Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





10 de dez. de 2020

TEXTO XL: Bases do Materialismo Moderno e Contemporâneo.

Rodrigo Rodrigues Alvim 

01. Estamos numa condição temporal, a qual, em geral, denominamos “mundo”, “vida”, “existência”, “realidade”, etc. Nela, as coisas vêm a ser e deixam de ser, num movimento (devir) que nos permite intuir o tempo – são as coisas que nos são dadas à nossa sensação, as coisas “visíveis”, “materiais”.

02. Apesar disso, perpassando a história, vemos surgir nesses entremeios um pretenso atemporal ou eterno, também, por isso mesmo, denominado “extramundano”, “extraordinário”, “sobrenatural”, como se o mundo “visível” e “material” não pudesse ser compreendido (quiçá existir) por si mesmo, mas somente se pressupondo esse “invisível” e “imaterial”.


03. Essa distinção se reproduz de diversas maneiras e por diversos outros nomes. Na própria constituição humana, pareceu que o corpo corresponderia ao visível, material e corruptível, enquanto a nossa capacidade de pensamento, a alma, pareceu correspondente ao invisível, “espiritual” e eterno, pensamento capaz de apreender, inclusive, para além do imediatamente fugaz aos olhos corpóreos, o permanente e incólume.

04. O caráter naturalmente precário e contingente do sensível foi, enfim, desabonado como fonte e suporte do que se apresentava como impossibilidade de ser de outro modo (o necessário e essencial, que não pode deixar de ser, imutável e absoluto).

05. Desde a antiguidade da nossa cultura, exemplos, nesse sentido, foram multiplicados. Paradoxalmente, até no movimento encontrou-se o imobilismo, como no movimento dos planetas, o “sempre e mesmo” movimento, o cíclico. Notou-se na multiplicidade do movimento de uma espécie de animal, um hábito que nos sugeriu a existência de um mesmo “instinto”. Aliás, o termo espécie já é uma expressão de uma “conformidade” entre inumeráveis indivíduos. As matemáticas também nos concatenam, desde os seus primórdios, tantas outras expressões universais, “abstratas” aos dados sensivelmente imediatos.

06. Assim, mesmo quando os primeiros filósofos da cultura grega tentaram uma compreensão do mundo prontamente manifesta a partir do próprio mundo, alheia às entidades fundantes míticas e religiosas, apresentando a “água”, o “ar”, o “fogo”, a “terra” como a origem de tudo, essa abordagem significou o salto inaugural da maneira racional de compreender o nosso mundo por si só, mas não foi suficiente para romper radicalmente com a ideia de transcendentes ao mundo, bem ilustrado no pensamento de quem é considerado o primeiro filósofo ocidental, Tales de Mileto, a quem se atribui, por um lado, a afirmação de que a “água” é a origem de tudo e, por outro lado, de que tudo está prenhe de “deuses”.


07. O “humano, mundano e profano” também foram apresentados como antitéticos ao “divino e sagrado”, reforçando essa distinção entre o transitório e o imutável, entre o material e imaterial. No período medieval ou feudal da cultura europeia, quando predominou a cosmovisão religiosa de mundo, a igreja cristã se tornou a guardiã maior desse dualismo e Deus, por sua vez, a entidade absoluta por excelência, traduzindo-se na filosofia especulativa e racionalista no supraconceito do pensamento metafísico, abstrato, dogmático e imaterial.

08. Por esse mesmo prisma, também se pode compreender em alguma medida a modernidade, pois uma de suas características marcantes é o que se nomeou “processo de secularização”. “Secular” é, por sua etimologia, aquilo que está no tempo. Trata-se, portanto, do que é imanente e não transcendente ao mundo imediatamente dado aos nossos sentidos e material.

09. No âmbito das reflexões políticas modernas, esse “processo de secularização logo se fez sentir. O antigo regime estava assentado na governança monárquica absolutista, que, por seu tuno, estava assentado na ideia do direito divino dos reis, pela narrativa de que Deus mesmo havia escolhido o primogênito humano para governar e que o rei de então era o mais próximo dessa origem. Sem detalhar, podemos ver surgindo, nesse contexto, filósofos que defenderão que o poder não advém de Deus, mas de um acordo que os homens (que assim se tornam uma comunidade) fazem entre si, seja para preservar pretensos direitos naturais (sua vida, sua liberdade, suas posses) ao modo de um John Locke, seja para assegurar simplesmente a duração da vida, ao modo de um Thomas Hobbes. Mesmo antes, por Nicolau Maquiavel, tentou-se pensar o comportamento político, em especial do governante, não mais à luz de valores etéreos, universais e transcendentes (como estabelecia a ética religiosa cristã), mas como resultado do próprio interesse humano de manter a ordem vigente, podendo inclusive recorrer a meios condenáveis ética e religiosamente, todavia efetivos para a própria manutenção do poder e do “status quo”. Portanto, o que move a política são estritamente os interesses humanos – e comumente os mais baixos – e não a observância de preceitos sagrados. Vê-se, por esses exemplos, que o pensamento moderno tendeu a esclarecer os próprios atos humanos, as suas interações e disposições por motes mundanos mesmo e não mais por motes ideais e veneráveis.


10. De igual modo, podemos encontrar os delineamentos desse "processo de secularização" na elaboração da cosmologia e física modernas. Já Galileu-Galilei defendia que os textos bíblicos não tinham interesse em tratar das coisas naturais e que, portanto, não seria coerente recorrer a eles para contrapor argumentos à sua investigação da natureza, que se pretendia comprovada por suas observações da natureza, especialmente da lua e de Júpiter - ressalvando-se que hoje se sabe que algumas de suas importantes “experiências” não eram propriamente sensíveis, porém mentais (como a ideia do movimento no vácuo e inercial). Como Galileu, também Kepler e Newton não contrapuseram os resultados de suas pesquisas naturais à teologia cristã, mas trataram de considerar que o interesse e modo de tratamento dessas duas áreas eram completamente diferentes, auxiliados por filósofos importantes, que, no contexto dos primeiros séculos da modernidade, abordaram questões de método investigativo adequado à ciência, como René Descartes e Francis Bacon, que, embora apresentando instâncias de decisão últimas do real e verdadeiro diferentes (respectivamente, a capacidade racional e a capacidade de experiência sensível), ambas instâncias eram estritamente humanas e comuns a todos os seres humanos, não dependendo de uma ocasional revelação divina, como se pensava presente na própria escrituração da Bíblia ou em outras ocorrências que consideravam sobrenaturais - os milagres. Para muitos desses pensadores da modernidade, a ordem do mundo é expressão da inteligência de um arquiteto divino e que podia o ser humano, dotado de inteligência, revelar, independentemente da ação direta de Deus. A ideia de um Deus como um relojoeiro e o mundo como o seu relógio bem ilustrava o quanto o funcionamento da criatura já não mais dependia da presença do seu criador. A inteligência do criador estava no seu relógio, mas já não era o seu próprio criador, de tal modo que, nesta distinção, Deus era transcendente (e imaterial, pois não espácio-temporal) e, como tal, completamente transcendente às capacidades humanas, e o mundo era o imanente (e material, pois submetido ao tempo e ao espaço), no qual estamos inseridos, sendo-nos acessível e passível de ser por nós perscrutado diretamente, alcançando as constantes de seus movimentos. Pouco a pouco e cada vez mais, a teoria do conhecimento moderna acreditava-se desvinculada dos pressupostos metafísicos, ainda predominantemente compreendida como o que não nos é dado imediatamente aos nossos sentidos corpóreos.


11. Essa tendência no campo epistemológico moderno alcançou o seu ápice com a ciência pensada ao modo kantiano, que tenta manter a ciência para dentro dos limites da razão humana e que se constrói a partir da experiência. Para além dos limites dessas nossas capacidades, somos incapazes de conhecimento rigoroso, ficando entregues às especulações, antinomias ou aporias lógicas, divagações e ilusões. Em contrapartida, temos aqui um “subjetivismo transcendental”, que incidirá numa efervescência filosófica chamada “idealismo alemão”, que na pena de Hegel tudo reduzirá a um “Espírito Absoluto”, a uma unidade inegavelmente metafísica, ainda que se apresente como desdobramento histórico panteico.


12. É nesse período de predominância do pensamento hegeliano que surgem as reflexões de Ludwig Feuerbach, que inclusive participa de um grupo de pensadores “revolucionários”, a “esquerda hegeliana. O importante na obra de Feuerbach é que ela se irrompe no seio da esfera que se tem inequivocamente como “metafísica”, a religião, alvejando a concepção maior da filosofia da religião, o conceito de Deus, reduzindo toda teologia a uma antropologia, ou seja, reduzindo todo o seu caráter ainda metafísico às contingências das necessidades mais mundanas do ser humano, que é a de expressão de si próprio, mas dialeticamente. Tudo o que é limite ou falta em si mesmo (subjetivo), o homem o projeta para fora de si (objetivo): se o homem conhece algumas coisas, mas não tudo, a onisciência está para além do humano; se o homem tem algum poder, mas não todo poder, a onipotência está para além dele; se o homem se faz presente aqui e agora, a onipresença é algo para além dele... Ou seja, projetamos para fora de nós mesmos o que, sendo falta em nós, se nos apresenta como objeto maior do nosso amor, acreditando que o poder infinito, o conhecimento infinito, etc., são o próprio infinito, ao qual também chamamos de Deus ou Absoluto. Em Deus se encontra maximamente o que almejamos e, assim, amamos a Deus sobre todas as coisas. E como Deus (embora assim criado por nós) nos parece ulteriormente maior do que nós mesmos, tomamo-lo não na condição de objeto (como realmente é), mas como sujeito, ao mesmo tempo que nós que o criamos disso esquecemos e nos percebemos a nós mesmos como por ele criados, na condição, pois, de objetos. Finalmente, consideramos que fomos criados por ele à sua imagem e semelhança, não obstante, em verdade, fomos nós quem o criamos à nossa imagem e semelhança. Conclui-se disso, que nem mesmo o sumo-conceito metafísico tem a existência em si e por si mesmo, mas é produto humano, não ultrapassando as cercanias mundanas. Tudo sucumbe à condição concreta do mundo humano. Estabelece-se, assim, as bases do materialismo contemporâneo, seguro que o Deus da religião está morto, por não ser precisamente como o homem religioso o pensa, mas não é irreal, quando é compreendido como a expressão máxima e infinita de tudo o que o ser humano mais ama.

26 de nov. de 2020

VÍDEO III: A Dialética Hegeliana.

 Rodrigo Rodrigues Alvim


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3 de nov. de 2020

VÍDEO II: Protágoras de Abdera e Górgias de Leontinos.

 

Rodrigo Rodrigues Alvim

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29 de out. de 2020

TEXTO XXXIX: Algumas Palavras sobre a Ética Kantiana.

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tratamos em outro texto (1) do pensamento de Immanuel Kant em relação à ciência. Segundo as razões apresentadas pela filosofia kantiana, a ciência seria o único modo de compreensão e expressão de mundo que poderia ser adequadamente denominado “conhecimento”. Isto seria o mesmo que dizer que tratamos de uma de duas de suas obras de maior referência ainda hoje, intitulada Crítica da Razão Pura, na qual Kant define a capacidade racional humana, cujos limites estabelecem o que humanamente podemos conhecer (cientificamente) e o que, estando para além das fronteiras dessa nossa capacidade racional, não podemos conhecer. Toda essa reflexão kantiana acontece, obviamente, em seu diálogo indireto com as principais considerações epistemológicas de seu contexto, da cultura europeia moderna, expressas sumamente por quatro vertentes, o intelectualismo, o empirismo, o fideísmo e o ceticismo, das quais também já tratamos em outro texto (2). Disso resultou a posição epistemológica paradigmática à transição da modernidade para a contemporaneidade filosófica europeia, a qual comumente denominamos “criticismo”, que assim pautará as dedicações das filosofias mais marcantes do início deste período histórico ao qual ainda dizemo-nos pertencer.


02. A Crítica da Razão Pura defendeu ao seu modo a tese do filósofo David Hume quanto à impossibilidade de um conhecimento da natureza pretensamente metafísico, insistindo Kant, pois, que todo conhecimento começa com a experiência do mundo, precondição da “nova” ciência, da ciência moderna a que as obras “físicas” de Galileu-Galilei e Isaac Newton estavam filiadas. Pela dialética das formas da sensibilidade e das categorias do entendimento humanas aplicada à matéria da experiência, temos para nós um mundo onde tudo acontece em arranjo necessário, expressas em leis científicas. No contexto desse “reino da necessidade”, onde as coisas só podem assim ser, a ciência é imperatriz e resultado de uma razão que reconhece os seus próprios limites, daí concluindo que muito se pode conhecer, mas não o que possa se encontrar para além desses seus limites, como a metafísica historicamente se aventurou em temas como a existência de Deus, a liberdade da alma humana, o mundo em sua inteireza.

03. Nem tudo, todavia, termina aí para Kant, o que nos revela aquela segunda obra que, com a Crítica da Razão Pura, garantiu fama ao seu autor, obra que recebeu o título de Crítica da Razão Prática.


04. A história da filosofia foi vivamente movida por atenção a dois horizontes: pelo horizonte concernente ao conhecimento humano (e verdadeiro) acerca do mundo e pelo horizonte concernente ao agir humano (e virtuoso) no mundo. Para Kant, é a ciência que adequadamente realiza o primeiro, sendo a ética a realização do segundo. Se a ciência cuida do conhecimento do “reino da necessidade”, conforme ao que no mundo é ou pode ser, a ética nos reporta à ação humana no “reino da liberdade”, conforme ao que deve ser. Se no primeiro reino o homem se submete à experiência do mundo – o que faz da ciência obrigatoriamente “antimetafísica”, no segundo reino o homem decide sem levar em conta o que o mundo possa lhe oferecer, o que, neste sentido, faz da ética uma manifestação “metafísica”. 

05. Compreendamos isso melhor, mas já tomando por certa a nossa compreensão da concepção dessa ciência “antimetafísica” em Kant, pelo que, já dito, tratamos em outro lugar, de maneira que agora ficamos tão-só disponíveis à abordagem ética.

06. Como a responsabilidade da ação humana só pode ser atribuída ao sujeito da ação enquanto sujeito livre, Kant não permite uma associação da ética à “heteronomia” ou, em outras palavras, da decisão do agir por uma adesão a uma norma ou regra originalmente estranha ao sujeito da ação e, neste sentido, “mundana”. A determinação da ação do sujeito deve se dar a partir da consciência que ele é e a partir da qual ele, portanto, responde ao que o contexto lhe coloca. Então, Kant propõe uma decisão que acontece no mundo em que o humano se insere, mas que não se impõe pelo mundo ao humano. A responsabilidade e virtuose éticas evocam “autonomia” do sujeito. Veremos, contudo, que esta decisão subjetiva não é relativa ou arbitrária, porém, muito pelo contrário, é ela, por princípio, universal, pois radica na consciência de todo e qualquer ser humano, uma vez que, para Kant, como igualmente presente em sua epistemologia, o que nos faz especificamente humanos é compartilharmos de uma mesma estrutura psíquica ou mental, uma consciência ou razão que Kant chama de “transcendental”, de tal modo que todas as particularidades são, para ele, aquisições posteriores que, aqui, não devem ser levadas em conta. Essas aquisições “a posteriori” são de interesse de uma antropologia empírica (que hoje denominaríamos predominantemente de cultural). À antropologia “transcendental” kantiana, somente aquela estrutura formal e inata em todo e qualquer ser humano importa na garantia de uma instância que seja, por consequência, universal ao humano e universalizante do humano.

07. Observa-se, então, que Kant, em sua obra ética Crítica da Razão Prática retorna à sua concepção do sujeito transcendental, cuja estrutura não se define pelos contextos acidentais vividos por cada ser humano, mas por aquilo que ele é aprioristicamente, como que antes de toda e qualquer experiência sua no mundo ou contextualização particular. Para Kant, o sujeito transcendental é constituído do que ele denominou “imperativos categóricos”, de mandatos de ação presentes em toda consciência humana e que se fazem ouvir no sujeito que, estando no mundo, tem que tomar decisões em conformidade com essa sua própria consciência transcendental, incondicional, garantindo-lhe, assim, a sua liberdade, responsabilidade e decisão eticamente adequada. Escreve Kant:

“Proposições fundamentais práticas são proposições que contêm uma determinação universal da vontade, « determinação » que tem sob si diversas regras práticas. Essas proposições são subjetivas ou máximas, se a condição for considerada pelo sujeito como válida somente para a vontade dele; mas elas são objetivas ou leis práticas, se a condição for conhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ente racional.” (3).

08. Esses “imperativos categóricos” que devem nos nortear a todos e não somente a alguns e em determinadas situações são diferentes dos “imperativos hipotéticos”, pois enquanto estes últimos visam a determinados fins no mundo, sendo a sua fórmula “se (queres) X, então (faças) Y”, aqueles primeiros não estabelecem propriamente finalidades ou, na insistência de se manter tais termos, só se poderia dizer que eles têm fins em si mesmos, na própria consciência transcendental dos quais são constitutivos, na humanidade, jamais admitindo o próprio humano como meio, sendo a sua fórmula simplesmente “(deves) W”, quando, pois, à possível pergunta “mas, por que devo?”, não se tem resposta em outra coisa, senão nele mesmo: devo porque devo.

09. Quem, pois, assim não decide, porém decide pelo que o mundo, o seu contexto, possa naquele momento lhe impor como determinação de sua ação, torna-se escravo do mundo, não é livre, é “heterônomo” e se põe tutelado ao mundo, à experiência do mundo, como se assim não houvesse ainda saído de uma menoridade moral. Eis, para Kant, a lei fundamental da razão prática pura:

“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal.” (4).


10. Como palavras finais, deixo as palavras finais do próprio Kant em sua obra Crítica da Razão Prática, num paralelo breve do que tratou nesta obra (a ética) e o que tratou na Crítica da Razão Pura (a ciência):

“Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas; o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. Não me cabe procurar e simplesmente presumir ambas como envoltas em obscuridade, ou no transcendente além de meu horizonte; vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a consciência de minha existência. A primeira começa no lugar que ocupo no mundo sensorial externo e estende a conexão, em que me encontro, ao imensamente grande com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, além disso, ainda a tempos ilimitados de seu movimento periódico, seu início e duração. A segunda começa em meu si-mesmo [Selbst] invisível, em minha personalidade, e expõe-se em um mundo que tem verdadeira infinitude, mas que é acessível somente ao entendimento e com o qual (mas deste modo também ao mesmo tempo com todos aqueles mundos visíveis) reconheço-me, não como lá, em ligação meramente contingente, mas em conexão universal e necessária. O primeiro espetáculo de uma inumerável quantidade de mundos como que aniquila minha importância enquanto criatura animal, que tem de devolver novamente ao planeta (um simples ponto no universo) a matéria da qual ela se formara, depois que fora por um curto espaço de tempo (não se sabe como) dotada de força vital. O segundo espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente meu valor enquanto inteligência, mediante minha personalidade, na qual a lei moral revela-me uma vida independente da animalidade e mesmo de todo o mundo sensorial, pelo menos o quanto se deixa depreender da determinação conforme a fins de minha existência por essa lei, que não está circunscrita a condições e limites dessa vida mas penetra o infinito.”

“No entanto, admiração e respeito podem, em verdade, estimular a investigação, mas não substituir a sua falta. Que é que se precisa, pois, fazer para pôr em marcha esta investigação de modo útil e adequado à sublimidade do objeto? Exemplos podem servir aqui de advertência, mas também para a imitação. A contemplação do mundo começou do mais grandioso espetáculo que só os sentidos humanos podem sempre oferecer e que só o nosso entendimento, em sua vasta abrangência, pode sempre suportar perseguir, e terminou – na astrologia. A moral começou na mais nobre propriedade da natureza humana, cujo desenvolvimento e cultura voltam-se a uma utilidade infinita, e terminou – no fanatismo [Schwärmerei] ou na superstição. Assim se passa com todas as tentativas ainda rudes, nas quais a parte mais nobre do ofício depende do uso da razão, que não se verifica por si mesmo, como o uso dos pés, pelo exercício frequente, principalmente se ele concerne a propriedades que não podem apresentar-se tão imediatamente na experiência comum. Mas depois que, embora tardiamente, entrou em voga a máxima de examinar antes bem todos os passos que a razão se propõe dar, e de não a deixar seguir o seu curso de outro modo que na linha de um método bem refletido o ajuizamento do sistema do universo tomou uma direção totalmente diversa e, com essa, ao mesmo tempo uma saída incomparavelmente mais feliz. A queda de uma pedra, o movimento de uma funda, resolvidos em seus elementos e nas forças que neles se mostram e elaborados matematicamente, produziram enfim na estrutura do mundo aquela perspiciência clara e imutável para todo o futuro, que pela observação continuada só pode esperar ampliar-se sempre, mas jamais deve temer que tenha de voltar atrás. 

“Aquele exemplo pode aconselhar-nos a encetar agora este caminho no tratamento das disposições morais de nossa natureza e dar-nos esperança de um bom êxito semelhante. Pois temos à mão os exemplos da razão que julga moralmente. Ora, analisando-os em seus conceitos elementares, propondo-se – mediante repetidos ensaios sobre o entendimento comum – na falta da Matemática, um procedimento, contudo, semelhante à Química, de separar o empírico do racional suscetível de encontrar-se neles, podem ambos os elementos ser com certeza reconhecidos por nós em sua pureza e o que cada um possa por si só realizar. Deste modo pode em parte evitar-se a desorientação de um ajuizamento ainda rude e pouco exercitado e, em parte (o que é de longe mais necessário), as extravagâncias do gênio, pelas quais, como sói acontecer com os adeptos da pedra da sabedoria, sem nenhuma investigação metódica e nenhum conhecimento da natureza são prometidos tesouros sonhados e são dissipados tesouros verdadeiros. Em uma palavra, a ciência (buscada criticamente e introduzida metodicamente) é a porta estreita que conduz à doutrina da sabedoria, se por esta não se entender simplesmente o que se deve fazer, mas o que deve servir de norma a mestres para aplanar bem e demarcadamente o caminho da sabedoria, que cada qual deve seguir, e proteger a outros de caminhos falsos; uma ciência cuja guardiã tem que permanecer sempre a Filosofia, em cuja investigação sutil o público não tem de tomar nenhuma parte, mas certamente nas doutrinas, que após uma tal elaboração podem tornar-se pela primeira vez verdadeiramente claras a ele.” (5).
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(1) “Immanuel Kant e a ciência”. 
(2) “Traços da filosofia moderno” 
(3) KANT, Immanuel. Crítica a razão prática. Tradução, introdução e notas de Valerio Rohden. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. p. 31-32. 
(4) Idem. p. 51. 
(5) Idem. p. 255-258.

5 de out. de 2020

VÍDEO I: Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia.


Rodrigo Rodrigues Alvim

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