nossa condição e desde o mundo criado por Deus. Deus
não está, enquanto criador e não criatura, submetido ao tempo. Se teimarmos em
tratar de Deus relativamente ao tempo, só poderíamos dizer, então, que Deus é
“sempre presente”. Rigorosamente, o tempo em si mesmo é indizível por nós, do
mesmo modo que rigorosamente não podemos falar de Deus (é este que se nos
revela; não somos nós quem o revelamos).
24. Nascido no norte da África,
numa província romana, para lá retorna após sua conversão, sendo aclamado
presbítero e, algum tempo depois, bispo pela comunidade da cidade de Hipona.
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Entrada de Alarico em Roma |
25. Com a morte de Teodoro I e a
divisão do Império Romano (ocidental e oriental) entre os seus filhos, Alarico
(o “bárbaro”, considerado o primeiro rei visigodo) cercou a cidade de Roma e a
saqueou. Este acontecimento foi pungente nos espíritos da época, que
acreditavam na invencibilidade da cidade, à qual concediam o predicado de
“eterna”. Com o alcance da identidade da Igreja Cristã e do Império Romano, os
cristãos, romanos ou não, também ficaram apreensivos com o ocorrido. E para
agravar ainda mais a situação, alguns romanos não-cristãos levantaram a
hipótese de que esse fato só foi possível por causa dessa união, que esmoreceu
o antigo ânimo aguerrido do Império por um espírito esmorecido pelo mandamento
cristão de amor ao próximo. Foi essa acusação aos cristãos que levou Agostinho
a desenvolver uma defesa do cristianismo, que redundou numa filosofia da
história, obra à qual se deu o título de A
cidade de Deus.
26. A
defesa busca os seus aportes, como não poderia deixar de ser, numa livre interpretação
dos textos bíblicos. Segundo ela, a “cidade de Deus” não é Roma. Portanto, não
é Roma a cidade eterna. Roma é uma das manifestações da “cidade dos homens” e,
portanto, suscetível a quedas. Sua queda em causa, ao contrário da acusação que
se fez aos cristãos, se deveu, na verdade, para Agostinho, ao fato de Roma ter
tardado em abraçar o cristianismo e de ainda não tê-lo feito completamente. A
“cidade de Deus” não é Roma e nem outra cidade visível. A “cidade de Deus” é,
isto sim, uma cidade invisível, da qual fazem parte todos os homens de bem e
que amam uns aos outros. Não obstante a sua invisibilidade, ela se constrói e é
ela que triunfará. Ela, sim, é a cidade verdadeiramente eterna e a que,
portanto, nenhum mal pode prevalecer.
27. Nesta esperança, morre
Agostinho, em 430, com a sua cidade, Hipona, também cercada por bárbaros, da
comunidade dos vândalos, que ocuparão todo o norte da África.
3.2 – A Europa
28. Com sucessivas e concomitantes
invasões de diferentes comunidades “bárbaras”, o Ocidente foi escapando das
mãos dos romanos. Apesar dos esforços do Império Romano do Oriente de
reconquistá-lo, a dificuldade e demora na realização desse intento fez com que
essas duas partes do antigo Império Romano fossem se tornando cada vez mais
diferentes entre si. Como os “bárbaros” visavam o saque de cidades, onde se
concentravam as riquezas produzidas, a população ocidental buscou, maciçamente,
refúgio e proteção no campo, que foi se dividindo e se subdividindo numa
complexa rede de suserania e vassalagem: o vassalo (não detentor de terra), mas
em busca de proteção no campo, oferece-se para trabalhar a terra de outrem (o
suserano), a este oferecendo em troca sua fidelidade e substancial parte de sua
produção. Este ordenamento sócio-econômico ficou conhecido como “sistema
feudal”.
29. Paralelamente a isso, o
politeísmo das gentes “bárbaras” fez com que fossem relativamente tolerantes às
diferentes manifestações religiosas. Nesse sentido, as lideranças religiosas
cristãs, às vezes conseguiam avançar onde as lideranças seculares romanas
falharam. Sem os pormenores, os diversos povos bárbaros nômades foram
lentamente se convertendo ao cristianismo e a Igreja foi a instituição capaz de
acomodar esses povos, então nômades, em uma nova geopolítica que incidirá no
que atualmente conhecemos como Europa.
30. Mal fizera a Igreja essa reacomodação,
surgiu, no século VII, um novo e forte movimento político-religioso, de origem
árabe, e que também ameaçará as fronteiras da cristandade europeia ocidental: o
islamismo.
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Carlos Martel em Poitiers |
31. Mas, para fazer justiça a toda
essa reorganização, nesse período, de “bárbaros” cristãos, de contenção e
conversão ao cristianismo de “bárbaros” ainda pagãos (sobretudo saxões) ao
cristianismo, de detenção do avanço dos muçulmanos (que, depois de conquistar
todo norte da África, invadiram a Península Ibérica, com pretensões e sólidas
condições de avançar por toda a Europa cristã ocidental) e de uma administração
feudal calcada num respeito à hierarquia de barões, condes, duques e rei, um
nome mereceria um texto à parte: Carlos Martel. Carlos Martel foi uma dessas
figuras que consideramos improváveis para sua época. Como uma espécie do
mordomo-prefeito da dinastia merovíngia que governava os francos (um dos povos
germânicos que invadiram todo o Império Romano Ocidental, como já vimos), sua
importância à Europa cristã ocidental foi reconhecida já em seu próprio tempo e,
na literatura europeia subsequente e hodierna, sua vida e feitos são
considerados um épico (não obstante, por seus interesses internos de conquista, alguns historiadores tentem hoje minimizar esse seu feito). E, mesmo depois de sua morte, um dos seus filhos, Pepino
(o Breve), e seu neto, Carlos Magno, inauguraram uma nova dinastia, a
carolíngia, consolidaram o sistema administrativo, político e econômico feudal
e terminaram de expulsar os muçulmanos definitivamente do extremo oeste da
Europa ocidental. Para muitos, foi como o restabelecimento do Império Romano do
Ocidente, sob o título de Império Carolíngio (ou “Carlovíngio”, nome que Pepino
sugeriu em homenagem ao seu pai), período no qual à Igreja foram doadas muitas
terras, dela fazendo, além de guardiã da unidade espiritual do Ocidente, uma
forte instituição político-econômica, como nunca antes. Carlos Magno também
mereceria um texto à parte, pois, embora analfabeto, promoveu um movimento
cultural a que demos o nome de “Renascimento Carolíngio” (com abertura de
várias escolas de pesquisa e combate ao analfabetismo, amparo de filósofos e
artistas, investimento em publicações de obras “clássicas”, através do trabalho
de inúmeros “copistas”, o que certamente contribuiu para que muito do
patrimônio cultural ocidental não se perdesse). Com a morte de Carlos Magno e
sua sucessão por Luís (o Piedoso), este dividiu o Império entre os seus filhos,
ficando um responsável pela Germânia, outro pela França, e o terceiro pela
Itália, já esboçando, assim, o que se tornarão alguns dos Estados Nacionais
Modernos.
IV – ÚLTIMOS SÉCULOS
32. A
subdivisão da história em três “eras” ou “idades” foi proposta pelos primeiros
“modernos”. Inicialmente, pensou-se apenas na era que os antecedeu, a “Idade
Antiga”, e a era na qual se encontravam, a “Idade Moderna”. Contudo, a “Idade
Antiga” que lhes interessava no berço da modernidade, que redescobriam e faziam
assim “renascer”, era muito mais remota: o tempo da cultura helênica. Reavivada,
deram-lhe o nome de deram-lhe o nome de “Renascimento”. Em seu próprio lugar,
reservaram-lhe o nome “Idade Antiga”. Assim, ao que lhes era imediatamente
passado e que, dessa forma, ficava entre aquele tempo mais longínquo e o seu
próprio tempo, chamaram de “era do meio”, de “era mediana”, de “Idade Média” –
que, naquele momento, em nada lhes interessava, desprezando-a (apesar de seus
mil anos) –, de “Idade das Trevas” ou “Era Obscurantista” (um preconceito que
durou por toda a modernidade e contemporaneidade e que, ao menor interesse,
condenavam como tendência “conservadora”). Somente mais recentemente,
historiadores, sociólogos e filósofos têm recuperado e mostrado a riqueza e a
importância desse período.
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Carlos Magno |
33. Relativamente a esse período
medieval, em particular, convencionou-se chamar os seus primeiros séculos de
“alta Idade Média” e os seus últimos séculos, de XII a XV, de “baixa Idade
Média”. Logo, essa segunda parte do período feudal é marcada pelo auge das
expedições militares cristãs ocidentais que pretendem reconquistar as “Terras
Santas”, a antiga província romana da Judéia, especialmente a cidade de
Jerusalém, sob posse dos turcos muçulmanos. Porque os militares ocidentais se
veem como “soldados de Cristo”, passaram a chamar essas suas expedições de
“Cruzadas” e que, a bem da verdade, tiveram início no século XI, com
contingentes advindos principalmente do que fora o Império Carolíngio.
34. Desde as Cruzadas, mudanças
significativas vão acontecendo no Ocidente, que levarão, no decorrer de alguns
séculos, ao fim do modo de produção feudal e surgimento do modo de produção
ainda atual: o capitalismo. As próprias Cruzadas implicaram a superação de uma
economia de subsistência, como, até então, se tinha: primeiramente, o excedente
se tornou necessário para o abastecimento dos contingentes cristãos-militares que se encontravam nas fronteias lestes combatendo os
muçulmanos; em segundo lugar, apesar das Cruzadas terem durado aproximadamente do
século XI até o século XIII, muito desse período era intercalado por tréguas e
breves acordos de paz que permitiam uma convivência entre cristãos e
muçulmanos, pela qual o intercâmbio de artigos foi se intensificando. Como o
interesse pelos produtos orientais no Ocidente foi crescendo, foi preciso um
excedente de produção entre os cristãos europeus que pudesse garantir esse
comércio. Além disso, em resumo, começou-se a abrir estradas para esses
intercâmbio e, por fim, onde tais estradas se entrecruzavam no Ocidente,
passou-se a se estabelecer hospedarias e feiras de troca, a que se deu o nome
de “burgos” (do latim
burgus,
fortaleza, povoado), que se tornarão cidades fora dos muros da sede dos feudos
(castelos ou mosteiros). Daí também o nome “burguês”, dado àqueles que se
aventuraram nas transações comerciais e que se tornarão os protagonistas do modo
de produção capitalista nascente.
35. Data-se também do século XII,
o nascimento das universidades que nos levou ao modelo que ainda hoje temos.
Todavia, muitas delas advieram daquelas escolas inauguradas por Carlos Magno,
anteriormente citadas. Fundadas, direta ou indiretamente, sob os auspícios da
Igreja, inicialmente ofereciam estudos especializados de Direito, Medicina e
Teologia, mas já desde o ensino básico literário [gramática, retórica e lógica
(dialética)], seguido do científico [aritmética, geometria, música e
astronomia], motivaram os espíritos da época à especulação, aos debates e ao
intercâmbio de resultados de pesquisas.
36. Buscando acompanhar o “espírito
crítico” dessas escolas, a “filosofia cristã” tomou, por isso mesmo, o nome de
“escolástica”. Considera-se seu fundador, Anselmo, arcebispo de Cantuária,
falecido em 1109, e o seu maior expoente, Tomás de Aquino, sacerdote e
professor na Universidade de Paris, falecido em 1274, cujos pensamentos serão
aqui um pouco apresentados.
4.1. Anselmo de Cantuária: Argumento Ontológico da
Existência de Deus
37. Em sua obra
Proslógio (7), Anselmo desenvolve um
famoso raciocínio sobre a existência de Deus. Sua repercussão na filosofia se
deve aos seus contornos puramente conceituais, ou seja, é um argumento
a priori acerca da existência divina.
38. Anselmo parte da noção, que
todos os homens, porque racionais, têm de “aquilo
do qual não se pode pensar nada maior”. Bem expressado, não se trata de “o
que é” “aquilo do qual não se pode pensar
nada maior”, mas apenas da sua noção: trata-se somente de um conceito que
nos ocorre mentalmente.
39. No entanto, adverte Anselmo,
nem tudo que se pensa existe. Se assim é, poderíamos propor:
- “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” como existindo;
X
- “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” como não existindo.
40. Diante dessas duas
possibilidades, porém, qual delas é verdadeiramente “aquilo do qual não se pode pensar nada maior”?
41. A
resposta é inevitável: é “aquilo do qual
não se pode pensar nada maior” como existindo, pois tem, em relação à outra
possibilidade, a existência, ou seja, algo a mais (um predicado) que o faz
“maior”.
42. Ora, “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” é o que os cristãos denominam “Deus”. Logo, Deus existe necessariamente.
4.2. Tomás de Aquino: Argumentos A Posteriori da Existência de Deus
43. Por trabalho dos árabes ou
pelos copistas medievais, as obras de Aristóteles foram sendo reintroduzidas no
Ocidente. Logo a sua força se fez sentir à teologia agostiniana predominante,
de traço marcadamente neoplatônico. Tomás de Aquino toma, pois, a incumbência
de avaliar o quanto a filosofia aristotélica se conforma ou não com o
pensamento cristão. Mais do que isso, entretanto, Tomás de Aquino vai
sistematizar o pensamento de Aristóteles à “filosofia cristã”, que, segundo
muitos consideram, foi mais do que uma simples sistematização, mas uma obra de
luz própria, se transformando num movimento de pensamento: o tomismo.
44. Como, para Aristóteles, o
conhecimento é “adequação do intelecto à coisa” (que se pretende conhecer) e
“nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos
sentidos” – o que faz dele um empirista que apela à fundamentação sensível dos
conceitos, Tomás de Aquino não pode aceitar a assepsia conceitual do argumento
da existência de Deus, elaborado por Santo Anselmo, sugerindo cinco vias que
nos demonstram a existência divina, partindo do que se pode observar no mundo.
Vejamo-las literalmente:
A primeira via [do movimento] é
esta: tudo aquilo que se move é movido por outro (VII Física [de
Aristóteles] 21, 241b; Cmt 1). É evidente
aos sentidos que algo se move, como, por exempo, o Sol. Logo, deve ser movido
por outro movente.
Ora, esse outro movente ou é movido ou não é.
Se não é movido, confirma-se o nosso intento, isto é, o que
é necessário afirmar-se que há um movente imóvel. A este denominamos Deus.
Se, porém, é movido, então o é por outro movente. Assim
sendo, ou se deve proceder indefinidamente, ou se deve chegar a um movente
imóvel. Mas como não se pode proceder indefinidamente, é necessário por um
movente imóvel.
(...).
A segunda via [do movimento] é a
seguinte: se todo movente se move, tal proposição é verdadeira ou por si mesma
ou por acidente.
Se é verdadeira por acidente, não é necessária, visto que o
verdadeiro por acidente não é necessário. Por conseguinte, que nenhum movente
se mova é contingente. Mas se o movente não se move a si, também não move a
outro, (...). Logo, é contingente que nada seja movido, pois se nada se move,
nada é movido. Porém, Aristóteles afirma ser impossível que em algum tempo não
tenha havido movimento algum (VIII Física 1, 250b-252a; Cmt 1-3, 991). Logo, o
primeiro movente [que denominamos Deus] não foi contingente, porque de uma
inverdade contingente não se conclui uma inverdade impossível. E, assim, esta
proposição “todo movente é movido por outro” não é verdadeira por acidente.
(...).
Segue ainda o Filósofo [Aristóteles] (II Metafísica 2, 994ª; Cmt 2,299s) uma
outra [terceira] via [da causa eficiente] para provar que não se pode proceder indefinidamente nas causas
eficientes, mas que se deve chegar a uma causa primeira que é Deus. Trata-se da
seguinte via: em todas as causa eficientes ordenadas, o primeiro é causa do
intermediário, e o intermediário é causa do último, que haja só um ou muitos
intermediários. Ora, removida a causa, removido também será aquilo de que ela é
causa. Logo, removido o primeiro, o intermediário não poderá mais ser causa.
Procedendo-se, porém, indefinidamente em causas eficientes, nenhuma delas será
a primeira. Logo, todas as outras seriam removidas, visto serem intermediárias.
Mas isto é evidentemente falso. Portanto, necessário é afirmar-se que há uma
primeira causa eficiente, que é Deus.
Dos textos de Aristóteles, pode-se tirar um outro argumento
[quarta via, dos graus de
perfeição]. Mostra ele (II Metafísica
993b; Cmt2, 295ss) que as coisas ao máximo verdadeiras são também entes ao
máximo. Mas (IV Metafísica 4, 1008b; Cmt 9, 695) ele mostra que há algo máximo
verdadeiro, concluindo isso de que, por haver duas coisas falsas, sendo uma
mais que outra, deve haver também uma mais verdadeira que a outra, conforme
esteja mais próxima daquilo que é ao máximo e simplesmente verdadeiro.
Infere-se daí haver algo que é ente ao máximo. Este algo dizemos ser Deus.
Para provar o mesmo, Damasceno (I A Fé Ortodoxa 3; PG 94,
795C-D) aduz um outro argumento tirado do governo das coisas [quinta via, da causa final], indicado também pelo Comentador (II Física; Averróis c. 75). É o
seguinte: é impossível que as coisas contrárias e dissonantes estejam sempre,
ou muitas vezes, concordes em uma só ordem, a não ser que estejam também sob o
governo de alguém pelo qual é dado a todas e a cada uma dirigirem-se para determinado
fim. Ora, vemos no mundo as coisas concordes em uma ordem, não raramente nem
por acaso, mas sempre e na maioria das vezes. Deve, por conseguinte, haver
alguém por cuja providência o mundo é governado. E a este chamamos Deus (8).
45. Apesar dos dados sensíveis do
mundo, conforme Tomás de Aquino, serem imprescindíveis para o conhecimento, não
são, contudo, suficientes. O simples acúmulo de dados sensoriais não justifica
as nossas concepções. Por isso, mais uma vez seguindo a tradição aristotélica,
defende que há no homem um “intelecto ativo” capaz de ideias universais e
necessárias, capacidade esta que se exerce sobre os dados particulares adquiridos pelo
“intelecto receptivo” e ao qual denominamos “reflexão”.
46. Para as nossas linhas gerais,
é importante dar relevo à autonomia que esse pensador aquinense reconhece da
razão e da filosofia em relação à fé e à teologia, principalmente quando se
observa que a tradição cristã, embora valorizasse a filosofia, tendia a fazê-lo
como “auxiliar da teologia” e, mais raro, por dignidade própria. Ao contrário!
Se já não subserviente, a pura razão sempre foi encarada, em potencial, como
uma ameaça à fé.
47. Nos últimos anos do período
medieval, a escolástica esteve envolvida sobremaneira com a “questão dos
universais”, ou seja, com a pergunta se os conceitos (“humanidade”, por
exemplo) são reais (como defenderão os “realistas”, num extremo) ou apenas
mentais (não passando, então, de “nomes” que nos conduzem a um predicado comum a
um grupo de indivíduos, estes sim reais, como defenderão os “nominalistas”,
noutro extremo). Abrindo as portas para um novo tempo, os “realistas” redundarão
no racionalismo moderno, assim como os “nominalistas” se atualizarão no
empirismo moderno. A “questão dos universais” é importante, quando se percebe
que “Deus” é um conceito por excelência. Assim, os “realistas” querem garantir
diretamente a sua realidade, enquanto os “nominalistas” (tomando-os, naquele
contexto, como homens de fé na existência divina) querem furtá-lo ou protegê-lo
da inspeção das novas ciências empíricas que estão surgindo e que tomarão como
importantes para si somente conceitos que tenham fundamentação na experiência
sensível dos entes mundanos individuais. Deus não seria, assim, uma questão
para os procedimentos científicos, mas uma questão muito específica, somente destinada à fé numa
revelação fora do ordinário.
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(1) AGOSTINHO, Aurélio. Confissões. Tradução de J. Oliveira
Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 85.
(2) Idem, p. 92.
(3) Rom 13, 13.
(4) AGOSTINHO. Op. Cit. p. 118.
(5) Idem, p. 120.
(6) AGOSTINHO. Op. Cit. p.
217-218. Optei, no entanto, pela tradução para o português sugerida em:
PEGORARO, Olinto. A. Sentidos da história:
eterno retorno, destino, acaso, desígnio, inteligência, progresso sem fim.
Petrópolis: Vozes, 2011. p. 104.
(7) CANTUÁRIA, Santo Anselmo de. Proslógio. Tradução e notas de Angelo
Ricci. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 95-123.
(8) AQUINO, Tomás. Suma contra os gentios. Tradução de
Odilão Moura e Ludgero Jaspers. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia de
São Lourenço de Brindes (Sulina); Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul,
1990. v. I. p. 37-44.