Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





18 de out. de 2010

TEXTO IX: Segunda Reflexão: Relação entre Ceticismo e Filosofia


Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tem sido um erro apresentar o ceticismo como avesso à filosofia. Isso pode decorrer do imobilismo último do nosso pensamento binário: ou é ou não é. Assim, enquanto houver dúvida não há saber, mas onde há saber não há dúvida.

02. Muito pelo contrário, penso que o ceticismo é o avesso da filosofia, o que somente pode ser bem compreendido por um pensamento dinâmico ou dialético. O "avesso de" é aquilo que está pelo contrário do que tomamos por direito ou pela parte da frente, mas, não menos, é aquilo que está sempre junto. Se assim é, não há filosofia sem a dúvida, assim como a dúvida só se faz onde acontece um pretenso saber.

03. Neste sentido, tivemos um filósofo e professor no Brasil, Gerd Bonheim, que, certa vez, publicou uma obra introdutória de filosofia (1) que, para mim, expressa muito bem essa tensa interdependência entre o ceticismo e a filosofia. Esclarecendo o processo pelo qual a filosofia se dá, Bornheim faz-nos perceber o momento imprescindível pelo qual se dá movimento ao pensamento: a dúvida, a crítica instauradora da crise. Não fosse isso, engessaríamos nos dogmatismos do senso comum. Porém, bem entendido, não fosse antes alguma certeza, não teríamos do que duvidar. Se a dúvida é o momento negativo do processo filosófico, a certeza é o momento afirmativo desse mesmo processo. O cuidado que devemos tomar, aqui, é não compreender, por um imobilismo disfarçado, a certeza como um absolutamente antes e a dúvida como um absolutamente depois. Afinal, tudo é um processo, no qual, portanto, também a certeza é desdobramento de um momento anterior de dúvida e crise.

04. Outra nota que me importa ainda fazer dessa obra é relativa ao terceiro momento do processo filosófico que, surpreendentemente, Bornheim chamou de “conversão filosófica”. Genericamente, se o primeiro momento dogmático estaria para o senso comum e o segundo, para o ceticismo, o terceiro estaria, por seu turno, para a filosofia: uma nova afirmação após a inspeção crítica. Girando a roda, também essa nova afirmação estaria suscetível a dúvidas que a incidiriam em novas afirmações e assim por diante, ininterruptamente.

05. Ora, esse cenário nos permite compreender como que a filosofia algumas vezes se passa como antagônica ao ceticismo e, noutras vezes, se passa como sendo o próprio ceticismo. Embora necessite de maiores exames, é surpreendente como que nas escolas a crítica é endereçada à filosofia como sua tarefa. No imaginário em voga, o filósofo é o questionador por excelência, o inspetor e examinador dos raciocínios, curiosamente donde provém o temo “cético”. Por outro lado, o filósofo não é visto somente como aquele que interroga, mas igualmente como aquele que inova e apresenta teses novas – o que nos aponta, paradoxalmente, não mais para aquele que tão-só “põe abaixo o estabelecido”, mas para aquele que igualmente “eleva em meio às cinzas”.

06. Como o deus da mitologia greco-romana que devorava os próprios filhos, essa seria a imagem da filosofia. Ou seria como o Ouroboros, a serpente que devora, indefinidamente, a própria calda.


07. Essa razão autofágica deixa-nos assim entrever que uma história da filosofia é inseparável de uma história do ceticismo, quando não se trata de uma só e mesma coisa. Os motivos pelos quais a primeira nomenclatura prevalece sobre a outra são dois, não exclusivamente, segundo o que me ocorre neste instante: de um lado, já se pensa a dúvida, embora não declaradamente como o fez Bornheim, como parte constitutiva mesmo do ato filosófico; por outro lado, acompanhando André Verdan, professor de filosofia na França, em seu livro O ceticismo filosófico, (2) a certeza é sempre mais agradável a uma profunda tendência do homem de buscar um apoio incontestável e solidamente estabelecido à sua existência repleta de adversidades. Talvez seja, aliás, por isso que o cientista político inglês e conservador, Kenneth Minogue, escreveu que “a política sustenta, com dificuldade, o mundo comum no qual podemos conversar uns com os outros; e os filósofos [céticos], que dissolvem a experiência em perspectivas, horizontes, opiniões, valores, dominações, culturas e todo resto, destroem esse mundo comum.” E, conclui, inevitavelmente, que essa política, “dada toda a sua capacidade de ordenar muitos dos caminhos da vida, precisa manter distância dessas aventuras” do filósofo cético e afins. (3) Daí que, de roldão, prefere-se mais o filósofo em seus momentos de afirmação do que em seus momentos de negação, não obstante ambas, a afirmação e a negação, sejam igualmente imprescindíveis ao exercício filosófico e à própria existência uma da outra, conforme antes elucidamos.

08. É assim que a filosofia, somente para ilustrar, pode ser apresentada desde o seu início como negação do estabelecido pela compreensão mítico-religiosa da vida e destacar mais o não-saber socrático do que o seu único saber que leva ao mesmo, isto é, ao não-saber – mais uma vez, a negação dos “sábios” de seu tempo, os sofistas. Mas também estes, podem ser abordados como negação dos absolutismos que ordenam cada um que se encontra fechado em sua cidade-Estado, procedimentos muito anteriores ainda ao período helenístico de incertezas em que nasce precisamente a atitude de pensamento de Pirro e que tomou pela primeira vez, nos cartórios da filosofia, o nome de “ceticismo”.

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1. BORNHEIM, Gerd Alberto. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. São Paulo: Globo, 2009. 168 p.
2. VERDAN, André. O ceticismo filosófico. Tradução de Jaimir Conte. Florianópolis: UFSC, 1998. 135 p.
3. MINOGUE, Kenneth. Política: uma brevíssima introdução. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 8.

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