Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





20 de out. de 2010

TEXTO X: O Espírito na Figura de um Pássaro

Rodrigo Rodrigues Alvim

À Luísa itinerante,
para que não se canse jamais.


I – ESTRANHAS PASSAGENS

Demos asas à nossa imaginação; façamo-nos alados; imaginemo-nos pássaros! Pássaros diversos, cada qual mantendo-se para simplesmente cumprir o modus vivendi instintivo da sua espécie. Voemos mais alto e imaginemo-nos, a seguir, envoltos numa Conferência entre os mesmos de nosso gênero: aves; aves capazes de voar.


O tema de tal Conferência é o mais alto de toda a existência, pois pergunta pelo sentido desta mesma: aos pássaros, o sentido da vida alada. Para reger este diálogo, ninguém melhor do que a Poupa, visto que, em nossa própria iconografia ocidental, é a coruja o símbolo maior da sabedoria, "o pássaro de Minerva (que, segundo a mística-filosófica de Hegel,) só alça vôo ao entardecer", (1) quando todas as coisas já estão como que postas em seu justo lugar, tudo, enfim, podendo ser absolutamente contemplado em sua verdade.

Ao leitor, que assim se fez novamente criança, destina-se um convite para prosseguir-se nesta viagem, da qual o roteiro pormenorizado dá um livro titulado Conferência dos pássaros, (2) arquitetado por um místico-poeta muçulmano, chamado resumidamente entre nós de Attar. Mas como místico-cristão que já fez igual viagem, podemos ter Agostinho por companhia. Esta sua experiência, ele nos testemunhou em suas Confissões (3), relato de uma vida que se tornou obra literária e filosófica.

Antes, porém, algumas advertências necessárias.

É geralmente nos momentos de uma forte transição qualquer, quando toda verdade nos parece engodo, que toda verdade possível paradoxalmente se nos coloca: a vida é uma trama, um infinito emaranhado do qual somos senão um ínfimo e apagado nó, que somente tem relevância para nós mesmos, que o somos, ou para tantos outros nós, que têm em nós um de seus apoios. Como embriagados, estamos todos embebidos deste absoluto: tudo parece então assim mesmo, simples, mas sublime; simples, mas intenso. Logo, como a vida (este brincar que a criança ainda sabe que pode ser assim ou de outra forma - e a melhor forma sempre será aquela em que porventura ninguém se machuque -), aconselho que a primeira leitura deste texto seja feita correntemente, sem os apartes das notas de rodapé. Deixemos tais análises para uma segunda leitura, deixemos para sermos "sóbrios" filósofos depois. Para quem é neo-ingresso neste tipo de conteúdo, perderá um pouco analiticamente, mas para ganhar em muito, por imediato, daquilo que a filosofia ocidental não pode mais modernamente nos dar, porque somente nos deu quando ainda e reconhecidamente próxima das tragédias e dos mitos (4). Não exijam, portanto, de si próprios, nesta primeira leitura corrente, um entendimento conceitual do discurso, porém deixe que este siga seu curso e se discurse sem distâncias críticas. Procure, primeiramente, enfim, compreender "por dentro" (sempre "às avessas" para os racionalistas). Mais tarde, à sua hora, mas somente se quiser, aventure-se num entendimento segundo o qual as coisas podem ser observadas "de fora", porque, antes, nós mesmos já nos teríamos posicionado "de fora" das próprias coisas. Afinal, esta não é uma odisséia menos emocionante para quem a inicia, apesar de também não ser menos decepcionante para quem chegou ao seu termo, ainda se perguntando pelo sentido do que se descobriu.

Se pela imaginação estamos a confirmar a tradição ou a apontar o novo e nele apostar, não é esta distinção que aqui nos importa decidir, depois que já se sabe que mesmo em nossos momentos mais revolucionários ainda ecoa os dizeres que, certa vez, alguém, que se fez conservador, deixou escapar à sua pena... A saber, que mesmo todo preconceito não passa de uma razão esquecida (5).

A quem insistir em continuar esta sua leitura - embora sem muito entender, é bem provável, e mais provável que assim continue -, resta-nos desejar uma boa viagem até ao que é verdadeiramente digno de nossa atenção, morada incomparável a quem resistiu aos múltiplos obstáculos que o presente mundo coloca à realização deste mais alto vôo.


II - A LINGUAGEM POÉTICA DOS PÁSSAROS

Já em meados do século XII da era cristã, período de composição do grande poema filosófico-religioso Mantiq-at-tair (Conferência dos pássaros) de Farid ud-Din Abu Hamid Muhammad bem Ibrahim (Attar), o mundo árabe bem conhecia a filosofia grega, mormente o pensamento de Aristóteles; conhecia-o, aliás, muito antes que o mesmo viesse romper a então sólida cultura medieval do ocidente, assentada na teologia e na filosofia patrísticas, sistematizadas na pena de Agostinho. Apesar da expansão da religião islâmica, a filosofia e a ciência gozaram de uma autonomia entre os muçulmanos então inadmissível entre os cristãos, para quem o grande desafio era compatibilizar o pensamento grego à mensagem de Jesus, a filosofia à religião, a razão à fé. Para os primeiros padres, a filosofia devia se fazer serva ou simples auxiliar da teologia. Desta mesma forma também pensarão os padres ulteriores, muitos dos quais denominados escolásticos, embora Tomás de Aquino, o seu maior expoente, a quem a Igreja confiara a "cristianização" da obra aristotélica, fosse mais otimista no que tange à impossibilidade de um conflito entre o logos e a Revelação. Surpreendentemente, foi a própria Igreja que arquitetou e incentivou a criação dos centros que visavam abarcar todo o conhecimento humanamente adquirido até aquela ocasião, as universidades. E nestas, tolerou a admissão de grandes mestres árabes (6). Porém, enquanto os doutores da Igreja buscavam tecer um discurso lógico acerca de Deus, os seus místicos e os sufis do Islã logo compreenderam que o registro sobre o qual se elevava a fé era inequivocamente o emocional, aquém ou além do qual estaria o registro racional, este, portanto, sempre inapropriado para dizer a experiência humana de Deus, ou melhor, para dizer da revelação do divino ao humano. O próprio Corão, o divino "enlivrado", fez uso de uma língua em sua nascente e que por isto ainda guardava características polissemânticas que, mais tarde, só poderão ser recuperadas pela linguagem poética, assentada antes no registro emocional do que no racional, incomparavelmente naquele primeiro, a ponto de considerar aquele último um reducionismo traiçoeiro para a verdade.

Assim, ciente destes estreitos limites do "milagre grego", certamente melhor expresso na obra de Aristóteles, que bem dissecou os "princípios" da razão, do logos, em seu Organon - a inestimável lógica do Ocidente, a “ferramenta” ou o “instrumento” com o qual a razão trabalha (analisa) e busca explicar e dominar o que é -, Attar recusa o uso deste artifício grego, adotando, entretanto, o que originalmente este povo tem de comum aos demais, recurso das sentinelas de sua origem e de seus heróis, ou seja, dos aedos ao cantarem os seus mitos: a linguagem poética.

Na sua "Invocação", abertura da obra, não são poucas as vezes em que Attar renega a razão como veículo do que se seguirá e, por conseguinte, como filtro de leitura do que se oferece.

Diz Attar que "quando o homem entrou na posse de suas faculdades, confessou sua impotência e foi dominado pelo assombro..." (7). Ora, este "assombro" ou espanto é expressão de um mundo encantado (M. Weber), no qual o homem ainda não se sente senhor do mundo, mas, sim, envolvido por ele, num sentimento inigualável de pertença e de sujeição, ao mesmo tempo que de uma grandeza sua que, entretanto, não tem sua sede em si mesmo, mas para além de si próprio, do qual é apenas partícipe. Consequentemente, tal atitude está longe da razão instrumental que, paulatinamente, mais situa o homem diante da natureza do que nela mergulhado (M. Merleau-Ponty), fazendo-o, enfim, frio e pretensamente dominador, nele finalmente apagando o registro das emoções.

A grandeza infinita e eternidade de Deus para todo além da finitude humana é o que permite Attar escrever, em outra parte, que "o conhecimento e a ignorância (de Deus) são neste caso a mesma coisa, pois não explicam nem descrevem; (...): bem ou mal, eles (os homens) o disseram de si mesmos. Deus está além do conhecimento e além da evidência, e nada pode dar idéia da sua Sagrada Majestade" (8). Se "todas as almas levam uma impressão da imagem da pena", isso é, de Deus, também deve se dizer que "todos fizeram um desenho da pena e dela formaram seu próprio sistema de idéias, do que resultou caírem numa confusão" (9).

Daí, a procura de Deus dar-se-á por um caminho que não satisfaz os anseios racionais, porque antes a razão não satisfaz os requisitos suficientes para essa procura: Deus "não se manifesta abertamente nem mesmo no local de sua habitação, e a esta nenhum conhecimento e nenhuma inteligência podem chegar. O caminho (...). (...), nem pode a razão compreendê-lo: (...)" (10). O próprio caminho ascético, então, será expresso através de uma linguagem poética, imagética e simbólica. Esta será a linguagem dos "pássaros", eles mesmos já expressos por esta mesma linguagem. Attar, todavia, é coerente: não se descreverá sequer poeticamente o achado desta ascese mística, mas tão-somente tal ascese, a rota daqueles que foram capazes, enfim, de "transpor a porta", (11) contemplar e dissolver-se irreversivelmente na Essência de Deus, pois, "quando te houveres aperfeiçoado – escreve Attar –, deixarás de existir. Mas Deus subsistirá", (12) tal como acontecera ao termo ascético da “terceira mariposa” (13). A poesia não é o fiel recurso humano para comunicar a experiência mística tal e qual; parece, entretanto, ser a mais apta e próxima às condições humanas, quando já se dispensou o silêncio.


III - A ROTA ASCÉTICA DOS PÁSSAROS

3.1 - AMAR A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS

Se a razão em seus limites sempre se encontra muito distante da infinita riqueza de Deus, também as emoções dela podem igualmente nos afastar, se dirigimos o alvo de nossos sentimentos mais nobres – como o amor, sobretudo –, às coisas criadas por Deus, mas fugazes. Deste parecer vem o preceito da Poupa ao Rouxinol que, amante e amado da Rosa, sente-se detido para perseguir o difícil "caminho" para Deus: "Abandona a Rosa e enrubesce-te por ti mesmo: pois ela se ri de ti a cada nova primavera e depois já não mais sorri" (14).

Em verdade, o amor a Deus deve estar acima de tudo, inclusive acima do amor a si próprio. Percorrer o "Caminho" para o encontro com Deus deve implicar a renúncia à própria vida, conforme as palavras da Poupa à argumentação do Papagaio. (15) Deus deve ser, portanto, a maior e única meta (discurso da Poupa ao Pavão): "Se podes ter o oceano ('o Altíssimo é um vasto oceano'), por que procuras uma gota do alijôfar vespertino ('o paraíso da bem-aventurança terrena não passa de uma gotinha')?" (16).


3.2 - SOBRE UMA APARENTE CONTRADIÇÃO

3.2.1 - Colocação do Problema

Se o registro das emoções é a raiz da fé e da experiência divina, a qual só se comunica o mais aproximadamente de maneira figurativa, como aqui se tentou sustentar, por que a quinta parte da obra de Attar conclui-se afirmando que "os habitantes do Paraíso sabem que a primeira coisa a que devem renunciar é o coração" (17)?

3.2.2 - Resolução do Problema e a Confirmação do Amor a Deus sobre Todas as Coisas

A renúncia ao coração é, em verdade, a confirmação absoluta da mesma na realização do amor extremo que, deixando de se dispensar pelas coisas menores, volta-se somente para o único que está acima de tudo, pois se "a vida foi cedida para que possas, por um instante, ter um digno amigo" (18), o único amigo indubitavelmente digno é Deus, que disse desde Adão: "(...) venha a atar-me somente a mim, seu verdadeiro amigo" (19). Esta é a renúncia do coração do qual fala Attar: ter todo o coração voltado para o Deus único, amando-o sobre todas as coisas.

Apesar da água, como quer o Pato, ou das pedras preciosas, como quer a Perdiz, ou ainda do mar, como quer a Garça, terem o seu valor, a "água não é estável" (20) e "o mar é um elemento sem lealdade" (21) como advertiu a Poupa, nem "o rumo das jóias é eterno", (22) como, ao contrário, defende a Perdiz. Tudo isto é corruptível, somente Deus é eterno. Portanto, somente nele devemos nos fiar e somente ele tem real poder sobre todas as coisas, conforme a parábola de "Mahmud e o Sábio" que a Poupa narra ao "Humay", que se vangloria de sua sombra, ao abrigo da qual se adquire poder sobre a natureza, ou do "Escravo de Prata" que a mesma narra ao Falcão, que se contenta com a simples preferência e companhia dos reis temporários.

Eis, então, resumidamente, no que consiste a defesa da Poupa: ninguém se satisfará pelas contingências do mundo, pois tudo no mundo só se satisfaz em Deus, o verdadeiro amigo. Até o oceano diz: "Sinto-me perturbado, porque estou separado do meu amigo" (23). Nem o ouro é capaz de representar o que deve ser o mais alto propósito da vida, a fim de que esta não se desfaça em vão, segundo disse a Poupa à Coruja (24). Alegar qualquer tipo de limite para ousar buscar a Deus não se justifica, ainda que isto queira assumir a aparência de humildade, como intentou o Pardal (25). Em Deus e somente nele está a completude e, por isso, o sentido de tudo. Nisto reside o amor ao único amigo digno de nosso amor.


IV - A EXPERIÊNCIA ÚNICA DE DEUS

O polimorfo Agostinho, místico do Ocidente cristão, mas também teólogo, isto é, aquele que almeja construir um discurso racional acerca de Deus, antecipa, em sua parte do mundo, o reconhecimento da dignidade relativa das criaturas. Como Attar, do qual a Poupa é a grande porta-voz, Agostinho contraria o pensamento platônico ou afim de que as coisas mundanas são radicalmente negativas. Sendo por Deus criada - como os próprios pássaros são as sombras de Deus, segundo Attar -, a natureza encanta Agostinho. Todavia, esta, na hierarquia dos seres, é, enquanto criatura, menor do que aquele que a criou. As coisas, por si mesmas, não se justificam, nem são causa sui. Relativamente umas às outras ou relativamente a sua causa primeira, todas têm uma "imperfeição ontológica", sem a qual todos seriam a mesma coisa, e esta mesma coisa, igual a Deus.

Logo, também para Agostinho, diante da hierarquia dos seres, devemos negar o menor em favor do maior, que, em última instância, é Deus.

As semelhanças, todavia, entre este cristão dos primórdios do medievo e as construções imagéticas de Attar seguem. Quando os pássaros interpelam a Poupa sobre Deus, fazem-no assentadas no mesmo preceito agostiniano, segundo o qual ninguém busca o que já não possui de algum modo ou, de outra forma, ninguém pode querer conhecer o que desconhece completamente. Afinal requerem os pássaros à Poupa: "Dize-nos alguma coisa sobre esse maravilhoso Ser, nem que seja por meio de um símile, se não, cegos que somos, nada perceberemos do mistério" (26). E a resposta da Poupa há de confirmar a primazia do coração sobre o entendimento neste encalço, assim como a vontade para Agostinho determina inclusive sobre o que nosso entendimento se debruçará. Diz a Poupa: "Na verdade, nenhum olho é capaz de contemplar-lhe a beleza e maravilhar-se dela, nem é capaz de entendimento; não podemos sentir-nos, em relação a Simurgh [a divindade], como nos sentimos em relação à beleza deste mundo. Mas por sua graça abundante ele nos deu um espelho onde ele se reflete, e esse espelho é o coração" (27). Também em todos os lugares, fora dele, Agostinho afirma ter procurado Deus, recorrendo a quase todas as grandes filosofias de sua época, e, no entanto, encontra-o, por fim, no mais íntimo de si mesmo, no coração, sede dos sentimentos, e que lhe faz lamentar:

“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém chamaste-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o, suspirando por Vós. Saboreei-vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo de vossa paz” (28).
Ora, em suas "Confissões", este encontro de Agostinho não se faz à luz de qualquer doutrina filosófica, mas, sim, depois de uma ascese, à luz de uma contemplação mística. Agostinho, então, inaugura a "teologia negativa", segundo a qual, pela linguagem lógica e coerente, não podemos edificar a imagem precisa de Deus; podemos comunicar o que ele não é, mas jamais fielmente o que ele é. Haverá, então, três tipos de acesso a Deus, uma direta e duas indiretas: a ascese, a linguagem figurativa e a "teologia negativa", respectivamente, isto é, a mística, a poesia e, somente no mais distante, a razão.

Seguem-se páginas, nas quais Attar elenca uma série de lendas e histórias de sufis devotos, toda ela contada pela Poupa no decorrer do caminho, (29) a fim de que os pássaros nele se mantivessem, mas ao termo do qual, apenas trinta chegam. Trinta! Um número significativo, mas sem importância matemática (si-murgh) (30). E é aqui que se realiza também o cume da aproximação de dois grandes místicos de mundos um tanto estranhos entre si: de tudo se despojando, só lhe restando o mínimo de si, a sua essência, aí Agostinho descobre a divindade. Ou seja, no encontro de si ocorre coincidentemente o encontro de Deus; no encontro consigo, o encontro com Deus. No ápice do vôo dos pássaros, a surpresa é a mesma, e o próprio Attar deve novamente nos dizê-la:

"Quando [os trinta pássaros] se viram totalmente em paz e alheados de todas as coisas, perceberam que o Simurgh se achava ali em sua companhia e que uma nova vida começava para eles no Simurgh. Tudo o que haviam feito anteriormente se apagou. O sol da majestade emitia seus raios, e, no reflexo do rosto de cada um, os trinta pássaros (si-murgh) do mundo exterior contemplaram o rosto do Simurgh do mundo interior. Isso os espantou de tal maneira que não sabiam se ainda eram eles mesmos ou se se haviam transformado no Simurgh. Afinal, num estado de contemplação, compreenderam que eram o Simurgh e que o Simurgh era os trinta pássaros. Quando fitavam os olhos nele, viam que, de fato, o Simurgh lá estava, e, quando voltavam os olhos para si mesmos, viam que eram o Simurgh. E, dando tento de ambos ao mesmo tempo, de si próprios e dele, compreenderam que o mesmo eram eles e o Simurgh. Ninguém no mundo ouviu jamais coisa igual a essa" (31).



V - A IMAGEM DE DEUS EM NÓS

"Todas as almas levam uma impressão da imagem da pena" (32), do Simurgh.

A nossa história expõe-nos incontáveis nomes, que, partindo do pressuposto de que este nosso mundo teve origem, não se cansaram de procurar, nas múltiplas criaturas desta vida, a marca do seu criador. Agostinho, por exemplo, tendia a desdobrar todas as coisas em três como reflexo da trindade divina; René Descartes, muito mais tarde, sustentou, ao seu modo, que a vontade humana, porque infinita, era a própria imagem de Deus em cada um de nós, finitos em entendimento, todavia; os iluministas, defensores da religião natural, por sua vez, advogaram as leis imutáveis da natureza como expressão maior da própria vontade perfeita – e, portanto, fixa – do grande arquiteto do universo...

Tal marca, porém, pode não ser algo, mas, sim (e por que não?), a sua falta, a falta de algo: ausência! Ausência tão ardente no humano de nós que para ele construímos um nome todo especial, quase que próprio... O termo “saudade”. Claro que a saudade cotidiana pede sempre um objeto, um “complemento nominal”, posto que todo aquele que possui saudade, possui-a de alguma coisa (33). Mas isto é expressão apenas de uma saudade que se quer, ansiosamente, saciar-se, nisto ou naquilo, não importa. Importa imediatamente é criar a ilusão de que se sabe perfeitamente o que se fazer para sair de tal ardência de coração e apelo de mente... Contudo, mesmo quem nunca tenha tido nada do que se lembre, busca... Busca no calor de uma saudade que o consome durante toda a vida, que nele está sempre, mesmo que já na ocasião do seu leito de morte, ainda que apaziguado pelo cansaço de quem por longo tempo e intenso esforço se debateu ao encalço... Ao encalço... Ao encalço de quê? – retorna a pergunta. Eis a saudade que em nós habita aparentemente sem que saibamos porquê (ou “pelo que”), uma vez que nenhuma coisa ou pessoa pode definitivamente preencher este “quê”. A saudade é ontológica: simplesmente é raiz em nós. Seu alvo transcende às particularidades das condições que perfilam o mundo em nosso entorno. E, sem este mundo portanto, só nos resta nós mesmos, sem termos aonde pousar para um pouco descansar. Ou, de outro modo, só nos resta continuar voando em viagem adentro de nossas próprias profundezas, na vivaz esperança de que sejamos, um dia, arrebatados e acolhidos no conforto mítico do colo-mãe.

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1) Diz Hegel “que a filosofia chega sempre tarde. Como pensamento do mundo, aparece no tempo somente depois que a realidade tenha consumado seu processo de formação e se ache já pronta e terminada”. E então completa mais adiante: “Quando a filosofia pinta com seus tons cinzentos, já envelheceu uma figura da vida que suas penumbras não podem rejuvenescer, mas apenas conhecer; a ave de Minerva só levanta vôo ao entardecer”. (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich apud LEOPOLDO E SILVA, Franklin et al. História do pensamento: do iluminismo ao liberalismo econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1989. v. 3, p. 532).
2) ATTAR, Farid ud-Din. A conferência dos pássaros. Tradução de Octavio Mendes Cajado. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1993. Esta é a edição “seca” a que nos referimos para as nossas citações. Uma edição integral e comentada é encontrada em ATTAR, Farid ud-Din. A linguagem dos pássaros. Tradução de Álvaro de Souza Machado e Sérgio Rizek. 2. ed. São Paulo: Attar, 1991.
3) AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
4) A filosofia ocidental, da qual aqui se fala, resume-se naquela que se limitou, ela mesma, a fazer uso exclusivamente da razão dita “instrumental”. O mesmo filósofo que rigorosamente a defendeu na contemporaneidade – ao afirmar que “o método correto da filosofia seria precisamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer; portanto, proposições da ciência natural” –, admitiu igualmente “que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados”, pois o sentido da vida estaria para além do campo da razão instrumental: “Há por certo o inefável. Isso se mostra [mas não se pode dele falar racionalmente], é o Místico”. (WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus lógico-philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1994. p. 279-281).
5) “O preconceito, veste de uma razão oculta! Esta notável reabilitação [promovida por Edmund Burke em suas Reflexões sobre a Revolução Francesa] impressionará vivamente Taine que, em As Origens, repetirá: o preconceito, ‘espécie de razão que se ignora’, ‘como o instinto, forma cega da razão’. E Barrès, discípulo de Taine, daí tirará uma imagem bem conhecida: ‘Cubramo-nos com nossos preconceitos, eles nos aquecem’”. (CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. Tradução de Lydia Cristina. 8. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2001. p. 229).
6) Deve-se ressaltar que a tolerância da Igreja para os não-cristãos era algo não dispensado aos próprios cristãos, pois tendo estes, segundo ela, e diferentemente daqueles primeiros, nascidos já na verdade, era rigorosamente inconcebível que, uma vez cristãos, não pensassem e agissem em conformidade com os dogmas da Igreja, ou seja, com a verdade absoluta que, uma vez revelada alguém, faz deste seu eterno prisioneiro. Desde então, somente uma vontade má pode romper estas cadeias. (Cf. KAMEN, Henry. O amanhecer da tolerância. Tradução Alexandre Pinheiro Torres. Porto: Inova, 1968. p. 20-22).
7) ATTAR. A conferência dos pássaros. Op. cit. p. 13.
8) Ibidem, p. 14.
9) Ibidem, p. 23, itálico nosso.
10) Ibidem, p. 22.
11) Ibidem, p. 16.
12) Ibidem, p. 19.
13) “Uma noite as mariposas reuniram-se atormentadas pelo desejo de unir-se à vela. Disseram todas: ‘Temos de encontrar alguém que possa dar-nos notícias de nossa busca amorosa’. Uma mariposa foi então até um distante castelo e avistou no interior a luz de uma vela. Ela retornou e contou o que havia visto: pôs-se a fazer a descrição da vela de acordo com sua inteligência. Porém a sábia mariposa que presidia a reunião advertiu que a mariposa exploradora nada sabia sobre a vela. Outra mariposa aproximou-se da luz e tocou com suas asas a chama: a vela foi vitoriosa, e a mariposa vencida. Esta última também retornou e revelou qualquer coisa a respeito do mistério; explicou, segundo sua própria experiência, em que consistia a união com a vela. Porém a sábia mariposa lhe disse: ‘Tua explicação não é melhor que aquela que foi dada por tua companheira’. Uma terceira mariposa voou, ébria de amor, e atirou-se violentamente contra a chama da vela: impulsionada por suas patas traseiras, ela estendeu ao mesmo tempo suas patas dianteiras em direção à chama. Perdeu a si mesma e identificou-se alegremente com a chama; abraçou-a por completo e seus membros tornaram-se vermelhos como o fogo. Quando a sábia mariposa, chefe da reunião, viu ao longe que a vela havia identificado o inseto consigo mesma e lhe havia dado sua aparência, disse: ‘A mariposa conheceu o que queria saber; porém somente ela o compreende e eis tudo’”. (ATTAR. A linguagem dos pássaros. Op. cit. p. 218-219).
14) Idem. A conferência dos pássaros. Op. cit. p. 25.
15) Cf. ibidem, p. 26-27.
16) Ibidem, p. 28.
17) Ibidem.
18) Ibidem, p. 26.
19) Ibidem, p. 28, itálico nosso.
20) Ibidem, p. 30.
21) Ibidem, p. 35.
22) Ibidem, p. 30.
23) Ibidem, p. 36.
24) Cf. ibidem, p. 37.
25) Cf. ibidem, p. 31.
26) Ibidem, p. 41.
27) Ibidem.
28) AGOSTINHO, op. .cit. p. 285.
29) Cf. ATTAR. A conferência dos pássaros. Op. cit. p. 54-139.
30) Si-murgh, em persa, significa “trinta pássaros”; metaforicamente, a própria divindade.
31) ATTAR. A conferência dos pássaros. Op. cit. p. 141-142.
32) Ibidem, p. 23.
33) “A preposição de funciona no sistema de transitividade, isto é, introduz complemento”. (NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: UNESP, 2000. p. 644). “O complemento nominal vem regido de preposição e refere-se a substantivo e adjetivo de sentido relativo, incompleto”. (MELO, Gladstone Chaves de. Gramática fundamental da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. p. 214). Exemplo: “Saudade de torrão natal”. (Ibidem).

18 de out. de 2010

TEXTO IX: Segunda Reflexão: Relação entre Ceticismo e Filosofia


Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tem sido um erro apresentar o ceticismo como avesso à filosofia. Isso pode decorrer do imobilismo último do nosso pensamento binário: ou é ou não é. Assim, enquanto houver dúvida não há saber, mas onde há saber não há dúvida.

02. Muito pelo contrário, penso que o ceticismo é o avesso da filosofia, o que somente pode ser bem compreendido por um pensamento dinâmico ou dialético. O "avesso de" é aquilo que está pelo contrário do que tomamos por direito ou pela parte da frente, mas, não menos, é aquilo que está sempre junto. Se assim é, não há filosofia sem a dúvida, assim como a dúvida só se faz onde acontece um pretenso saber.

03. Neste sentido, tivemos um filósofo e professor no Brasil, Gerd Bonheim, que, certa vez, publicou uma obra introdutória de filosofia (1) que, para mim, expressa muito bem essa tensa interdependência entre o ceticismo e a filosofia. Esclarecendo o processo pelo qual a filosofia se dá, Bornheim faz-nos perceber o momento imprescindível pelo qual se dá movimento ao pensamento: a dúvida, a crítica instauradora da crise. Não fosse isso, engessaríamos nos dogmatismos do senso comum. Porém, bem entendido, não fosse antes alguma certeza, não teríamos do que duvidar. Se a dúvida é o momento negativo do processo filosófico, a certeza é o momento afirmativo desse mesmo processo. O cuidado que devemos tomar, aqui, é não compreender, por um imobilismo disfarçado, a certeza como um absolutamente antes e a dúvida como um absolutamente depois. Afinal, tudo é um processo, no qual, portanto, também a certeza é desdobramento de um momento anterior de dúvida e crise.

04. Outra nota que me importa ainda fazer dessa obra é relativa ao terceiro momento do processo filosófico que, surpreendentemente, Bornheim chamou de “conversão filosófica”. Genericamente, se o primeiro momento dogmático estaria para o senso comum e o segundo, para o ceticismo, o terceiro estaria, por seu turno, para a filosofia: uma nova afirmação após a inspeção crítica. Girando a roda, também essa nova afirmação estaria suscetível a dúvidas que a incidiriam em novas afirmações e assim por diante, ininterruptamente.

05. Ora, esse cenário nos permite compreender como que a filosofia algumas vezes se passa como antagônica ao ceticismo e, noutras vezes, se passa como sendo o próprio ceticismo. Embora necessite de maiores exames, é surpreendente como que nas escolas a crítica é endereçada à filosofia como sua tarefa. No imaginário em voga, o filósofo é o questionador por excelência, o inspetor e examinador dos raciocínios, curiosamente donde provém o temo “cético”. Por outro lado, o filósofo não é visto somente como aquele que interroga, mas igualmente como aquele que inova e apresenta teses novas – o que nos aponta, paradoxalmente, não mais para aquele que tão-só “põe abaixo o estabelecido”, mas para aquele que igualmente “eleva em meio às cinzas”.

06. Como o deus da mitologia greco-romana que devorava os próprios filhos, essa seria a imagem da filosofia. Ou seria como o Ouroboros, a serpente que devora, indefinidamente, a própria calda.


07. Essa razão autofágica deixa-nos assim entrever que uma história da filosofia é inseparável de uma história do ceticismo, quando não se trata de uma só e mesma coisa. Os motivos pelos quais a primeira nomenclatura prevalece sobre a outra são dois, não exclusivamente, segundo o que me ocorre neste instante: de um lado, já se pensa a dúvida, embora não declaradamente como o fez Bornheim, como parte constitutiva mesmo do ato filosófico; por outro lado, acompanhando André Verdan, professor de filosofia na França, em seu livro O ceticismo filosófico, (2) a certeza é sempre mais agradável a uma profunda tendência do homem de buscar um apoio incontestável e solidamente estabelecido à sua existência repleta de adversidades. Talvez seja, aliás, por isso que o cientista político inglês e conservador, Kenneth Minogue, escreveu que “a política sustenta, com dificuldade, o mundo comum no qual podemos conversar uns com os outros; e os filósofos [céticos], que dissolvem a experiência em perspectivas, horizontes, opiniões, valores, dominações, culturas e todo resto, destroem esse mundo comum.” E, conclui, inevitavelmente, que essa política, “dada toda a sua capacidade de ordenar muitos dos caminhos da vida, precisa manter distância dessas aventuras” do filósofo cético e afins. (3) Daí que, de roldão, prefere-se mais o filósofo em seus momentos de afirmação do que em seus momentos de negação, não obstante ambas, a afirmação e a negação, sejam igualmente imprescindíveis ao exercício filosófico e à própria existência uma da outra, conforme antes elucidamos.

08. É assim que a filosofia, somente para ilustrar, pode ser apresentada desde o seu início como negação do estabelecido pela compreensão mítico-religiosa da vida e destacar mais o não-saber socrático do que o seu único saber que leva ao mesmo, isto é, ao não-saber – mais uma vez, a negação dos “sábios” de seu tempo, os sofistas. Mas também estes, podem ser abordados como negação dos absolutismos que ordenam cada um que se encontra fechado em sua cidade-Estado, procedimentos muito anteriores ainda ao período helenístico de incertezas em que nasce precisamente a atitude de pensamento de Pirro e que tomou pela primeira vez, nos cartórios da filosofia, o nome de “ceticismo”.

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1. BORNHEIM, Gerd Alberto. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. São Paulo: Globo, 2009. 168 p.
2. VERDAN, André. O ceticismo filosófico. Tradução de Jaimir Conte. Florianópolis: UFSC, 1998. 135 p.
3. MINOGUE, Kenneth. Política: uma brevíssima introdução. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 8.

17 de out. de 2010

TEXTO IX: Primeira Reflexão: Motivos Céticos à Religião e à Ciência

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Inserido no mundo, o homem, crescentemente, passou a situar-se ao modo do que, desde o início da modernidade, denominamos “nova ciência”, ocupando espaços de influência que outrora coube quase que exclusivamente à religião. Por essa transição, também a filosofia, antes atenta aos motivos religiosos, deslocou-se do eixo da ontologia, do que especialmente se denominou “filosofia teológica”, para o da epistemologia, particularmente da teoria do conhecimento científico.

02. Esse fundo da modernidade implicou a nossa concepção do ceticismo como um avesso da filosofia, pois, enquanto esta última é concebida como um otimismo à possibilidade de conhecimento humano do que chamamos de “realidade”, aquele primeiro é tomado pela consideração segundo a qual “de nada temos certeza”. Nesse sentido, não somente “o pretendente ao saber”, que dá nome ao “filósofo”, é desabonado, mas também aquele que se dedica, entusiasticamente, a qualquer tipo de ciência da pretensa “realidade” – o que inclui, por conseguinte, o “cientista” de nosso tempo.

03. O que se pretende aqui destacar, inicialmente, é que o protocolo científico que está na gênese da modernidade e que domina toda a cultura ocidental dos últimos séculos, conforme o qual “o mundo deve ser conhecido por ele mesmo”, obscureceu o fato de que a filosofia nasceu antes como “sentido de vida” do que estritamente como “epistemologia”. E, de roldão, que também o ceticismo é antes uma “filosofia de vida” do que um avesso da filosofia ou uma pronta negação da epistemologia. Noutros termos, os céticos não são o que são por “princípio”, má-fé ou má vontade, mas por fadiga e zelo. Em melhores termos retóricos, os céticos desistem da ciência humanamente inalcançável para viverem a felicidade humanamente possível; não veiculam a filosofia que interessa à ciência moderna, mas ainda veiculam a filosofia que interessa à vida.

À CIÊNCIA

04. Se o conhecimento do mundo nunca é definitivo, toda intervenção no mundo à luz desse conhecimento é inevitavelmente irresponsável. O cético concorda com a “nova ciência” que um conhecimento último das coisas do mundo está para além das capacidades humanas, mas as pragmáticas que amparam a ambos nesse mesmo sentido são completamente distintas, pois somente o cético, por isso mesmo, se detém no imediato e se abstém de juízos últimos. O cientista, por sua vez, assim considera a questão em virtude do interminável encalço das causas últimas que lhe impediriam a faceta operante, técnica ou instrumental do seu conhecimento, tomando – incoerentemente, portanto – o imediato como último (como necessário, universal e definitivo), a fim de por aí estabelecer as suas intervenções. Assim, a coerência da pragmática cética, diferentemente da irresponsabilidade científica, conduz-nos à contemplação, à afasia e à ataraxia (contrárias à manipulação, à profissão e à crítica).

05. Noutros termos, já os iluministas destacavam que a “nova ciência” seria uma feliz conciliação entre “razão” e “experiência”. De fato, concordam os céticos que estas são as duas capacidades estritamente humanas de conhecimento. Contudo, ressaltam não menos que tais faculdades (a de entendimento e de sensibilidade) são, em seus limites, desproporcionais à dimensão do mundo que pretendem conhecer. Na contemporaneidade, o próprio “positivismo crítico” leva em consideração essas ponderações céticas, embora não veem como podemos escapar a essas nossas precondições ontológicas. Sua “demarcação” entre ciência e não-ciência não mais arroga, como os positivistas clássicos, que a não-ciência seja um discurso “sem-sentido”, mas apenas a considera como sentido formalmente distinto do científico. Confirma, ademais, a própria precariedade das precondições humanas que se refletem nas atividades e produções científicas, destacando, assim, o caráter de “provisoriedade” que também marca as teorias científicas. Tal destaque choca-se frontalmente com a aparente segurança que a cosmovisão científica do mundo possui no senso comum ou, antes, nas mentes tradicionalmente positivistas. Nesse sentido, a própria filosofia da história cientificista é uma tentativa de nos fazer esquecer que também a ciência é uma atividade humana e que, assim sendo, carrega consigo, inevitavelmente, os estreitos limites dos poderes humanos.

06. Finalmente, insistimos que ainda é corrente e predominante entre os contemporâneos a concepção de que a ciência é modo de compreensão e expressão de mundo que não se preocupa com as causas primeiras e últimas de seus objetos de investigação (como ainda fazia a filosofia próxima do mito e da religião), mas tão-somente com as causas imediatas dos mesmos. Insistimos, igualmente, que isso se justifica, pois a demora em perpassar e alinhavar todas as coisas a impediria de cumprir precisamente o que lhe dá fama: sua capacidade de pronta intervenção e manipulação do mundo. Em compensação, ela, esta ciência, se pulverizou em “especializações”, o que nos gera a expectativa de que nada lhe poderá escapar. A demanda hodierna de interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade deixa transparecer, ao fundo, uma concepção do mundo como unidade ao mesmo tempo em que compensa a sua insistência no trato dos vários modos como este mundo se nos revela.

07. Hoje, entretanto e cada vez mais, a “ciência moderna” se desnuda não como apenas aquela que não sabe das causas primeiras e últimas do que investiga, mas desconhece tanto mais as conseqüências longínquas de cada coisa que manipula. Na verdade, ela só se estende até os efeitos “co-laterais” ao que diretamente lhe importa. Ela mesma se avoluma, presentemente, em descobertas de efeitos nocivos de seus procedimentos passados à natureza e, por inclusão, a cada um de nós, procedimentos estes que outrora lhe pareceu tão inofensivos.

08. Perdidos no imediato de nossas próprias contingências plurais e valorizando-as, esquecemos que, no entanto, estendemos o nosso pequeno mundo para uma última fronteira muito além dele mesmo. Como que por um “efeito rebote”, estamos tomando consciência do quanto nos tomamos como absolutamente responsáveis por aquilo que, na verdade, nunca estávamos em plenas condições de responder. Todavia, isto se faz não por uma cosmovisão menos sistêmica, mas, muito opostamente, reafirmamos a unidade das múltiplas coisas quando precisamente estamos a falar de uma “natureza” que reclama de nossas agressivas intervenções, ampliadas pelas técnicas científicas. As coisas, assim, se reafirmam em cadeia, ou seja, como múltiplas e uma só, ambiguidade que, mais uma vez, expressa a nossa trágica condição.

09. Tratar da ecologia, por exemplo, em nosso tempo tecnocientificista e capitalista é, verdadeiramente, um drama, pois se, por um lado, remete a nossa atenção, sem dúvida, à necessidade de conservação de nossa diversidade de fauna e flora, paradoxalmente atrelada à idéia de cadeia entre tal diversidade, uma vez que é precisamente ela que sustenta a concepção de que somos todos co-responsáveis pela destruição ou conservação da natureza, estejamos direta ou indiretamente lidando com ela, por outro lado o trato da ecologia, alerta-nos ainda mais para o fato de que enquanto nos vemos diante da natureza, como é praxe acontecer na “nova ciência”, estamos imperceptivelmente sendo vítimas de uma concepção de natureza que é simples objeto para a nossa intervenção qualquer, porquanto nada mais é propriamente intocável, mas tudo sofre a manipulação que o transformará em mercadoria, objeto de troca que é demandado e que ao mesmo tempo sustenta a sociedade do “livre” mercado. Eis o paradoxo da nossa própria existência: sentimo-nos diante da natureza (aliás, como senhores dela), mas não menos estamos na natureza (submetidos a ela), expressão de nosso inexorável entrelaçamento com cada ente que conosco compõe esta unidade chamada “vida”. Não há, consequentemente, como esgotá-la sem nos consumirmos fatalmente a nós próprios – inquietação de nossa alma!

À RELIGIÃO


10. Uma vez que as capacidades humanas de conhecimento estão demasiadamente aquém do que pretendem conhecer, o “sentido de vida”, que, para tanto, é necessariamente universal, não se contém nos limites humanos de razão e de experiência. Logo, o universal que se quer ensejado pela razão ou pela experiência não passa de uma ilusão dogmática para os céticos.

11. Brevemente, justificamos que os dados sensoriais que temos apenas nos fornecem as particularidades da vida e que, dessas particularidades, por maior que seja o seu número, não se pode daí inferir uma proposição universal. Também os dados racionais, para serem assim considerados, devem ser inferidos imprescindivelmente de outros dados evidentes por si sós. Se ainda estes últimos também assim não o são, devem ser deduzidos de outros que assim o sejam. Ora, comumente, ou a cadeia cessa em dados ainda não auto-evidentes ou se desenrola ao infinito e logicamente indecisa.

12. Em nosso passado, essa contingência dos dados humanos foi compensada pela primazia dos dados pretensamente não-humanos. Em outras palavras, se humanamente não podíamos nos dar a nós mesmos o incorruptível, pensou-se que somente poderíamos tê-lo caso ele próprio se nos revelasse a nós. A verdade foi, portanto, apresentada como sua revelação àqueles que agora nos a revelam. E, em nossa história recente, a fim de nos reconduzir aos limites do que nos é dado às nossas capacidades naturais, pensadores racionalistas e empiristas reunirão seus esforços para desacreditar as pretensas autoridades dessas verdades reveladas, chamando estas últimas de superstição. Pouco a pouco, ocorre a “democratização” das instâncias de verdade: todo homem é detentor de razão e de experiência; portanto, tudo o que nos é dado por razão e experiência é verdadeiro, não por autoridade de alguns, mas por autoridade de todos os homens, porquanto não há ninguém que seja privado de confirmar, por essas mesmas capacidades que igualmente possui, a veracidade do verdadeiro ou a falsidade do não-verdadeiro. Mas o otimismo da distribuição equânime dessas capacidades logo se desfez e ainda hoje assistimos, na falta de algo melhor, ao governo provisório dos convencionalismos de grupos humanos, casando a epistemologia com as hegemonias políticas.

13. Chegou-se mesmo a denunciar, ainda na metade do século XVIII, que também a “nova ciência” está calcada em conexões habituais e costumeiras, que, no entanto e erroneamente, são-nos apresentadas como conexões necessárias, bem como nas crenças de que o futuro há de se dar tal e qual o passado. A unidade do pensamento foi se dissolvendo em multiplicidade cultural. Bem observando, a modernidade foi multiplicando e consolidando os motivos céticos primitivos, os mesmos que fizeram com que alguns filósofos suspeitassem de que o absoluto não se adequa às condições humanas e que, por conseguinte, não há afinidade entre a verdade universal, humanamente inalcançável, e a felicidade do homem, mas sim entre esta e o abandono daquela. Tal relativismo que comumente antecede ao comportamento cético não se demora, contudo, aí. O relativismo moderno, que em si se demora, tornou-se parte insubstituível do atual modo de produção, pois bem expressa a extensão da novidade que se tem para se consumir num tão breve tempo, fazendo de nossa vida uma insatisfação sem fim, estressante e vã. O relativismo cético, ao contrário, tende a conduzir-nos ao engajamento absoluto da cultura a que pertencemos: se as culturas, se os modos de se pensar e de se ser dos grupos humanos se equivalem, não há porque se desgastar em se querer diferentemente do que já se tem. O relativismo cético, consequentemente, não é inimigo da tradição, como o relativismo de consumo, mas lhe é desenlace para uma vida feliz. O ceticismo pirrônico, ao denunciar os limites das faculdades humanas de entendimento e sensibilidade, reporta-nos ao que somente a tradição nos pode mais facilmente fornecer: os aportes mais seguros para uma vida pacificada.

14. Como parte de nossa tradição, a religião pode ser assim bem guardada. Não é por acaso que Montaigne se manteve coerentemente cético e cristão fervoroso e Pascal, um fideísta advogado de Pirro.

16 de out. de 2010

TEXTO VIII: Exercícios Iniciais de Lógica Simbólica

Rodrigo Rodrigues Alvim

Antes da leitura deste texto, aconselha-se a leitura do Texto XVIII (Elementos de Lógica Simbólica), dentro da categoria Lógica.

Construam as tabelas de verdade dos seguintes enunciados:

p . ~ p







~ (p . ~ p)







Percebam que o resultado alcançado para (p . ~ p), em todas as possibilidades, foi sempre “falso” (F) e para [~ (p . ~ p)], em todas as possibilidades, foi sempre “verdadeiro” (V). Sempre quando um enunciado composto obtiver esse primeiro resultado em todas as suas possibilidades, tratar-se-á de uma contradição; sempre quando um enunciado composto obtiver esse segundo resultado em todas as suas possibilidades, tratar-se-á de uma tautologia. Caso tivermos ambos os resultados, tratar-se-á de uma contingência.

Observem que o segundo enunciado é a fórmula do princípio de contradição (também chamado de princípio de não-contradição), princípio lógico que corresponderia ao princípio ontológico, segundo o qual não pode “algo” ser e não ser ao mesmo tempo e sob a mesma relação: se “algo” designa um objeto, a definição se dá no campo ontológico; se “algo” se refere a uma proposição, a definição se dá no campo lógico (“não , ao mesmo tempo, p e não p”).

Construam agora as tabelas de verdade dos próximos enunciados:

p → p







p ↔ p







Como a tautologia definidora do princípio de não-contradição, estas tautologias imediatamente acima definem o princípio de identidade.

Construam igualmente a tabela de verdade do enunciado abaixo:

p v ~ p







Trata-se também de uma tautologia? Pois bem, este enunciado é a fórmula do princípio do terceiro excluído.

Como próxima tarefa, construam as tabelas de verdade dos três enunciados subseqüentes:

(p . q) → p









~ [p → (p v q)]









~ (p . q)









Pelos resultados obtidos, respondam se cada um dos enunciados acima é “tautológico”, “contraditório” ou “contingente”.









Construam também as tabelas de verdade dos dois novos enunciados:

[(p → q) . p] → q









[(p → q) . ~ q] → ~p









Estas fórmulas supracitadas (ambas tautológicas, como se vê) são chamadas, respectivamente, de “modus ponens” e de “modus tollens”. Comumente, são também apresentadas das seguintes maneiras:

p → q
p
--------
q


p → q
~ q
---------
~ p

Construam a tabela de verdade de (p → q) e marquem, para cada um dos argumentos acima, a única linha onde seria possível observar e demonstrar a necessidade de cada conclusão.













Elaborem as fórmulas (enunciados compostos) dos seguintes argumentos:

p → q
q
--------
p






p → q
~ p
---------
~ q





Construam as tabelas de verdade das fórmulas (enunciados compostos) então elaboradas.














Pelos resultados obtidos, respondam se cada uma das fórmulas (enunciados compostos) acima é “tautológico”, “contraditório” ou “contingente”.





Construam a tabela de verdade de (p → q) e marquem, para cada um desses dois últimos argumentos, as duas linhas pelas quais seria possível observar e demonstrar a contingência de cada conclusão.











Espero que estes exercícios lhes tenham sido mais que uma oportunidade de auto-avaliação. Noutros termos, espero que estes exercícios lhes tenham sido também uma oportunidade de novas aprendizagens.

27 de jun. de 2010

TEXTO VII: Elementos de Lógica Aristotélica

Rodrigo Rodrigues Alvim

PRINCÍPIOS:

Princípio de Identidade:
Uma coisa é sempre idêntica consigo mesma (Toda coisa é o que é).

Princípio de Não-Contradição:
Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e numa mesma relação e aspecto.

Princípio da Tríplice Identidade:
Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si.

Princípio da Discrepância:
Duas coisas, uma igual a uma terceira coisa e a outra não, são diferentes entre si.

Princípio do Terceiro Excluído:
Uma coisa ou é ou não é, não existindo um terceiro termo.



A - Proposição Universal Afirmativa.
E - Proposição Universal Negativa.
I - Proposição Particular Afirmativa.
O - Proposição Particular Negativa.

OPOSIÇÕES:

A(V), necessariamente E(F)
A(V), necessariamente I(V)
A(V), necessariamente O(F)
A(F), E(V ou F)
A(F), I(V ou F)
A(F), necessariamente O(V)

E(V), necessariamente A(F)
E(V), necessariamente I(F)
E(V), necessariamente O(V)
E(F), A(V ou F)
E(F), O(V ou F)
E(F), necessariamente I(V)

I(V), A(V ou F)
I(V), necessariamente E(F)
I(V), O(V ou F)
I(F), necessariamente A(F)
I(F), necessariamente E(V)
I(F), necessariamente O(V)

O(V), E(V ou F)
O(V), necessariamente A(F)
O(V), I(V ou F)
O(F), necessariamente E(F)
O(F), necessariamente A(V)
O(F), necessariamente I(V)

REGRAS:

Referentes aos termos:

1. Todo silogismo possui três termos: maior (T), médio (M) e menor (t).
2. Os termos da conclusão não podem ter extensão maior que nas premissas.
3. O termo médio nunca entra na conclusão.
4. O termo médio deve ser universal ao menos uma vez.

Referentes às proposições:

5. De duas premissas negativas nada se conclui.
6. De duas premissas afirmativas não pode haver conclusão negativa.
7. A conclusão segue sempre a premissa mais fraca.
8. De duas premissas particulares nada se conclui.

FIGURAS:

1ª. Figura (Perfeita)

M T
t M
t T


T > M > t

2ª. Figura (Imperfeita)

T M
t M
t T


M > T > t

3ª. Figura (Imperfeita)

M T
M t
t T


T > t > M

4ª. Figura ou 1ª. Figura Indireta (Imperfeita)

T M
M t
t T


T < M < t

MODOS (Extraídos de fórmula latina medieval):

1a. figura: BAR/BA/RA...CE/LA/RENT...DA/RI/I...FE/RI/O

2a. figura: CES/A/RE...CAM/ES/TRES...FES/TI/NO...BAR/OC/O

3a. figura: DA/RAP/TI...FE/LAP/TON...DIS/AM/IS...DA/TIS/I...BOC/AR/DO...FE/RIS/ON

4a. figura: BA/RA/LIP/TON...CE/LAN/TES...DA/BI/TIS...FA/PESM/O...FRIS/ES/OM/ORUM.

REDUÇÕES:

S - Por conversão simples da proposição.
P - Por conversão acidental da proposição.
M - Por transposição das premissas.
C - Por absurdo.

6 de jun. de 2010

TEXTO VI: A Filosofia de Platão

Rodrigo Rodrigues Alvim

Última atualização: 12 de abril de 2011, à 13h15min.

01. Arístocles era o seu verdadeiro nome, mas todos o chamavam de Platão, que significa “amplo”, apelido que se devia aos seus ombros largos em corpo atlético ou ao seu nariz largo e chato. Há ainda quem atribua seu apelido à reconhecida largueza de seu conhecimento sobre variadas coisas: escreveu em torno de trinta e cinco livros e treze cartas. Foi, sem dúvida, o maior discípulo de Sócrates e o principal responsável pela divulgação do pensamento deste seu mestre. Fundou em Atenas, sua cidade natal, uma importante escola: a Academia. Em sua vasta obra já se encontram problematizados a maior parte dos assuntos que se tornarão temas clássicos da filosofia ocidental.

02. Nossos dados sensíveis nos apresentam a transitoriedade de todas as coisas e as nossas diferentes culturas fazem-nos óbvia a tese dos sofistas de que tais coisas são somente as múltiplas interpretações dos homens em conformidade com a disposição em que cada um se encontra. Isto, no entanto, exige que abandonemos qualquer propósito de buscar um conhecimento preciso do mundo ou de alcançar o que é indiscutivelmente justo.

03. Foi assim que, frente à pergunta sobre a possibilidade de conhecermos o mundo com exatidão, os sofistas responderam negativamente: estamos condenados a conviver simplesmente com as múltiplas opiniões acerca do mundo, opiniões estas tantas vezes até contraditórias entre si. Sem real convicção, todo parecer se equivale.

04. Platão enfrentará, de maneira positiva, o problema da possibilidade do conhecimento rigoroso das coisas do mundo no qual nos encontramos e fará disso a preocupação central de sua filosofia. Sendo assim, é estranho que muitos ainda hoje o tomem como um filósofo que menosprezou este nosso mundo. O que levou e ainda leva tantas pessoas a este equívoco?

05. A fim de sustentar, opostamente aos sofistas, uma resposta positiva à possibilidade de conhecermos o nosso mundo com exatidão, Platão elaborou a hipótese conhecida como “Teoria das Ideias”, segundo a qual as coisas verdadeiras existem de forma estática e o mundo no qual nós nos encontramos é constituído de múltiplas manifestações de cada uma dessas Ideias. Caso seja assim, poderíamos conhecer as múltiplas coisas sensíveis com precisão através da Ideia estática, da qual todas elas participam: as coisas diversas e mutáveis dadas aos nossos sentidos são quais sombras várias e cambiantes que se possam produzir de uma única e mesma coisa. Foi dessa maneira que, para facilitar a compreensão de sua hipótese, Platão elaborou uma imagem (uma alegoria) que se encontra descrita por Sócrates, de quem fez personagem principal do seu diálogo denominado A república, em seu livro VII.

06. A analogia dessa narrativa mítica “da caverna” com as nossas atuais condições é-nos claramente sublinhada por Platão já na terceira fala de Sócrates: “São como nós!” Poderíamos, sem prejuízo algum, inverter a comparação: somos como eles, isto é, como aqueles prisioneiros que se encontram diante apenas das sombras que se passam no fundo da caverna, tomando-as como se fossem a própria realidade, múltipla e mutável.

07. Não menos, Platão recorre a uma concepção mística de mundo, corrente entre os pitagóricos – os quais frequentou por algum tempo –, segundo a qual a essência humana é a alma. Sem esta, não se é humano. Por isto mesmo, a alma é imortal, sobrevivendo ao corpo, no qual presentemente ela habita. Esta alma, tomada pelos filósofos como a razão, é imortal, pois ela mesma – destaca Platão – tem a capacidade de conter o eterno, aquilo que não pode ser pensado de outro modo e que, portanto, não pode ser de outro modo. E, não podendo ser de outro modo, só pode ser assim mesmo: imutável, pois, e eterna. Por exemplo, para inicialmente não complicar, podemos recorrer à proposição já examinada no texto Filosofia: em nome da razão (Texto III). Verdadeiramente, não há como pensar o triângulo senão como a figura fechada, na qual a soma dos seus ângulos internos seja idêntica à soma de dois ângulos retos. Pensando diferentemente disso, não é triângulo. Nesse sentido, portanto, não há multiplicidade e nem mutabilidade. Se eu falo, porém, que o triângulo é retângulo (ou seja, tem um dos seus ângulos internos reto), esse predicado é possível ao triângulo, mas não lhe é essencial. Tal figura já não mais participaria tão-somente da ideia de triângulo, mas também de outra ideia, a saber, da ideia de ângulo reto. Daí a multiplicidade que percebemos nas coisas sensíveis: elas participam comumente de várias ideias. Cada ideia é algo em si, é algo puro, uno, não dependendo de outra coisa, senão dela mesma, para ser o que é. As coisas sensíveis têm a sua causa nas ideias das quais participam. São, portanto, dependentes de outrem, efeitos possíveis (não necessários), diversos e acidentais.

08. Essa alma imortal à mística pitagórica preexistia, por conseguinte, ao surgimento do corpo no qual se encontra atualmente. Aproveitando-se disso, Platão sugere que nessa sua preexistência à sua encarnação, a nossa alma teria vivido no “mundo das ideias”, contemplando a realidade verdadeira, cada coisa em sua perfeição, sendo precisamente o trauma advindo da sua posterior encarnação que a fez esquecer do que antes havia contemplado. Não fosse isso, manifestaríamos conhecimento desde tenra idade. Todavia, sendo as coisas do mundo sensível amostras possíveis, embora sempre imperfeitas, das ideias do mundo suprassensível, a experiência do mundo no qual nos encontramos através dos nossos sentidos é a oportunidade pela qual a nossa alma relembra das perfeições outrora admiradas. O conhecimento, dessa maneira, é possível a Platão, mesmo que estejamos diante de coisas secundárias e impróprias. Conhecimento é, finalmente, rememoração ou, em termo clássico da filosofia platônica, reminiscência.

09. Com essa possibilidade de conhecer o verdadeiro, a filosofia nos possibilitaria igualmente a política do justo, a instauração de uma polis diferente daquela que havia condenado Sócrates à morte. A mesma Alegoria da caverna nos revela o “filósofo” retornando àqueles que ainda se encontram no “mundo das sombras” e das aparências sensíveis para libertá-los rumo ao mundo verdadeiro. Aliás, tal Alegoria se encontra precisamente na principal obra política de Platão, A república, como antes já o dissemos.

Clique aqui e aguarde para ler os quadrinhos de Maurício de Souza, As sombras da vida, do personagem Piteco.

10. Não obstante a cidade-Estado considerada racionalmente perfeita por Platão fosse, conforme ele próprio admitiu no “livro IX” d’ A república, “algo que não existe em parte alguma da terra”, considerava-a o fundamento da política justa. De fato, o teor revolucionário de obras que arquitetaram “sociedades ideais”, dentre as quais a platônica é a primeira do Ocidente, far-se-á sentir no decorrer de todos os séculos que se seguirão, pois, por si sós, apresentam-se como alternativas críticas às sociedades existentes. A dificuldade de realização de sua “república” (politeia), Platão a sentiu em vida, quando, por duas ocasiões, motivado por um amigo próximo do rei de Siracusa (na região da Sicília), termina antipático a tal rei, que, na segunda de suas tentativas, vende-o como escravo. Só recuperou sua liberdade porque foi comprado por um amigo seu.

11. Essas experiências abalariam qualquer pessoa, mas, no caso de Platão, tal abalo certamente foi muito maior, pois, ainda jovem, encontrava-se ao lado de Sócrates por motivos não muito diferentes dos outros filhos da aristocracia ateniense que se punham a frequentar um sofista. Platão fazia parte de importante família política de Atenas e, por isso mesmo, esperava-se que se tornasse igualmente famoso político. Todavia, em virtude da oposição de Sócrates aos sofistas e da condenação deste à morte pela cidade, Platão (segundo adiantamos no parágrafo 11 do Texto V) logo percebeu a impossibilidade da prática política adequada sem a dedicação ao pensamento filosófico. Apesar, pois, dessa afinidade desejável, sua realização pareceu-lhe, desde as suas frustradas experiências em Siracusa, muito difíceis. Assim, coincidentemente, Platão sofreu em vida a incompreensão que anteviu e expressou em sua figura do “rei-filósofo” quando retorna para conduzir os seus conterrâneos, ainda acorrentados às falsas aparências, à verdade, ao justo e real: dele riem e, por pouco, não o matam.

12. Mesmo assim, o laço entre filosofia e política (diríamos, hoje, entre pensamento e ação) em Platão permaneceu indelével. Sua última obra, inacabada, Sobre as leis, é um claro indício disso, embora faça notar significativas mudanças em seu pensamento que a farão, no entanto, apta a realizar uma reforma sócio-política, talvez na própria Sicília, após a morte do rei de Siracusa. Soma-se a isso a procedimento platônico (como socrático) de que o caminho para a ascensão ao conhecimento é a dialética, pela qual entre teses e contrateses, ditos e contraditos, vamos realizando a depuração para o verdadeiro (a reminiscência). Na prática, é a conversação, é o diálogo entre diferentes interlocutores, entre cidadãos (forma que Platão dará às suas obras), que permite-nos trilhar para fora da “caverna”, para o mundo das verdades, para a polis justa, na qual, em sua destinação, comumente expressa em leis, todos vêem a sua própria destinação.


Assistir, no Youtube, ao vídeo respectivo ao seguinte endereço:

http://www.youtube.com/watch?v=nxVwsKNv08Q&feature=related

28 de abr. de 2010

TEXTO V: Contra os Sofistas, a Restauração Socrática da Filosofia

Rodrigo Rodrigues Alvim
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01. Muito possivelmente, Sócrates, como qualquer outro jovem ateniense, não só se encantou com a prática sofística como ainda a exerceu, o que teria permitido Aristófanes, em sua comédia As nuvens, apresentá-lo como “charlatão”, que, por algum dinheiro, ensinava “a vencer com discursos nas causas justas e injustas”. No entanto, tal imagem se contrasta radicalmente com a figura de Sócrates que veio a se manifestar nas obras deixadas por Platão e Xenofonte e que se tornou corrente entre nós.

02. Na tentativa de resolução dessa oposição de perspectivas sobre Sócrates, é fecunda a suspeição de que teria ele passado por uma conversão de vida, conversão que o fez abandonar a sofística sublinhada por Aristófanes e abraçar, como missão de vida, a filosofia, momento este destacado pelos seus discípulos.

03. Numa consulta à sacerdotisa do Templo de Delphos sobre o mais sábio dentre todos os gregos, Querefonte ouviu o nome de Sócrates, seu amigo de infância, a quem correu para noticiar tal oráculo. Uma vez que a porta-voz dos deuses não poderia estar enganada, Sócrates entrou em crise, pois, apesar de sua aparente sabedoria, sua consciência nunca deixou de lhe acusar sua profunda ignorância. Como essa sua íntima reflexão também não poderia estar enganada, inquietou-lhe a grande contradição entre o que lhe dizia a sua própria consciência e o oráculo dos deuses.

04. Curiosamente, foi a autodetecção socrática de sua fundamental ignorância, quando os deuses, opostamente, nele apontavam sabedoria, que o levou a concluir que a única coisa que lhe distinguia daqueles que então se julgavam “sábios” (sofistas) era o seu reconhecimento de tantas dúvidas que tinha. Daí inferiu que era ele realmente o mais sábio tão-só por ser o único a se confessar abertamente ignorante. “Só sei que nada sei” se tornou, assim, a única confissão possível de Sócrates para lhe garantir a veracidade tanto do oráculo divino quanto da sua sincera introspecção.

05. Certamente, quem já se julga sábio, não busca mais saber: eis o sofista. Mas quem se julga ignorante, busca a sabedoria: eis o filósofo. Essa conversão de Sócrates da sofística à filosofia, pretende ele estendê-la aos demais sofistas, assumindo isso como tarefa de sua existência, vocação de seu daimon (uma espécie de voz interior, conforme Sócrates, a própria consciência). Para tanto, Sócrates vai maturando no decorrer de sua vida um comportamento, um procedimento que pode ser descrito como antes fiz em outro lugar:

O procedimento filosófico socrático é comumente apresentado em dois momentos interpenetrantes que lhe são constitutivos. O primeiro momento é denominado ironia e o segundo, maiêutica.

a) [...] A ironia se realiza quando o sujeito “toma-se sobre si” que nada sabe, [...]. Daí Sócrates só se reconhecer o mais sábio – segundo o pronunciamento da sacerdotisa do templo de Delfos – por se reconhecer não sábio e, nesse sentido, tão somente um amante, um pretendente, um amigo do saber: um filósofo! Eis o que o arrebata dos sofistas à filosofia. Dizer “só sei que nada sei” coloca, quem assim se assume, na busca sincera e incansável da verdade, defendendo-se de toda fixação em erro. Ao mesmo tempo, dizer “só sei que nada sei” coloca, quem assim se assume, em atitude de verdadeira escuta do que se diz, de quem se diz. Implica, portanto, em momento de acolhimento da alteridade e de sua compreensão. Nesta sua posição, nada cabe a Sócrates senão perguntar o não compreendido por contradição. Sumamente, a ironia não passa de um apontamento de contradições. Ou seja, o interlocutor de Sócrates, na tentativa de se fazer compreender, passa em revista a si próprio e expõe de si mesmo também contradições que o fazem incompreensível. Na esperança de rapidamente desfazer-se de tais contradições, instaura outras mais, percebendo em si um avolumar de componentes de ser e de pensamento completamente excludentes. Neste emaranhado por ele próprio confessado, sente-se vítima da ignorância, que o faz considerar, por fim, que nada sabe: “só sei que nada sei”. Neste momento, morre mais um “sábio” para gestação de mais um filósofo.

b) A
maiêutica, que etimologicamente significa “parto”, tem por sustentação e contínuo essa krisis instaurada pela ironia: incide em um momento “doloroso” de “desconstrução”, concomitante a uma gestação, suprassumidas numa concepção: trata-se de um “parto de ideias”, antes contraditas, agora compossíveis de uma unidade. Mais do que um momento crítico, é ela um momento autocrítico. Daí que Sócrates dá à luz não como parturiente de ideias aos homens, mas como parteiro de ideias dos homens, pois todo esforço do parto cabe a quem concebe, bem expresso no “conhece-te a ti mesmo”. A crítica no procedimento filosófico socrático não é ato que vem de fora, mas de dentro de quem pare: contra os sofistas que vivem de agregados de informações corriqueiras e agradáveis, de “senso comum”, Sócrates apela para que nada saia de nós sem que realmente seja nosso, ou seja, sem que passe pelo crivo de nossa consciência, de nossa crítica, avessa e depuradora de incoerências. Grávidos do mundo, cabe a cada um de nós a gestação de todas as coisas colhidas, fazendo-as como que nossas (re-conhecimento), transformando-as no maior e mais perfeito dos compossíveis (identidade do múltiplo), no esforço sempre renovado de gerar as entidades pelas quais Sócrates sempre chamou à luz: dentre tudo o que tomamos por verdade, o que é “a Verdade” pela qual tomamos tudo isso? Crítica forte, fonte e berço de filhos sãos.

Importa perceber que esse procedimento filosófico socrático tem o diálogo como a sua condição de possibilidade, pois, intuitivamente, cada ser humano considera-se clara e plenamente consciente de si próprio. É, pois, ao querer se fazer compreender a outrem que alguém se expõe igualmente para si mesmo, percebendo-se agora uma unidade de dobras, uma identidade que, embora constituída de mediações continuadas, busca perfazer-se agora de modo paulatino, isto é, pretensamente sem quaisquer saltos. E ao se expor, pela inquietação das incompreensões que possa suscitar, necessariamente se refaz (por exclusão e por criação, por conservação e por mudança), reparações no constante intento do melhor dos compossíveis, no constante intento do melhor “‘conhecimento’ de si mesmo”. Como os sofistas bem perceberam em relação às cidades-Estados gregas, um homem fechado em si mesmo tende inevitavelmente a tomar-se como “universal”, absolutismo promotor de ações intolerantes e violentas.


06. Com esse seu procedimento, Sócrates perambulava pelas ruas de Atenas em busca de sofistas acompanhados de seus discípulos, filhos da aristocracia ateniense, que, como dissemos em texto anterior, não eram impelidos à verdade, mas instigados ao domínio dos instrumentos de persuasão, decisivos nos debates políticos. Se Sócrates pensava estar, assim, contribuindo para a devida formação do homem grego, muitos o interpretaram como um perturbador da ordem: os sofistas se sentiram publicamente humilhados e, por extensão, a aristocracia ateniense percebeu ameaçados os meios pelos quais seus privilégios poderiam ainda se manter, mesmo na democracia nascente.

07. Para conter Sócrates, que já se encontrava com os seus quase setenta anos de idade, a aristocracia de Atenas tentou desacreditá-lo na polis, movendo contra ele um processo, no qual era acusado de “impiedade”, ou seja, de não crer nos deuses da cidade (de não observar os bons costumes), e de “corrupção da juventude”. Levado ao tribunal, não pretendiam os juízes matá-lo. Mas, para desacreditá-lo definitivamente, sentenciaram-no à pena de morte, após ter o próprio Sócrates feito a sua defesa, e esperavam que ele, por fim, suplicasse uma pena compensatória (direito assegurado a todo réu ateniense), pena esta que já estariam predispostos a aceitar, qualquer que fosse, uma vez que, por ela, Sócrates estaria se submetendo ao juízo, reconhecendo sua culpa e marginalizado. Entretanto, o inesperado aconteceu: Sócrates diz não poder apresentar uma quantia em dinheiro como contrapena, pois, por se considerar ignorante e dizer que a verdade enquanto universal era um bem já de todos, jamais cobrava de seus discípulos, com faziam os sofistas. E se aceitasse a proposta de seus discípulos que pretendiam pagar por ele, considerava Sócrates que a sua contrapena estaria como que caindo injustamente sobre seus discípulos. Enfim, como contrapena, Sócrates propôs que fosse sustentado no Pritaneu (lugar da cidade destinado aos heróis de guerra ou aos atletas vencedores em jogos das Olimpíadas). Sócrates, dessa forma, não somente reafirmou sua inocência, mas sugeriu que suas atitudes foram de grandes benefícios à sua cidade.

08. Só restou ao tribunal ou condenar Sócrates à morte (um homem incômodo, mas não injusto) ou destiná-lo ao Pritaneu como um herói de Atenas (quando a intenção foi menosprezá-lo). Para evitar a humilhação de si mesmos, os juízes tiveram que manter a sentença capital: a morte de Sócrates por ingestão de cicuta.

09. Sócrates, antes de cumprir sua pena, passou alguns dias preso, pois um navio de Atenas havia partido para prestar culto ao deus Apolo, no Templo de Delphos, e era costume não praticar execuções na cidade enquanto esse navio não retornasse. Por isso, houve grande expectativa de que Sócrates fugisse, não somente por parte de seus familiares, amigos e discípulos, mas também daqueles que o haviam condenado e que, mesmo assim, não desejavam que uma pena tão radical a um justo ficasse sobre os seus ombros. Todavia, Sócrates recusou terminantemente fugir: de um lado, porque, como cidadão ateniense, insistia que não se pode transgredir as leis e determinações da polis; de outro lado, porque tal atitude poderia colocar em dúvida a sua inocência quanto aos crimes dos quais foi acusado e sentenciado.

10. Nesse ínterim entre a sua condenação e o seu último gole, seus discípulos foram diariamente com ele se encontrar para ainda conversar sobre os mais diferentes assuntos, inclusive sobre a própria morte, muito vivaz à medida que as horas se passavam. Enfim, veio a taça e Sócrates tomou o veneno.


11. Paradoxalmente, o mal da trágica perda de Sócrates foi o que nos trouxe outro, até então, improvável bem da filosofia: Platão. Um dos discípulos de Sócrates, Platão estava ali, mas destinado à prática política, visando dar continuidade à importância de sua família que, outrora, já tinha oferecido à cidade alguns dos seus mais notáveis governantes. No entanto, decepcionado com essa prática que veio a condenar o seu mestre, convenceu-se naquele momento de que não poderia haver nenhuma política adequada, se não fosse dedicado o preciso tempo à busca da sabedoria, isto é, do Bem, do Verdadeiro e do Justo. E, mesmo mais tarde, quando Platão tentou, por duas vezes, implantar as suas ideias políticas, veremos que fora completamente infeliz.

PARA PENSAR:

1) Como Sócrates não nos deixou nada escrito, as interpretações que dele se pode fazer são muitas. No entanto, a que teve maior divulgação foi a que o tem por um homem que abriu mão de sua própria vida (do que hoje denominamos vida privada) em favor dos “bons costumes” e das “leis da cidade”, que se querem (universalmente) justas. Para ele, numa interpretação de seu discípulo Platão, ao filósofo não é prioritário as diferentes justiças que vigoram nesse ou naquele Estado (como destacavam os sofistas), mas, sim, o que as faz, apesar de suas diferenças, pretenderem-se todas afins à mesma Justiça. Ou seja, ao filósofo cabe atentar-se à concepção do Justo (pelo exercício da “maiêutica”), a partir do qual chamamos de justiça o que ocorre nesse ou naquele Estado. Talvez, por isso, Sócrates ter afirmado, conforme Plutarco, que não era ele nem ateniense, nem grego, mas um “cidadão do mundo”. Por isso, também, questões como “Mas o que é a Justiça?” ou “Mas o que é a Verdade?”, Justiça ou Verdade com sua primeira letra maiúscula, passaram a ser designadas de “questões socráticas”, aquelas que nos remetem não à diversidade do que imediatamente nos é dado, porém à sua unidade conceitual, não ao relativismo das coisas, mas à sua mais funda convergência de essência. Admitindo que seja isso mesmo, pode o “conhece-te a ti mesmo” ser apresentado como uma defesa do “subjetivismo”, isto é, de que cada um tem a sua opinião do que é verdadeiro e que, portanto, todas as opiniões, por mais opostas que sejam entre si, fundamentalmente se equivalem? Justifique a sua resposta.

2) Conforme a obra platônica Apologia de Sócrates, “uma vida não suscetível de exame não vale a pena ser vivida”. Para Sócrates, pois, é preciso refletir a própria vida, num movimento de tomada de distância de si mesmo para autocriticar-se, evitando-se, dessa forma, incoerências, depurando-se delas, ultrapassando-se a si próprio permanentemente. Nessa possibilidade de se fazer, de ser responsável pelo seu próprio ser, o filósofo (o homem que reflete, antes de tudo, sobre si mesmo) se depara com questões “éticas”. O que somos não é fruto de um “destino” inelutável, traçado pelos nossos antepassados ou mesmo por entidades transcendentes a nós mesmos (os deuses, por exemplo)... “O que devo?” passa a ser uma questão para a minha própria consciência, para a minha razão. Caso isso seja sustentável, pode-se admitir que nisso Sócrates se faz herdeiro dos sofistas, uma vez que o seu olhar se desloca das questões da physis (do “cosmos”) dos primeiros filósofos para as questões humanas, como a política, por exemplo?