Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





26 de dez. de 2011

TEXTO XVIII: Elementos de Lógica Simbólica

Rodrigo Rodrigues Alvim

P, Q, R... Cada consoante significa uma sentença simples.

P – Chove.

Q – Sinto-me mal.

R – O país é complexo.

Essas sentenças simples formam as sentenças complexas através das relações que estabelecem entre si, relações essas que podem ser:

- por conjunção, que representamos pelo ponto (.). Ex.: P . Q (lê-se comumente “P e Q” – Chove e sinto-me mal);

- por disjunção, que, sendo inclusiva, representamos pelo vê (v), do latim vel (ou), e, sendo exclusiva, significamos pelo duplo vê, por “vv” (w). Respectivos exemplos: P v Q (lê-se comumente “P ou Q” – Chove ou sinto-me mal) e P w Q (lê-se geralmente “Ou P ou Q” – Ou chove ou sinto-me mal);

- por condição (ou implicância), que representamos por uma seta (). Ex.: P → Q (lê-se convencionalmente “Se P, então Q” ou “P implica Q” – Se chove, então sinto-me mal);

- por bicondição (ou equivalência), que representamos por seta em mão dupla (). Ex.: P ↔ Q (lê-se convencionalmente “P se e somente se Q” ou “P equivale a Q” – Chove se e somente se sinto-me mal).

Há ainda um símbolo importante, que é o da negação, para o qual, em geral, usamos o til (~) como signo. Assim, se o valor de verdade da sentença simples P (Chove) é “verdadeiro” (V), então o valor de verdade de ~P (Não chove) é necessariamente “falso” (F). Se “falso” é o valor de verdade de P, então “verdadeiro” é o valor de verdade de ~P.

Esses são os símbolos básicos da Lógica Matemática, que, somados às tabelas de verdade básicas de cada uma das relações possíveis, a seguir, permite-nos equações lógicas mais complexas.



Após a leitura deste texto, aconselha-se a leitura do Texto VIII (Exercícios Iniciais de Lógica Simbólica), dentro da categoria Lógica.



18 de dez. de 2011

TEXTO XVII: Moral ou Ética?

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Há quem prefira dizer que não há nenhuma diferença significativa ou decisiva, para os nossos dias, entre "Ética" e "Moral". No entanto, há inegavelmente uma distinção histórica, que se constata a partir da etimologia desses termos: "Ética" é uma palavra de origem grega e "Moral" é uma palavra de origem latina. Pode-se, pois, esperar que isso arraste consigo todo um patrimônio cultural, distintos em certa medida, do qual gostaríamos de destacar a tendência maior dos gregos à abstração, ensejada pela atividade racional, comparativamente aos romanos, muito mais pragmáticos, em vista dos seus interesses indisfarçáveis de expansão e complexidade sócio-política.

02. Por isso mesmo, percebem alguns que "Moral" é um termo muito mais destinado às determinantes do comportamento habitual, cotidiano e não propriamente reflexivo. Seria mais adequadamente destinado aos costumes, advindos de uma educação que cada um recebe desde tenra idade, através do convívio familiar, escolar, religioso, etc., e que, por isso mesmo, remete-nos imediatamente à nossa cultura, ao nosso modo de agir, partilhado e rotineiro, e, diríamos, aparentemente espontâneo. Logo, uma vez que somos seres gregários, não há como alguém ser "amoral". Quanto ao adjetivo "imoral", trata-se de uma característica que se atribui, numa dada sociedade, àqueles que contrariam, por seus atos, ao comportamento padrão ou dominante.


03. "Ética", por sua vez, implicaria uma reflexão (sempre muito importante aos filósofos gregos) sobre essas determinantes dos nossos atos correntes ou, como de outro modo poderíamos dizer, implicaria um ato de pensamento sobre a nossa "Moral": um ato de consciência propriamente dito. Não obstante para muitos isso pareça um "distanciamento da vida", é exatamente essa abstração (e "metafísica") que como que nos aparta de nós mesmos, condição sine qua non para que nos exerguemos tal e qual somos, bem como que há outros modos de ser. Esse processo de "estranhamento" de nós mesmos, vendo-nos como outro ao lado de outros ainda, nos leva indelevelmente a nos reconhecer que somos assim, mas que podemos ser diferentes, que agimos comumente dessa forma, mas que podemos, agora, reconhecendo outras possibilidades de ação, escolher ser diferentes: somos, portanto, livres!

04. Essa nossa condição particularíssima levou-nos à concepção de que estaríamos no centro ou no ápice de tudo o que se encontra no mundo (e que é o mundo), uma tendência que marcará praticamente a nossa história.

05. Antropocêntricos e antropomórficos assim, nós podemos nos surpreender com a hipótese de que talvez não sejamos o animal por excelência, mas, ao contrário, talvez sejamos exatamente o animal que, por assim dizer, "não deu certo", pois falta-nos instintos pelos quais os demais animais se mantêm na vida e, por isso mesmo, já deveríamos ter desaparecido da face do nosso planeta, não fosse o curioso fato de que, na medida em que os fomos perdendo, ocorreu em nós uma capacidade inusitada, a qual denominamos "razão" ou "pensamento" ou "consciência", dentre outros termos mais.



06. Se tormarmos os instintos como respostas que a própria natureza misteriosamente incutiu nos animais às demandas que a própria natureza lhes faz, tal natureza, qual algo pronto e acabado, não se encontra no homem, o que permitiu com que este se visse mais como um ente diante da natureza do que como um ente na natureza. Na ausência de tais respostas como que prévias e determinantes dos atos do gênero humano (ou da espécie humana), o homem, em suas diferentes respostas aos mesmos desafios naturais, vai se compreendendo, muito paulatinamente, não como uma simples amostra de uma categoria, mas como "pessoa" que se faz segundo as suas decisões - uma singularidade.

07. Ainda que todas as coisas estivessem predestinadas, não seriam assim ao homem, que, como parte de tudo o que acontece e assim limitado, escolhe sempre dentro dos limites que então possui, em situação. E diante dos desafios que a vida lhe impõe, não tem como não escolher (se mesmo não escolher é , paradoxalmente, uma escolha que se faz).

08. Nessa crise instituida por possibilidades (afinal, mesmo diante de um único caminho, pode-se optar por não trilhá-lo), o homem inevitavelmente faz escolhas, mas jamais escolhas inevitáveis; fazendo escolhas, cada um se torna o que é. Ademais (como sublinhava Sartre), cada qual é o único responsável pelas escolhas que fez, pois mesmo quando eu faço o que outros me disseram, fui eu quem escolhi fazer o que esses outros me disseram - sem subterfúgios. Finalmente, é preciso observar que cada ato de escolha que se faz há de ecoar como igual juízo de valor que se faz, pois como que "dentre tudo o que ora se me dispõe, escolho precisamente isso!"

09. Nesses termos, tudo-que-sou sou por mim, não havendo distinção entre os meus atos e aquilo que eu chamo de "minha interioridade". Tudo-que-sou sou por mim e não por outrem. Daí que, numa abordagem certamente pragmática, o grande ideal sociopolítico é a internalização da lei em cada indivíduo. Agir assim, mediante lei que me é externa, sempre implica sanções, positivas ou negativas, no intuito de se garantir. Por isso mesmo, se um cidadão age em conformidade com a sociedade (e principalmente com o seu Estado), à qual fisicamente se insere, melhor que o seja como sendo por valores próprios. Formar as consciências, este tem sido o ideal de toda comunidade humana. A lei (externa) é apenas um atalho para esse "panótico", um recurso nada ideal para se alcançar os fins da unidade sistemática da ação social. Comumente, direitos são sanções positivas ao cidadão, que é cidadão simplesmente porque e enquanto cumpre os seus deveres [internalização do que dele a sociedade quer - e faz querer como se fosse, antes, querer do próprio cidadão, pois, como dissemos, não há real distinção entre a "interioridade" (o querer, as convicções...) e a ação; portanto, é querer mesmo do próprio cidadão]. Rigorosamente,não são os valores sociais que se impõem ao sujeito, quando este já os assimilou; ele, este sujeito, é tais valores e tal cidadão.


10. Se por questões "morais" podemos nisso incidir, somente a "ética", enquanto capacidade de reflexão sobre os nossos atos e de suas determinantes, pode nos deixar entrever alguma possibilidade de real liberdade sociopolítica, pois importa, como dissemos antes, naquela nossa capacidade de tomarmos distância da condição a que imediatamente estamos mergulhados, permitindo-nos, inclusive e assombrosamente, que questionemos a nós mesmos quanto ao que somos (equivalente de nossas escolhas). Idealizarmo-nos, nesse sentido, contra o que estamos sendo é o que mais ameaça o status quo e a cultura de massa. Logo, ser "ético" não é, por natureza, ser "politicamente correto", porém é revolver (é revirar) o que está estabelecido, a fim de nos decidir, ainda que seja, mas não necessariamente, por sermos o que contingentemente vem sendo tomado como "politicamente correto". Ser ético, portanto, é revolver o que somos e não somos, para decidir outra vez e sempre, pelo mesmo ou por outra coisa, conscientes dos motes de nossa decisão ["hipotéticos" ou que se quer "transcendentais" ("categóricos"), para usarmos termos consagrados em Kant], que coincide com o nosso bem como "ser-com-os-outros".

11. Dessa maneira, pode-se compreender, preliminarmente, não apenas que a "Moral" é indissociável do humano e que a "Ética" é a tomada de consciência dessa nossa condição, mas também o quanto elas estão correlacionadas, de modo estreito, às questões sócio-políticas, correlação, em não raros momentos, antitética.

31 de out. de 2011

TEXTO XVI: A Filosofia Grega Vai ao Estrangeiro

Rodrigo Rodrigues Alvim

1. Considerações panorâmicas sobre as filosofias helenísticas

01. A filosofia da antiguidade clássica grega, particularmente sustentada em Sócrates, Platão e Aristóteles, não pode ser dissociada da constituição política da qual gozavam as poleis gregas, precisamente porque eram cidades-estados, ou seja, gozavam de uma autonomia que bem refletia o orgulho grego em relação a sua identidade, distinção e superioridade. Tinham a si mesmos (os helenos) como homens propriamente ditos e os não-gregos como bárbaros, animais e selvagens, tanto mais seus costumes se distanciassem do modus pensandi e do modus vivendi gregos.

02. Esses dados nos permitem compreender o impacto que o mundo helênico sofreu ao submeter-se ao macedônio Alexandre. Embora este, bem educado por Aristóteles, tenha, na realidade, expandido a cultura grega por todo o seu império (não é por acaso que este império fora denominado ulteriormente “helenístico”), tal expansão não foi bem vista pelos gregos (do mesmo modo que, nos seus mitos, os deuses se enfureceram com os titãs que roubaram o fogo divino e o entregaram a criaturas inferiores: a humanidade), ciosos que eram de sua cultura. Na filosofia, este impacto não foi menor. A partir de então, o tema geral dos pensadores em contexto helenístico será precisamente este: como filosofar e viver em nova e estranha condição, porque não mais balizada pela constituição política grega?



03. Caídos os muros das cidades-estados modelos, os filósofos veem-se a si próprios num mundo sem fronteiras, sem as antigas orientações. Ao senso comum ateniense, por exemplo, que naqueles anos de autonomia recorriam à praça para decidirem os seus destinos (o destino da polis, as suas leis), agora, submetidos a um estrangeiro, o imperador macedônio, nem mesmo a este podem recorrer, uma vez que Alexandre, de modo constante, se encontra longinquamente em algum ponto da grande expansão do seu império. Assim, sedentos de novas referências, Zenão de Cítio, Epicuro e Pirro, dentre outros, desenvolverão reflexões que marcarão esse novo tempo, tomando vulto histórico como novas vertentes filosóficas, denominadas, respectivamente, estoicismo, epicurismo e ceticismo, dentre outras, como o cinismo e, mais tarde, o neoplatonismo.



04. É imperativo, pois, observar que as filosofias helenísticas são, antes de tudo, filosofias de vida, ainda que não percam o rigor de pensamento. É notório que os pensamentos de Platão e Aristóteles exigiram uma profundidade conceitual somente alcançada por aristocratas que, distantes do cuidado direto e incessante do provimento das necessidades materiais (manuais), reconheceram a importância desse “ócio” para dedicação às especulações, abstrações e generalidades (às “coisas mais elevadas”, segundo consideravam). As filosofias helenísticas, nesse sentido, são mais próximas do pensamento de perfil socrático, num claro interesse de acessibilidade para todo e qualquer homem, grego ou macedônio, livre ou escravo. Daí que surge a concepção do homem como “cidadão do mundo”, concepção denominada geralmente “cosmopolitismo” (“minha cidade é o mundo”). Por isso que, mais do que pensamentos atrelados a elementos externos como o de origem e naturalidade, as filosofias helenísticas promoverão um movimento de internalização, que nos revela a sua tarefa maior de conduzir o homem à traquilidade de sua alma. Eis o filósofo: aquele que se mantém imperturbável, mesmo em meio às intempéries da vida em seu entorno, como as conquistas ou perdas políticas, o acúmulo de riquezas ou a pobreza, etc.

05. Passemos, agora, a expor algumas peculiaridades introdutórias de cada uma das três maiores vertentes filosóficas helenísticas.

2. O epicurismo

06. O epicurismo enquanto escola filosófica desaparecerá paulatinamente com o advento do cristianismo, principalmente pelo fato de o seu fundador, Epicuro, ter proposto a identidade entre a felicidade humana e o prazer, este último no seu sentido mais amplo e, por isso, também carnal, o que se opõe frontalmente à concepção ascética cristã. Nos fármacos ou remédios que Epicuro apresenta para livrar os homens das perturbações da alma, podemos entrever a recusa de Epicuro a uma outra realidade para o homem, senão esta na qual já nos encontramos. Por exemplo, diz ele que, se os deuses existem, não precisamos temê-los, pois os tomamos distintos de nós, ou seja, como distintos da condição humana, não podendo eles, portanto, ter nada conosco. Noutros termos, se, com precisão, são eles divinos, isto é, fora do humanamente ordinário, então, na verdade, não podem haver conosco. Outro exemplo se encontra no remédio que ele nos apresenta para não nos perturbarmos com a morte, pois se a morte de cada um é tomada como a negação da sua vida, significa, então, que quando ela chegar a alguém, este deixa de ser e, tendo deixado de ser, nada mais pode lhe abater (como quando, por ignorância, pensamos na morte como algo que nos abate). Percebe-se, pois, que, para Epicuro, não há um mundo que transcenda a este, no qual nós nos encontramos, e, mesmo que existisse, não teria a ver com o nosso. Ora, na cosmovisão cristã, prevalecerá a existência de dois mundos, sendo a morte não um fim, mas exatamente a transição humana entre um mundo corruptível e um mundo eterno. Nesses limites, podemos bem observar o materialismo epicurista que não se adequará ao espiritualismo cristão. Para Epicuro, a comunidade humana feliz é a comunidade de amigos, que assim constroem a felicidade num “jardim de delícias”.

3. O estoicismo

07. Como o epicurismo, também o estoicismo como escola filosófica desaparecerá pouco a pouco com o advento do cristianismo. No entanto, isso se dará por razões muito opostas, pois se o cristianismo se apresentou como uma contraposição ao epicurismo, assim extinguindo-o, só venceu o estoicismo, ao seu tempo, à medida que, em geral, conseguiu absorvê-lo. Para Zenão de Cítio, pai do estoicismo, nada no mundo é por acaso. Tudo tem uma razão, porque, antes, o que tomamos por realidade é uma Razão Universal, um Macrocosmo (relembremos que “cosmo” é um termo de origem grega que significa “algo bem ordenado”), no qual o homem, entendido como razão, é um microcosmo. Dizendo melhor, conhecer racionalmente o mundo é reproduzi-lo em mente e, em essência, reproduzir a sua ordem. Logo, somente quem bem compreende o mundo é livre, pois age em conformidade com essa sua compreensão, que, por sua vez, se conforma às determinações do mundo. Tudo o que acontece no mundo tem uma razão. Portanto, tudo o que acontece no mundo acontece necessariamente. Tudo, assim, já está predeterminado e ser livre corresponde em agir segundo essa predeterminação que a razão humana pode compreender. Ser livre, enfim, ao invés de se opor à predestinação é precisamente agir de acordo com o inevitável, porque se o compreende como algo que verdadeiramente não é de outro modo e, por conseguinte, só pode ser assim mesmo. Somente quem não pensa adequadamente o mundo, age em contraposição ao mundo e, consequentemente, sente-se constrangido pelos eventos que são a realidade. É o pensamento que assegura a autonomia e liberdade do homem. As paixões são tendências que desequilibram a reprodução da justiça, do equilíbrio e da ordem que a razão humana microscópica traduz da Razão do Universo. Cada homem, porque dotado de razão, não depende de outrem para ser feliz e alcançar a tranquilidade de sua alma: somos cidadãos do mundo e podemos conhecer as leis que nos destinam, bem como a todas as demais coisas, para agirmos sempre em conformidade com elas.

4. O ceticismo

08. Depois de errar por vários cantos do mundo, perguntando pela sua verdade, Pirro passou a suspender todo e qualquer juízo último e pretensamente universal acerca da chamada realidade, pois refletiu sobre as diferentes considerações que os homens têm acerca dela, que redundaram em diferentes culturas e sociedades, resignando que os limites dos nossos sentidos e da nossa capacidade racional são mui estreitos para se estender às coisas, que não são “mais isso que aquilo”. Restaria-nos, pois, não mais nos deixar perturbar com o intuito de conhecer as coisas mesmas, mas sermos completamente indiferentes à verdade pela suspensão dos nossos juízos, mantendo-nos distantes tanto da afirmação quanto da negação (nada podemos dizer: afasia).

09. Não se deixando perturbar por aquilo que é inapreensível, a alma humana se torna feliz.

10. Frente a várias filosofias dogmáticas (ou seja, defensoras da possibilidade de conhecimento, pelo uso da razão ou pelo uso da sensação), predominou a interpretação do ceticismo como oposição às afirmações dessas filosofias. Nesse sentido, o advento do cristianismo associou o ceticismo ao ateísmo (a começar literalmente pela oposição à sentença “Deus existe” com a sentença, que julgavam “cética”, de que “Deus não existe”). No entanto, como dissemos, o ceticismo pirrônico mantinha-se em igual distância da afirmação e da negação, ou seja, pelos limites de nossas capacidades racionais e sensoriais, não podemos dizer que “Deus existe”, mas tampouco que “Deus não existe”, pois deste último também não há possibilidade de provas lógicas ou empíricas cabais. Duvidar não significa negar, mas suspender o juízo e ser indiferente àquilo sobre o qual não se pode ajuizar definitivamente.

15 de out. de 2011

TEXTO XV: A Filosofia de Aristóteles

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. É importante a observação que Peter de Vries, em seu romance Reuben, Reuben, de 1964, fez acerca de Aristóteles: “a prova de seu domínio sobre o homem ocidental é que ele domina o pensamento de gente que nunca ouviu falar a seu respeito”.

02. De fato, desde o seu próprio tempo, século IV a. C., Aristóteles foi impressionante. Um dos mais destacados discípulos de Platão, chegou-se mesmo a esperar que ele viesse a suceder seu mestre à frente da Academia. No entanto, como isso não aconteceu, fundou ele sua própria escola em Atenas, o Liceu, não obstante fosse ele da cidade de Estagira, que ficava ao norte da Grécia de então, vizinha da região da Macedônia. Aliás, Filipe II, rei dessa região e pai de Alexandre, convidará Aristóteles para educar seu filho, este que, mais tarde, conquistará a própria Grécia e se expandirá por tantas outras terras, na construção do primeiro grande império a ser conhecido na parte ocidental do mundo.

03. Também conhecido como “o estagirita”, Aristóteles costumava lecionar passeando com seus discípulos por caminhos ou corredores cobertos (peripatos), o que redundará no recebimento de um segundo cognome, “o peripatético”.


04. Tomando o seu pensamento aqui e ali, pode-se interpretar que Aristóteles se opunha em muito a Platão. Entretanto, de um modo geral, o que se percebe é que as questões que conduzem a sua filosofia são precisamente aquelas estabelecidas pelo seu mestre e que, muitas vezes, suas diferentes respostas a tais questões, visavam a, por princípio, não contestar Platão, mas a atualizar a filosofia ao modo crescente como ela se definia, ou seja, como um discurso que, pouco a pouco, deixa o recurso das compreensões míticas e alegóricas (ainda que simplesmente para se fazer acessível a um público maior) para se deter à compreensão conceitual, ao discurso que, por essa sua distinção, passou a ser denominado, na tradição cultural desta nossa parte do mundo, de “filosófico”.

05. É nesse sentido que esse novo pensamento (logos) será conhecido como lógica, o “instrumento” (organon) do qual o verdadeiro filósofo deve se servir. Essa preocupação de Aristóteles o fez bem observar e sistematizar os meios pelo quais desenvolvemos o poder de convencimento e de persuasão dos nossos interlocutores. (Um esquema dessa sistematização, também formalizada pelos medievais, pode ser vista no texto “Elementos de lógica aristotélica”, neste mesmo Blog, dentro da categoria “Lógica”). Tal sistema argumentativo aristotélico predominou entre nós, quase que absolutamente, até o século XIX.

06. Imediatamente, é possível dizer que Aristóteles recusa o dualismo platônico. Não há, para ele, um mundo para além deste no qual nos encontramos e, tantas vezes, oposto a este, como bem ilustrado por Platão na sua “Alegoria da caverna”. O mundo existente para Aristóteles é este e somente este.

07. Por essa recusa do dualismo ao modo platônico, Aristóteles escreveu que "nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos", isto é, que nada há no pensamento humano equivalente ao que Platão tomou por ideias inatas, por dados que já teriam nascido conosco e que nos seriam como que relembradas por sua evidência, ou seja, como algo que não pode ser (pensado) de outro modo e que, não tendo contraditório, só pode, portanto, ser assim mesmo como universalmente se apresenta à razão. Por isso, muitos consentirão que Aristóteles é um empirista, um filósofo que defende que o conhecimento se constrói a partir de dados observacionais ou sensíveis. Todavia, Aristóteles escreveu livros não somente destinados a tratar de entidades da physis, mas também outros, destinados, por sua vez, a tratar de entidades não propriamente “naturais”, mais gerais e abstratas e, contudo, determinantes da própria “física”. Costumava qualificá-las de propriamente filosóficas, pois da atenção de um “conhecimento das primeiras causas e dos primeiros princípios”.

08. Mais tarde, na Biblioteca de Alexandria, por um acaso feliz, essas obras das entidades não propriamente “físicas” serão chamadas de “metafísicas” (da contração dos termos gregos μετα, meta, que significa “depois de” ou “além de”, e Φυσις, physis, que significa físico ou natureza; também da expressão grega metâ tà physikò, que quer dizer “depois dos tratados da física”), pois foram catalogados e colocados detrás dos livros referentes às entidades da natureza imediata. Assim, nas escolas, “metafísica” passou a ser interpretada como tratado de entidades não adequadamente “físicas”.

09. Na sua “metafísica”, que Aristóteles chamava “filosofia primeira”, ele escreve que há causas gerais que nos permitem perguntar, a fim de se conhecer algo, por quatro determinantes que sobre este atuam e o fazem ser o que é: a causa formal, a causa material, a causa eficiente e a causa final. Em expressiva medida, Aristóteles chega a essas causas gerais por uma revisão da literatura filosófica, dando-nos como que uma primeira história da filosofia, da qual se tem registro. Porém, conclui que, antes dele, nenhum filósofo elaborou o seu pensamento a partir dessas quatro causas conjuntamente, sobretudo pela ausência da causa final, que julgou ele pela primeira vez acrescentar às demais. Destaca-se, pois, que a sua filosofia é finalista ou teleológica (telos, em língua grega, significa “fim”): os acontecimentos do mundo se dão porque, em resumo, tudo procura alcançar o seu lugar natural, o seu justo lugar, sua específica finalidade.

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10. Se são causas gerais, podemos perguntar por elas relativamente a qualquer coisa, a fim de conhecê-la. Por exemplo: tomemos uma estátua da deusa Atena no jardim do Palácio de Versalhes. Sua causa formal (como o próprio nome já diz, sua forma) é a deusa Atena; sua causa material (matéria de que a estátua é feita) é o mármore; sua causa eficiente (o que aplica a forma à matéria) é o escultor; sua causa final (finalidade da estátua) é enfeitar um ambiente.

11. Também na sua “metafísica”, pela recusa da dualidade do mundo promovida por Platão, necessitou Aristóteles recolocar e reinterpretar por diferente via o problema do Ser e do devir (ou vir-a-ser), o que atingiu pela elaboração de dois conceitos importantíssimos em seu pensamento, apresentados pelos termos “ato” e “potência”. Para facilitar, podemos fazer a seguinte correspondência:


12. Propôs Aristóteles que as coisas se movem no sentido de atualizarem nelas as suas potências. Logo, há em cada coisa uma inteléquia (o governo de uma inteligência) que a destina a se tornar isso ou aquilo (a sua finalidade). Cada coisa deseja aquilo do qual carece, tendo nela já essa falta que a destina. Desejam as coisas como que voltar para casa, cumprindo a sua natureza ou essência, o que justifica os movimentos, a mutabilidade do mundo. Por outro lado, as coisas já têm o seu “lugar natural”, o que implica reconhecer, enfim, a imutabilidade de tudo e a sua perfeição. Daí a proposição da existência do “Ato Puro”, instância ou entidade na qual não há potência e, por conseguinte, não há movimento. As coisas buscam atualizar em si o que sempre se encontrou realizado no Ato Puro, que, assim, move todas essas coisas sem se mover (pois o movimento significa potência e aqui se trata do Ato Puro). O Ato Puro, perfeito e divino, tudo move por atração, ou seja, é ele completamente indiferente às coisas, sempre imóvel em sua completude. Não há, consequentemente, como confundir esse Deus aristotélico como o Deus criador do mundo e neste interventor que advirá do cristianismo, muito menos com esse Deus que se quer passional, que ama e se deixa atrair pelo mundo.

13. O-que-é, o Ser, portanto, em sua totalidade, é o que é e, sendo a totalidade, não pode ser de outro modo. Ao mesmo tempo, Aristóteles diz que este ser se diz de vários modos, ou seja, cada modo do Ser é um existente possível, um ente como que ao lado de outros modos do Ser, de outros entes. Por exemplo, o ser humano não pode pretender-se o todo existente, o Ser, mas somente um modo do Ser, um modo possível de existência. De forma semelhante, em outro nível, eu sou não o ser humano, mas apenas uma amostra possível de ser humano. Assim, em toda minha transição, procuro aperfeiçoar-me enquanto ser humano, atualizando em mim as minhas potências. Estou dentro da espécie humana e, portanto, ainda que eu alcance a minha perfeição (enquanto um homem), nunca poderei ser outra coisa que ultrapasse a humanidade e, muito menos, o Ser enquanto Ser.

14. Todas essas questões metafísicas são basilares na constituição e compreensão do mundo, da physis, do cosmos. A concepção cosmológica aristotélica dominará as mentes dos homens até o advento de Copérnico e Galileu, ou seja, por dois mil anos. Calcada na experiência imediata, Aristóteles propôs a Terra imóvel, no centro do Universo, em torno da qual transladam, por ordem e dentro de esferas cristalinas perfeitas, a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. No extremo, até onde a nossa visão alcança, encontram-se as estrelas. Estas são as fronteiras do Universo e são fixas, o que se observa pela manutenção das distâncias entre elas. A finitude do Universo garante a sua perfeição, pois a indeterminação é sinal de imperfeição. Portanto, diferentemente de como se pensará mais tarde, tudo o que é finito e bem definido é perfeito relativamente ao oposto, a tudo o que é infinito e, dessa maneira, indefinido, impreciso. Quanto mais próximo da Terra, mundo sublunar, tanto mais imperfeito, pois em movimentos “retilíneos” as coisas pretendem estar onde não se encontram (potência – movimento – imperfeição). Já no mundo supralunar, os movimentos são circulares, podendo ser tomados como pseudomovimentos, porquanto as coisas se dirigem, em última instância, para o ponto onde já se encontram. Essa concepção cosmológica de Aristóteles será apresentada em linguagem matemática, entre os séculos II e III d. C., por Cláudio Ptolomeu, ficando, desde então, o geocentrismo conhecido como o sistema cosmológico aristotélico-ptolomáico.


15. Não obstante toda essa sabedoria teórica, a filosofia, para Aristóteles, pode igualmente ser traduzida em sabedoria prática, naquilo que reflete sobre a ação dos homens, na ética e na política sobremaneira.

16. A excelência ética ou a virtude se realiza em contextos variados, o que faz com que a justa medida ou termo médio de uma ação humana não possa ser confundido com uma mediana do tipo matemático. Esta mediana equivale a quanto de paixão é razoável numa determinada ação pela qual um ser humano decide. Portanto, em nossos atos não devemos nos exceder e nem ficar aquém dessa mediana. Como as variáveis que se pode enfrentar na vida não podem ser predeterminadas e premeditadas, a ética sugerida por Aristóteles (para a boa educação de seu filho Nicômaco) não poderia ser uma obra de máximas universais de conduta, dadas antecipadamente e de uma vez por todas. Nesse sentido, Aristóteles recomenda que, para saber se se foi prudente, deve-se consultar a comunidade daqueles que são considerados prudentes. Tal sabedoria prática advém da boa educação, que cria em nós o hábito ao agir virtuoso ou para ações justas. Garantir essa boa educação desde tenra idade e de modo constante está diretamente vinculado à participação de uma polis que tanto mais justa possa ser. Entretanto, mesmo na política, Aristóteles não faz defesa de uma cidade-Estado perfeita, como Platão o fez na sua obra A república. Aristóteles enumera três formas de governo possíveis, de algum modo já existentes em alguma cidade-Estado da Grécia de então: a monarquia (o governo de um só), a aristocracia (o governo dos melhores) e o que hoje chamamos democracia. Todas essas constituições políticas devem buscar a felicidade da coletividade, devendo, por isso, cuidar para que não ocorra a sua degeneração em tirania, em oligarquia (governo de poucos) e em demagogia, respectivamente à ordem dada anteriormente.

17. Desde quando a Grécia foi conquistada pelos macedônios, ditos bárbaros pelos helenos, Aristóteles passou a ser visto com desconfiança pelos atenienses, pois fora precisamente ele o responsável pela educação de Alexandre Magno, a quem, agora, estavam todos submetidos. Pela educação recebida, Alexandre ficou marcado pela cultura helênica (o modo dos gregos serem gregos), apresentando-a aos demais povos por ele igualmente conquistados, fundando, assim, o que os historiadores passaram a denominar “cultura helenística” (o modo dos não-gregos serem como os gregos). Mas Alexandre, apesar dos seus grandes feitos, morreu prematuramente, deixando insustentável a permanência de Aristóteles em Atenas. Perseguido, partiu dessa cidade, alegando assim evitar (em memória de Sócrates) que os atenienses cometessem um segundo atentado contra a filosofia. Morreu um ano depois, aos sessenta e dois anos.


O QUE É FILOSOFIA? LEIAMOS AS PALAVRAS DO PRÓPRIO ARISTÓTELES SOBRE ISSO:

“Visto que esta ciência (a filosofia) é o objeto das nossas indagações, examinemos de que causas e de que princípios se ocupa a filosofia como ciência; questão que se tomará muito mais clara se examinarmos as diversas ideias que formamos do filósofo. Em primeiro lugar, concebemos o filósofo principalmente como conhecedor do conjunto das coisas, enquanto é possível, sem contudo possuir a ciência de cada uma delas em particular. Em seguida, àquele que pode alcançar o conhecimento de coisas difíceis, aquelas a que só se chega vencendo graves dificuldades, não lhe chamaremos filósofo? De fato, conhecer pelos sentidos é uma faculdade comum a todos, e um conhecimento que se adquire sem esforço em nada tem de filosófico. Finalmente, o que tem as mais rigorosas noções das causas, e que melhor ensina estas noções, é mais filósofo do que todos os outros em todas as ciências. E, entre as ciências, aquela que se procura por si mesma, só pelo anseio do saber, é mais filosófica do que a que se estuda pelos seus resultados; assim como a que domina as mais é mais filosófica do que a que se encontra subordinada a qualquer outra. Não, o filósofo não deve receber leis, mas sim dá-las; nem é necessário que obedeça a outrem, mas deve obedecer-lhe o que seja menos filósofo.(...). Pois bem: o filósofo que possuir perfeitamente a ciência do geral tem necessariamente a ciência de todas as coisas, porque um homem em tais circunstâncias sabe, de certo modo, tudo quanto está compreendido sob o geral. Todavia, pode dizer-se também que se torna muito difícil ao homem alçar-se aos conhecimentos mais gerais; as coisas que são seus objetos como que estão mais distantes do alcance dos sentidos.(...). De tudo quanto dissemos sobre a própria ciência resulta a definição da filosofia que procuramos. É imprescindível que seja a ciência teórica dos primeiros princípios e das primeiras causas, porque uma das causas é o bem, a razão final. E que não é uma ciência prática, prova-o o exemplo dos que primeiramente filosofaram. O que, a princípio, levou os homens a fazerem as primeiras indagações filosóficas foi, como é hoje, a admiração. Entre os objetos que admiravam e que não podiam explicar, aplicaram-se primeiro aos que se encontravam ao seu alcance; depois, passo a passo, quiseram explicar os fenômenos mais importantes; por exemplo, as diversas fases da Lua, o trajeto do Sol e dos astros e, finalmente, a formação do universo. Ir à procura duma explicação e admirar-se é reconhecer que se ignora. (...). Portanto, se os primeiros filósofos filosofaram para se libertarem da ignorância, é evidente que se consagraram à ciência para saber, e não com vista à utilidade.” (Metafísica, Livro I, 2).

15 de mai. de 2011

TEXTO XIV: Vozes Antepassadas: Narrativa Mítica, Discurso Filosófico e Pluralismo Cultural

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. A narrativa foi um dos recursos basilares das primeiras sociedades (1). Originalmente oral, esteve ela, nessas sociedades, estreitamente vinculada à figura do patriarca, isto é, à figura dos seus membros de idade mais elevada, cujos longos anos de vida se constituíam em índice natural - e, portanto, óbvio - de sua mediação entre as gerações. Eram os mais velhos, pois, os grandes responsáveis pela memória de seu povo, pelo seu regresso à sua matriz e identidade. O processo de “racionalização” das sociedades complexas ensejou entre nós a diluição desse aspecto. A identidade individual, por exemplo, remete-nos hoje mais a um código de letras e números do que propriamente à nossa filiação mesma. De qualquer modo, nas pequenas cidades interioranas, a linguagem cotidiana ainda permite-nos denunciar alguns resquícios do antigo modo de ser das primeiras sociedades, quando, por exemplo, os mais jovens são identificados somente se ao seu nome segue o nome de seu pai ou o sobrenome da família a que pertencem. Neste sentido, não vale dizer que o homem é aquilo que ele próprio faz, mas, sim, que é ele os seus antepassados - razão pela qual a individualidade hodierna é uma característica tardia comparativamente às primeiras sociedades, onde o grupo ou a família é que existem e o indivíduo é ainda uma presença, se não inexistente, demasiadamente opaca. Cada qual é todos os seus parentes vivos ou mortos, próximos ou longínquos, porquanto, assim, cada qual só é, só existe, só é identificado pela sua estirpe, só existe pelo e para o seu grupo. Os mortos servem aos vivos e, por este prisma, vivem, e os vivos servem aos mortos e, já por esta perspectiva, morrem. A “lareira”, então, jamais pode-se apagar. Dela os vivos devem cuidar antes de tudo. Sua chama representa... Ou melhor, ela é a certeza de que não há ruptura entre os vivos e os mortos, entre os presentes e os antepassados. O apagar do fogo implica, por conseguinte, o fim de tudo, posto que todos perdem a sua identidade, ou seja, o seu próprio ser. Cuidar dos mortos (os verdadeiramente mortos não precisariam de cuidados!) é o modo pelo qual os vivos cuidam de si mesmos. Prestar-lhes homenagens e cultos expressa, em verdade, uma auto-afirmação e uma garantia aos vivos de que a sua morte também não passará de uma morte aparente e que a distinção entre os dois mundos é bastante tênue ou sem qualquer rigor, o que facilmente se pode precisar em seus mitos (e que Xenófanes, Eurípedes e Epicuro, ainda na Antigüidade, tratarão de negar com veemência, acentuando um claro e excludente limite entre esses mundos).

02. Mas, o que são os seus mitos? São exatamente a narrativa que conta acerca das origens, dos seus heróis e de cada acontecimento ordinário que, muito ao inverso, são franjas de uma matriz extraordinária e fantástica, na ordem do terrível e do admirável, do temor e do encantamento. E quem sabe melhor sobre isto é quem mais o ouviu ser contado e passado de geração a geração: são os idosos. Estes dominam a arte da narrativa. São eles, em suas tantas experiências de vida, as mais aptas testemunhas de que tudo ocorre como contaram os seus pais, avós, e todos os demais que “passaram sem passar”. São eles a memória que nos chega e é reforçada pela narrativa repetida e atualizada (tradução/tradição); são eles que dizem de onde viemos e para onde vamos; são eles que dizem de nossa identidade, de nosso grupo, de nossa família, de nosso lar, de nossa “lareira”, de nossos antepassados, da “idade de ouro” que se foi e à qual, pelo movimento cíclico de todas as coisas (estrutura mítica), tendemos a retornar. Tudo implica numa necessidade de se re-ligar com o maior de todos os acontecimentos épicos, com o divino, com o sagrado. Os deuses nascem da “lareira” e o que chamamos comumente de religião é o seu corolário mais expansivo (2).

03. Com efeito, o papel social do idoso é passar adiante a estrutura do vivido que é de vários modos contado. E se “passar adiante” tem por vocábulo etimológico o termo “tradução”, donde vem por desdobramento a palavra tradição, segue-se que os mitos são ao mesmo tempo a atualização e a redescoberta presente da estrutura do vivido humanamente. Por este “ponto-de-fuga”, ele possibilita ao homem situar-se e encontrar-se no mundo. Não se trata de colocar primeiramente as coisas do mundo para depois colocar-se a si mesmo ou vice-versa. Precisamente, trata-se de uma contextualização, ou seja, as colocações se dão concomitantemente uma pela outra. O mito é, pois, uma cosmogonia, uma organização do caos, a “pedra angular” de sustentação de todas as coisas, a condição de possibilidade da existência humana - condição necessária; logo, nesse sentido, evidente, mas, noutro, é ele o que há de menos vidente, posto que é a condição apriorística do ato de se “ver”, como os olhos que vêem, sem ser vistos, num mundo sem espelhos.

04. A narrativa mítica, opostamente ao discurso lógico, é um fenômeno social universal e não está ligada de nenhum modo ao desenvolvimento da escrita (3). A narrativa escrita é, então, uma manifestação bastante tardia relativamente à narrativa oral, o que não se constata em relação ao discurso lógico, visto que esse tem por seu fundamento o assim chamado “princípio da não-contradição”, que, por sua vez, construiu-se e expandiu-se indefectivelmente sob os auspícios das primeiras narrativas míticas escritas. Com a gênese da memória escrita, a morte social dos membros mais velhos de uma sociedade se instaura lenta mas impiedosamente, não sendo, pois, um aspecto apenas característico do modo de produção capitalista. Neste, ela apenas se aprofunda paralelamente à necessidade de acentuação progressiva da produção material pela força humana de trabalho.

05. No Ocidente, a lógica foi um instrumental (organon) descoberto por Aristóteles de Estagira, quando este se pôs a analisar a formação dos discursos políticos e sofísticos, da eloqüência ou oratória ou ainda “arte da persuasão”, muito em voga na Atenas “democrática” de seu tempo. Todavia, o princípio sobre o qual tal instrumental se assenta advém da necessidade de sistematização das narrativas míticas, até poucos séculos antes apenas veiculadas oralmente. Dessa maneira, as obras de Homero (que sérios estudiosos hoje afirmam ter sido muitos poetas-escritores) e de Hesíodo emergiram como tentativas primeiras de organização e cristalização dos mais importantes mitos da Antigüidade clássica grega, o que permitiu aos pensadores posteriores detectar as várias “incoerências” entre uma parte e outra de um mesmo mito ou entre mitos distintos, mas dados como complementares, e, enfim, criticar a “veracidade” de muitos de seus conteúdos. Tomando este fio condutor, muitos historiadores apresentaram (e outros tantos ainda apresentam) o discurso “lógico”, racional e filosófico como uma manifestação anteposta e supressiva da narrativa mítica (4).

06. Aristóteles jamais fora esquecido no Ocidente devido a este seu contributo. Peter de Vries escreve no seu romance Reuben, Reuben que “a prova de seu domínio sobre o homem ocidental é que ele domina o pensamento de gente que nunca ouviu falar a seu respeito” (5). De fato, uma das grandes teses sustentada por Immanuel Kant, no berço da contemporaneidade, foi a subjetividade transcendental das categorias aristotélicas. Ou seja, tudo aquilo que o Estagirita tomou como categoria dos entes não era senão conceitos constitutivos do próprio modo de os homens entenderem as coisas, isto é, da própria faculdade humana. E é exatamente essa característica universal de toda psique humana que garante a objetividade da ciência. Logo, embora paradoxalmente, Kant nega Aristóteles para ratificá-lo incondicionalmente (6).

07. Destarte, a “palavra” dos filósofos (logos) ridicularizou, no desenrolar de nossa história, a “palavra” dos poetas cantores. Coube, porém, à ciência moderna levar tal feito ao seu extremo, apoiada por correntes filosóficas como o positivismo e o empirismo lógico. Nada mais parecia incólume à crítica do logos, da razão instrumental, para bem usar um termo hoje bastante corrente (7). Ora, a palavra de um discurso “lógico-formal” resume-se na exigência de superação de toda diferença radical, porque esta é, no seu entender, dado inconfundível de um equívoco seguramente cometido. E na ânsia de “resolver” as ambigüidades, tal pensamento, que também se estende na avaliação das relações humanas, não possui a capacidade de, pelo menos aí, compreender discursos diversos de um suposto mesmo mundo.

***

08. Nas ciências humanas, contra a linearidade da concepção social dos evolucionistas, Claude Lévi-Strauss, fundador da antropologia estruturalista, afirmará que o “lógico” não é atributo apenas da ciência ocidental. Em verdade, ele é uma expressão intrínseca à cultura lato sensu. E não somente a uma cultura dominante, mas a todas as sociedades existentes, por mais pejorativamente primitivas que elas possam parecer ao olhar estrangeiro. As sociedades não caminham todas numa mesma direção, mas cada qual segue sua “lógica” própria (8), que, surpreendentemente, aqui, coincide com o que há de mais subjacente, mais determinante e, contudo, menos detectável claramente enquanto tal em toda e qualquer sociedade: o mito. Embora cada ação social seja dele uma expressão possível, nenhuma possui a capacidade de esgotá-lo, ou melhor, de coincidir-se com ele. Se assim não se pode mais falar de um povo ápice e modelo ao destino dos demais, todas as sociedades, por um lado, falam inevitavelmente a partir de princípios próprios e, a fortiori, nenhuma delas escapa a um mesmo tipo de etnocentrismo. Por outro lado, todavia, torna-se cada vez mais inaceitável o processo de aculturação, segundo o qual uma sociedade age não reciprocamente sobre as demais. Do mesmo modo que a trajetória pessoal expressa a identidade de um homem e esse, a partir dessa sua identidade ou trajetória de vida observa, julga e age, também um povo, sob o peso de seu passado, de sua história, percebe-se, avalia-se e move-se a si mesmo e igualmente a tudo mais. Perfeitamente, toda identidade implica paradoxalmente a “mesmidade” e a diferença. Em relação a uma dada sociedade, isso parece ainda mais claro, posto que, não obstante toda sua diversidade interna, ela se apercebe una frente a uma sociedade outra, tanto mais esta lhe seja relativamente discrepante. Do mesmo modo que a perspectiva cartesiana da consciência de si se faz insustentável hoje porque remete a consciência pessoal a um “sol-ipsismo” radical, isto é, a uma ipseidade negativa de toda alteridade, é semelhantemente insustentável almejar a autoconsciência social se se pensa uma sociedade distante de um encontro, de um verdadeiro encontro, que, enquanto tal, exige impreterivelmente o diverso. Contudo, à perspectiva ou à expectativa do encontro, o ostracismo, o fundamentalismo e o fideísmo são possíveis posturas prévias de defesa, mas que, uma vez instauradas, tornam-se difíceis de serem superadas.

09. Para uma tentativa de encontro, conseqüentemente, deve-se entender que o discurso lógico, aristotélico, cartesiano ou formal é o menos indicado para tal, não só porque ele está associado à arrogância do único adequado para o resgate do verdadeiro, mas também porque ele inevitavelmente já se estrutura sobre os sustentáculos do combate e da violência implícita na arte da persuasão. A pretensão última desta é que uma das partes faça a sua considerada oponente calar-se. Dessa maneira, parece realmente que o discurso “lógico-formal” não se conforma ao “diá-logos”, porém o seu sucesso está associado, em última instância, ao “mono-logos” do pretenso universal que se deseja, a todo custo, alcançar. É talvez contra isto que se quer hoje menos “entendimento” e muito mais “compreensão”, menos “justificação” e muito mais “narrativa”.

10. A narrativa é um ato desarmado que se dirige a um espírito desarmado. A narrativa é antes um convite do que um desafio. Não é uma disputa. Diz de tudo sem se querer um ditado exclusivo. Diz do vivido, que ninguém pode negar, e menos do como se deve viver, sobre o qual, de um outro modo, pode-se discutir. É somente uma lição dentre tantas outras possíveis e que podem até ser completamente diferentes; lição que revela, simples mas intensamente, todo um modo próprio de sentir, de pensar e de agir; um modo de ser que quer apenas se dizer uma existência dentre todo o existente - um simples modo de ser, um simples modo do ser que se diz de vários modos.


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1) Artigo publicado na Rhema - Revista de Filosofia e Teologia - com o mesmo título.
2) A religião e o mito, como fundamentos de todas e quaisquer sociedades e ciências, foram tematizados por muitos importantes pensadores, cada qual a seu modo próprio. É famosa a pergunta que Sigmund Freud fez a Albert Einstein em uma de suas correspondências a este, de 1932: “Não será que cada ciência, no fim, se reduz a um certo tipo de mitologia?” Émile Durkheim, por sua vez, com todas as letras, afirmou, em sua última grande obra, “que as categorias fundamentais do pensamento e, por conseguinte, a ciência, têm origens religiosas. (...), que quase todas as instituições sociais nasceram da religião.” (DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema sistêmico na Austrália. Tradução de Joaquim Pereira Neto; revisão de José Joaquim Cabral. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 495-496.).
3) “(...) ‘mito’, de acordo com o significado original grego da palavra, é sempre ‘expressão sonora’ (a palavra mytha, lingüisticamente parecida, é em grego phone, ou seja, ‘voz, som’) (...)”. Cf. KERÉNYI, K. O testemunho antropológico do mito. In: GADAMER, Hans-Georg; VOGLER, Paul. (Orgs.). Nova antropologia: o homem em sua existência biológica, social e cultural. São Paulo: E.P.U./EDUSP, 1977. v. 6 (Antropologia filosófica I), p. 218.
4) “Para Gusdorf, o homem de hoje vive duas possibilidades de alienação: a alienação do mito e a alienação do intelecto. Um é o apego radical ao modo mítico da verdade, querendo restabelecer o mito como forma atual e única (grifo nosso) de defrontar-nos com a realidade; o outro é a quimera da demitização completa da existência pela aceitação também única do logos. Para o filósofo francês, essas alienações são duas formas de infidelidade à condição humana, cuja trama deve resultar de um contraponto entre a consciência mítica e a consciência reflexiva.” (MORAIS, Regis de. A consciência mítica: fonte de resistência do sagrado. In: ______. (Org.). As razões do mito. São Paulo: Papirus, 1988. p. 79.
5) Cf. MORRALL, John B. Aristóteles. Tradução de Sérgio Duarte; revisão de Carlos Evaristo da Costa. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. p. 5.
6) REALE, Giovanni.; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. São Paulo: Paulinas, 1990. v. II, p. 884.
7) Primeiramente, o pensamento discursivo interveio como um instrumento de mediação, aumentando o domínio do espírito sobre as coisas. Depois o comportamento categorial, que não passava de um meio, afirmou-se como um fim em si. Rompem sua subordinação ao mito, que ele tinha como primeira função elucidar. Levou a cabo a crítica ao mito e esta censura resultou num rechaço sistemático. Afinal de contas, o que tinha ficado de irredutível na consciência mítica se vê agora reprovado, desonrado, como um asilo de ignorância”. GUSDORF, Georges. Mito e metafísica: introdução à filosofia. Tradução de Hugo Prímio Paz. São Paulo: Convívio, 1979. p. 192.
8) LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. In: Seleção de textos. São Paulo: Abril, 1976. p. 51-94.

9 de mai. de 2011

Repente para Pensar II: Virtual

Rodrigo Rodrigues Alvim

Comumente, tendemos a listar algumas coisas como absolutamente reais e outras coisas como absolutamente virtuais. A compra que fazemos no mercado do nosso bairro, por exemplo, é tomada como “real”, mas a compra que fazemos pela Internet é tomada como “virtual”.

Apesar disto, “virtual” é algo relativo e, por isto mesmo, não temos como afirmar ou negar que algo seja, de uma vez por todas, “virtual”, pois mesmo o “impossível” ou o “necessário” – porque, respectiva e precisamente, impossível ou necessário – não possuem quaisquer “virtualidades”. Logo, o “virtual” se encontra no rol do “possível”, ou seja, da contingência, podendo, pois, ora ser e ora não mais ser.

Assim, não é tarefa fácil conceituar o “virtual”. Contudo, fazemo-lo de algum modo, pois é a partir deste conceito que predicamos ou não predicamos das coisas a “virtualidade”. Se o senso comum o faz, embora não explicitamente, e nós aceitamos como uma das tarefas da filosofia, quando não a única, a “terapia” da linguagem, então se torna desafio à filosofia o significado de “virtual”.

Nestes termos, exponho à crítica dos aqui leitores a concepção do “virtual” como aquilo que pretende se passar por (outro), normalmente, expresso pela partícula “como se” ou afins. Por este sentido, dentro do rol do possível, toda coisa em relação a si mesma é “real”, mas, “virtual”, se pretende se passar por outra coisa que ela não é.

Nisto estaria a razão maior pela qual dificilmente conseguimos bem distinguir efetivamente o “virtual” do “real”, pois tanto mais “virtual” tanto mais próximo do “real”, sem, no entanto, sê-lo.


A peça que hoje pela manhã se encontrava na entrada da Biblioteca era, pois, como tal, “real”, mas como pretensamente um “aquário”,“virtual”.

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Repente para Pensar I: Aula da Saudade

Rodrigo Rodrigues Alvim

Fui convidado para ministrar uma "aula da saudade" para formandos em Filosofia em fins do ano de 2009. Fiz dessa própria expressão tema do que deveria-lhes ser a última aula.


Preciso mesmo anunciar que a “aula da saudade”, para a qual viemos, está efetivamente adiada?

Preciso mesmo anunciar que, efetivamente, ela, na verdade, nunca se realizará?

Desejá-la é tudo o que ora podemos, se e quando a saudade da qual necessitamos para realizá-la ainda não existe.

Sim, há certamente entre nós muito desejo neste instante, mas não ainda saudade.

O impressionante é que quando a saudade brotar, também lá a “aula da saudade” não mais acontecerá, pois cada um consigo mesmo, já longe de seus professores e colegas de classe, apenas realizará essa “aula” por obra de sua solitária imaginação sobre os recortes de sua memória.

Se saudade é mesmo desejo do antes presente, mas agora ausente, dessa “aula”, propriamente dita, jamais poderemos ter saudades: saudades teremos, isto sim, das aulas que já aconteceram, mas, também, deste momento em que, mal posto, a “aula da saudade” somente poderia ter acontecido.

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7 de mai. de 2011

TEXTO XIII: Traços da Filosofia Moderna

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tamanho foi o impacto sofrido pelos europeus em razão do seu maior contato como o Extremo Oriente e, sobretudo, com o seu descobrimento do “Novo Mundo”, que o maior antropólogo do final do século XX, Claude Lévi-Strauss, ao desenvolver um estudo desse tempo, asseverou:

Nunca a humanidade tinha conhecido provação mais pungente, e nunca voltará a conhecer outra igual, a menos que um dia se verifique que outro globo, situado a milhões de quilômetros do nosso, é habitado por seres pensantes (1).


02. No século XVI, o mundo, especialmente a Europa, era um palco no qual se entrecruzava um sem número de modos de se pensar e se comportar, de objetos sobre os quais refletir e objetivos à vista dos quais agir. Entrecortava-se igualmente uma riqueza incalculável de espécimes de flora e de fauna. Todo e qualquer trabalho de síntese nesse contexto parecia não só temporariamente insuficiente, mas, para sempre, impossível de se realizar. O universal nunca pareceu tão ilusório. E quem nele ainda cria fez-se assim duplamente dogmático: primeiramente, no sentido mais antigo, consoante o que tudo aquilo que está para fora do conceito, tudo o que já não participa de algum modo do conceito é dado como falso e inexistente; em segundo lugar, no sentido pejorativo, segundo o qual aquilo que tem tão poucas chances de se fazer convencer numa discussão, deve-se furtar a qualquer embate crítico, tornando-se, pela esta sua própria recusa, indiscutível.

03. Por fim, na Europa que se fazia berço da “modernidade”, o próprio ato de se questionar se relativizava em cotejo com outrora. Nas viagens que se empreendia às Américas, costumava-se, quando de retorno, trazer de lá, junto a tantas outras novidades, alguns de sua própria gente. Foi, então, numa dessas ocasiões, que o filósofo Michel de Montaigne conheceu três índios com quem a nobreza francesa, conjuntamente com o Rei Carlos IX, entretinha-se. “Ensinaram-lhes como era uma cidade grande”. Entretanto, tão logo foi-lhes permitido, fizeram eles, os índios, três observações acerca de tudo o que viram no “Velho Mundo”, das quais citaremos apenas a última nos próprios termos do filósofo francês:


Observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (...); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais (2).

04. Ainda que acreditando-se senhora e juíza do mundo, a Europa não pôde impedir que também se fizesse vítima de negativas avaliações, advindas de sociedades que violentamente submetia ao seu mando. E, como se já não bastasse, paralelamente a esta “crítica exótica” desenvolveu-se uma ofensiva no seu próprio interior, uma autocrítica ou “crítica esótica” que não a poupava menos de censuras e retaliações.

* * *

05. Fundamentalmente, quatro procedimentos filosóficos se destacaram no sentido de posicionar-se frente à nova situação do mundo moderno. São eles: o intelectualismo, o empirismo, o fideísmo e o ceticismo. Estes, no entanto, podem ser agrupados em duas denominações radicalmente excludentes: o racionalismo (que abarca aqueles dois primeiros) e o irracionalismo (que abriga os outros dois restantes).

06. Os racionalistas, como o próprio nome já deixa entrever, crêem na possibilidade da razão humana atingir verdades absolutas, ou por si mesma, isto é, a priori – é o caso de intelectualistas como René Descartes – ou por via da experiência, isto é, a posteriori – como é o caso de empiristas como John Locke. Os irracionalistas, então, têm uma opinião antagônica: a racionalidade do homem, pela própria finitude e contingência de todo humano, nunca seria capaz de abranger o absoluto em sua infinitude e transcendência. Somente por um ato de fé, afirmarão os fideístas, o homem alcançaria tal absoluto, mas que continuaria indemonstrável racionalmente. Mais extremistas, contudo, são os céticos, para quem nem por um engajamento absoluto apreenderíamos algo de inquestionavelmente verdadeiro. Assim, a suspensão de todo juízo último resume o seu único conselho.

07. A substituição da astronomia ptolomaica pela copernicana e da física aristotélica pela galileana era, para os racionalistas, a prova cabal do poder humano no conhecimento da verdade acerca do mundo, assim como a física newtoniana será, mais tarde, a “menina dos olhos” dos filósofos iluministas. Por conseguinte, o homem poderia encontrar conforto em si mesmo, em sua razão, do mesmo modo que, no feudalismo, o homem fez de sua fé num único Deus onipotente, onisciente, onipresente e providente (o próprio absoluto, universal e verdadeiro) o sustentáculo do seu universo. Neste caso, os filósofos modernos serão adeptos da religião natural que assevera que Deus criou o mundo, mas, logo após, como que o abandonou sob a regência de sua vontade, leis fixas, razão divina da natureza, cuja apreensão estaria a cabo do homem (criatura especial, dotado de razão pelo mesmo Deus, a fim de prever e prover segundo os seus interesses, os quais, obviamente, deveriam visar o bem da própria humanidade).

08. Todavia os céticos modernos não eram menos convincentes em sua desconfiança dessa autonomia da razão na apreensão da Razão Universal, pois ainda que esta de fato exista – diziam – não existe como tal, entretanto, para uma criatura determinada, isto é, com precisos limites sensíveis, intelectivos, lingüísticos, geográficos, históricos... E com referência aos prováveis avanços científicos, por exemplo, podemos ter um acesso à interpretação cética, recorrendo, outra vez, ao atento Montaigne:

O céu e as estrelas foram durante três mil anos considerados em movimento. todos acreditaram, até que (...) se lembrou de sustentar que a terra é que girava em torno do seu eixo (...); e em nosso tempo Copérnico demonstrou tão bem esse princípio (...). Quem sabe se daqui a mil anos outro sistema não os destruirá a ambos? (3).

09. Ainda mais adiante, tomando em sua atenção outro fato que lhe era recente, o mesmo pensador retorna com a mesma questão de inegáveis traços céticos:

Ptolomeu (...) determinava os limites de nosso mundo; os filósofos antigos pensavam nada ignorar a esse respeito acerca do que existia, salvo algumas ilhas longínquas que podiam ter escapado às suas investigações; (...) e eis que neste século se descobre um continente de enorme extensão (...). Pergunto então se, visto que Ptolomeu enganou outrora (...), não seria tolice acreditar resolutamente nas idéias de seus sucessores (...)? (4).

10. Francês como Montaigne, Descartes, porém, não é cético. E como bom racionalista proporá a elaboração de uma mathesis universalis (5) (já precedentemente esboçada por Nicolau Oresme). A razão (ou o “bom senso” – como Descartes primordialmente a denominou) é estabelecida como “a coisa do mundo melhor partilhada” (6). Ou seja, a fim de conter toda diversidade e toda contingência que, em seu tempo, marcam a esfera dos costumes e o campo da moral, Descartes estende a razão, tão cara aos “civilizados”, até os bárbaros, anteriormente destituídos dela – e sobretudo dela. Pode-se, inclusive, encontrar, desde então, um maior uso da razão num selvagem do que no homem europeu (7). Tudo jaz, portanto, na sujeição à solidificação dessa razão, a única capaz de recuperar o universal, eterno e não contraditório – ela, a própria unidade comum. Antes dessa tarefa de fundamentação da razão, assim como da exposição de seu bom uso, isto é, de seu método, tudo o mais é provisório, como os preceitos morais que se conformam, nesse primeiro instante, às circunstâncias particulares da época (8). Por fim, somente um método de cunho universal poderia ousar guiar adequadamente razão tão excelsa na construção daquela “ciência plena”. Descartes, entretanto, julga já tê-lo descoberto (9). E ao investigador exige-se que seja sempre ativo e nunca passivo, que nunca a sua alma inquisitiva sofra despreocupadamente as determinações dos sentidos do corpo, pois estas, por si mesmas, propendem-nos ao erro. O homem em sua razão, dominador absoluto da situação, somente assim ascenderia à verdade incondicional, à presença incontinenti.

11. Essa razão cartesiana, porém, é denominada na filosofia de Blaise Pascal – outro francês, este agora de contorno fideísta – de “espírito de geometria”. E, como tal, não é de modo nenhum universal, mas apenas peculiar à matemática e a algumas outras áreas mais afins. Ela mesma, em sua cadeia, está na dependência do “coração”, ou melhor, daquilo que Pascal chamou de “espírito de finura”, que, por sua vez, é constituída de princípios sutis, “apenas entrevistos, mais pressentidos do que vistos”, indemonstráveis (posto que, de outra maneira, incorreríamos numa petição de princípio) e não manipuláveis como aquelas dos geômetras (10). Este espírito sutil é, pois, acima de tudo, um sentimento e, assim sendo, irracional – de um modo especial, porque muito mais intenso, para a tradição racionalista. É, por isso, que a filosofia pascalina foi difundida e guardada numa só e mesma epígrafe, qual seja, a de que “o coração tem razão (entenda-se “princípios”) que a própria razão (a dos geômetras e racionalistas) desconhece” (11). Portanto, aquilo que tão-só por si mesma a razão cartesiana aceita imediatamente como evidente, porque claro e distinto (ou como verdadeiro, conforme a primeira regra do seu método), não seria com fidelidade entendimento, mas sim intuição (12). Aliás, é evidente e inquestionável, porque indemonstrável pela razão. É chão sobre o qual se eleva o edifício da ciência e a partir do qual todos os elos da cadeia do raciocínio podem-se tornar, agora sim, demonstráveis e justificáveis e ser, em vista disso, considerados pela força da lógica do entendimento.

12. Também para Pascal a grandeza humana está em sua razão (13). No entanto, almejar a sua absolutização para aí fundar toda a certeza é tolice e ilusão. Afinal, devemos convir que não somos absolutos:

Conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo; o que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada; e o pouco que temos de ser impede-nos a visão do infinito (14).

13. Trágico e paradoxal não é então somente Pascal, mas todo homem, inclusive e – talvez principalmente – esses que não se atentam para a condição humana de intermediário entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, de um ser que se faz destacar pela atividade de sua razão, mas que logo se interrompe e sucumbe ao som de uma insigne mosca (15). Singularmente, a diversidade do século XVII, que se abriu por todos os lados, circunscrevendo o ser humano, faz deste, ainda mais, uma criatura atônita. À medida que as décadas foram se sucedendo umas às outras para constituírem-se em séculos também sucessivos, certamente as diferenças já existentes multiplicaram-se ainda tantas vezes mais, resultando em diversidades inestimáveis. Infinitas. Mas a acentuação da tragédia desses primeiros séculos da “modernidade” está justamente na sua proximidade com a Idade Média, que lhe é, em precisos aspectos, destoante, realçando, por isso mesmo, os tons próprios e exclusivos de um tempo e outro. Movia-se como que num tempo distinto do qual se nascera, sem que contudo o tivesse visto passar. Entre a “fortuna” e a “virtu” (16), entre um destino que se crê plenamente traçado e o horizonte que se percebe completamente aberto, tenta o homem contemporâneo de Pascal proteger-se outra vez sob a mão do absoluto, que, no seu pretérito, já havia serenado tanto temores humanos. Porém não mais existia aquele tipo de crença necessário no absoluto pessoal e providente, cuja abundância era notória no medievo. E, não obstante tudo isto, era difícil a esse mesmo homem acostumar-se tão repentinamente ao espírito aventureiro que o novo momento lhe exigiu em substituição ao espírito missionário daqueles anos idos.

(...), o homem de pascal (...): ele não está mais abrigado sob a ordem cósmico-teológica da visão cristão-medieval do mundo, nem voltado, como o homem cartesiano, para o senhorio e posse da natureza (17).

14. Os estreitos limites humanos em face do universo ilimitado, se reconhecidos pelo homem, detêm toda prepotência de sua razão no que concerne à sua habilitação para compreender não só o imanente em sua totalidade, mas também o Ser que lhe é completamente transcendente: o Deus absconditus cristão (18). Logo, em sua condição de grande físico e matemático, Pascal atenta-nos para o fato de que é pura ilusão humana pensar na realidade de um método único e universal que nos proporcione todo e qualquer conhecimento. Se é o “método geométrico” que nos confere os precisos dados matemáticos, o uso do “método experimental” será, por sua ordem, imperativo no campo da física (como ocorreu na sua teoria sobre o vácuo) (19). E nesse campo não há propriamente certeza, mas apenas uma hipótese mais provável do que outra(s). Ou seja, caso haja aí alguma evidência, ela diz respeito à falsidade da hipótese afastada, por nos conduzir a absurdos, e não à inquestionabilidade da hipótese que se firmou como a teoria aceita (20). Afinal, teorias antes dominantes – pois as melhores para a sua época – em épocas seguintes foram falsificadas e substituídas por outras (21).

15. Já como pessoa religiosa, adepta do jansenismo, Pascal pondera que a fé em Deus é graça concedida pelo próprio Deus a alguns homens, seus eleitos. E somente a autoridade da revelação divina, que se encontra na tradição da Igreja e na Bíblia, fornece-nos os seus preceitos. Desse modo, ao homem sem fé resta apenas “apostar” na existência de Deus, se almeja a transcendência. Pois a razão só pode nos fornecer uma pseudodivindade, um ser absoluto artificial, semelhante à res infinita cartesiana, “ab-usada”, por Descates, para legitimar definitivamente a sua física e metafísica (22). As palavras seguintes de Pascal ratificam o seu apontamento para um engajamento absoluto:

Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, pois, não tendo partes nem limites, não tem nenhuma relação conosco. Somos, portanto, incapazes de conhecer não só o que ele é como também se existe. (...). Examinemos, pois, esse ponto e digamos: “Deus existe ou não existe”. (...). Em que apostareis? Pela razão não podereis atingir nem uma nem outra; (...). Pensemos o ganho e a perda escolhendo a cruz, que é Deus. Consideremos esses dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderes, não perdereis nada. Apostai, pois, que ele existe, sem hesitar (23).

16. Conseqüentemente, na maneira de entender de Blaise Pascal, Deus e os princípios do coração não são exatamente definíveis de forma racional. Esta tendência perdurará no campo da filosofia e da ciência e radicalizar-se-á, respectivamente, na “morte de Deus” nietzscheana e na “negação da pura indução” popperiana. Mais proximamente a Pascal e como que num “rito de passagem”, os filósofos iluministas destruirão a noção de um Deus tão íntimo e arbitrário, sustentado pela fé cristã, e apenas aceitarão, no seu limite, um Deus de vontade rígida, cujo conhecimento se tem indiretamente pela apreensão racional das leis da natureza. Em poucas palavras, o que importa não é mais tanto a existência de um Deus, porém, isto sim, a de um mundo de razão e que, como tal, pode ser conhecido progressivamente pela razão do homem. Somente nisto Deus ainda recebe alguma atenção devida: como mantenedor do mundo em sua ordem eterna pela sua vontade imutável. Trata-se, então, de um Deus dissolvido no mundo, do “extra-ordinário” tornado também ordinário, numa superação do dualismo entre natural e “sobre-natural”. Sim, o iluminismo instaura uma nova religião, a religião natural, em companhia da qual a religião antiga, da revelação, torna-se, em considerável extensão, supersticiosa. Não há como negar que muitos iluministas ainda são “homens de fé”; todavia, relembremos, toda essa ambigüidade é característica desse tempo de transição e que pende tais iluministas para onde a própria transição indica: os dados revelados, que podem ser expressos racionalmente, estes permanecem; aqueles que assim não podem ser transcritos dirigem-se imperceptivelmente para o esquecimento.

17. Quanto aos “princípios do coração”, o mais genial dos filhos gerados pelo Iluminismo, Isaac Newton, parece considerá-los, ainda que sem notar claramente – ele, que almejou negar toda metafísica como alicerce de sua física. Pois quais são expressamente alguns desses princípios? Pascal mesmo citou-nos alguns:

(...) pelo coração; é desta maneira que conhecemos os princípios (...). Sabemos que não sonhamos (...). Pois o conhecimento dos princípios, como o da existência de espaço, tempo, movimentos, números, é tão firme como nenhum dos que nos proporcionam os nossos raciocínios (24).

18. Ora, são precisamente três desses princípios, básicos para a física newtoniana, que o seu autor apresenta sem demonstração ou definição alguma, justificando-os como evidentes:

Até aqui só me pareceu ter que explicar os termos menos conhecidos, mostrando em que sentido devem ser tomados na continuação deste livro. Deixei, portanto, de definir, como conhecidíssimos de todos, o tempo, o espaço, o lugar e o movimento (25).

19. Em muitos outros pontos, todavia, os iluministas são cartesianos. Pois da autonomia da razão, já conferida por Tomás de Aquino na esfera do natural, observar-se-á uma passagem para uma autonomia absoluta da razão, possível por aquela redução entre o transcendente e a natureza. Tal obra permitirá a Ernest Cassirer escrever hodiernamente sobre aquela época:

O século XVIII está impregnado de fé na unidade imutável da razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo-pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura. De todas as variações (...) destaca-se um conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade e sua consistência são justamente a expressão da essência própria da razão (26).

20. Nesse primeiro instante, grande é o otimismo humano que instaura a si mesmo, enquanto capacidade cognitiva de compreensão de todas as coisas que o mundo contém, como o novo e verdadeiro eixo de tudo o que existe. Todavia, quando em breve reconhecer os seus fracassos e o não cumprimento de muito do que prometera naquele seu primeiro momento de entusiasmo, a razão do homem concomitantemente reconhecerá os seus próprios limites. E é isso o que corrobora Ernest Cassirer, caso prossigamos em sua leitura:

Para nós – se bem que estejamos de acordo, no plano das idéias e dos fatos, com determinadas teses da Filosofia do Iluminismo – a palavra “razão” deixou de ser há muito tempo uma palavra simples e unívoca. Assim que recorremos a esse vocábulo, sua história logo revive em nós e ficamos cada vez mais conscientes da gravidade das mudanças de sentido que ele sofreu no transcurso dessa história (27).

21. Igualmente imprescindível, mas contra o intelectualismo, é a experiência do mundo, para os iluministas, a fim de que, pela observação, possa se chegar a generalizações teóricas, dotadas de caráter explicativo o suficiente para esclarecer aqueles fatos particulares, que as ensejaram, e outros mais similares que certamente escaparam até então às observações feitas. Este aspecto fará com que os empiristas neguem todo “a priori”, toda idéia inata no homem, defendida veementemente por intelectualistas como, além de Descartes, Gottfried Wilhelm Leibniz (28). Isaac Newton, assim procedeu ao tentar negar toda hipótese e metafísica em sua análise do mundo:

Esta análise consiste em fazer experimentos e observações, e em traçar conclusões gerais deles por indução (...). Pois as hipóteses não devem ser levadas em conta... (29).

22. Mas quem melhor tratará dessas questões será o empirista britânico, David Hume, contemporâneo e conhecedor de Newton, que lucidamente reconhece a riqueza preceitual e prática de seu tempo, mas que paradoxalmente – como esse próprio ínterim histórico – incita ainda mais a ânsia humana pelo universal:

Até agora, os moralistas estão habituados, quando consideram a multiplicidade e a diversidade das ações que despertam nossa aprovação ou nossa repulsa, a procurar um princípio comum do qual poderia depender esta variedade de opiniões. E, embora tenham às vezes levado o assunto demasiado longe devido à sua paixão por algum princípio geral (...). Análogos têm sido os esforços dos críticos, dos lógicos e mesmo dos políticos (30).

23. Levando as teses empiristas às suas últimas conseqüências, Hume abala irreversivelmente a “pedra angular” de toda “filosofia difícil e abstrata”, de todo pensamento racionalista e metafísico. Esta se resume no princípio de causa e efeito que tem raízes no “hábito” e no “costume” (31) (formados por sucessivas experiências semelhantes numa mesma ordem de contigüidade e na “crença” de que o futuro tem por modelo o passado) (32) e não numa idéia inata da razão ou numa “conexão necessária” da natureza (33). No entanto não só as “relações de idéias” sofrem, finalmente, o golpe dessa conclusão humeana, mas também as “questões de fato” (34) que não mais escaparão à sua irredutibilidade, pois, por ser o contrário de um fato sempre possível, não implicando jamais em contradição (35), a espera de um fato-efeito, que habitualmente sempre seguiu a um fato-causa, acaba inevitavelmente dado lugar, se visto por este ângulo, à dúvida. Assim, toda capacidade humana de ciência tem que se restringir ao que os nossos sentidos nos fornecem imediatamente, o que, desse modo, não pode ser denominado, exatamente, Filosofia. Pode-se, agora, compreender todo aquele espaço que Hume concede ao ceticismo em suas obras. O termo médio de toda preposição não encontra qualquer impressão que lhe corresponda (36). No entanto, sua recusa, inevitável se se tem o empirismo de Hume como pano de fundo, implica na aceitabilidade tão somente do que nos é fornecido ao nível do simples dado sensível. Visto como resultado da imaginação humana, o delírio do termo médio desacredita toda metafísica, desde aquilo que concerne à existência de Deus até ao que se afirma acerca da unidade do “eu” ou toda afirmação antecipada como “o sol nascerá amanhã”.

24. As conclusões a que chegou o pensamento humeano provocaram um grande impacto dentro do recinto epistemológico, fazendo surgir reflexões outras, que, por sua vez, realizariam verdadeiras revoluções de contornos filosóficos, permitindo, inclusive, que os seus próprios promotores se sentissem como que demasiadamente alienados do antigo modo de se pensar. É nessas circunstâncias que emerge o trabalho intelectual de Immanuel Kant. Ele próprio se considerava um apaixonado pela metafísica (37), mas, paradoxalmente, despertado, por Hume, desse “sono dogmático” (38). A “filosofia contemporânea”, nasceu exatamente aqui, indicando, pois, esse novo tipo de investigação, que agora se faz em plena luz do dia, em plena luz natural, em plena razão finalmente, assim como almejavam os iluministas de seu tempo (39). E o que a inaugura é a assim chamada “revolução copernicana kantiana”, segundo a qual o conhecimento não se traduz em sua base primeira por uma simples e passiva adequação do pensamento, do sujeito, ao objeto que investiga, mas, em radical oposição, ele se traduz, antes de tudo, por uma adequação da coisa investigada à maneira própria do sujeito dar-se o mundo. Caberia, portanto, à razão, que se crê apreendedora da constituição mais íntima de todas as coisas, ou seja, da verdade absoluta do mundo, sair desse seu conformismo, dessa sua comodidade, de sua pretensa imobilidade e centralidade, diante da qual tudo o mais se circunscreve e se mostra, à “razão imperatriz”, como de fato é em si mesmo. Caberia-lhe, então, para dizer de outro modo, projetar-se a si própria para fora dessa sua aparente e ingênua onipotência, a fim de perguntar-se, primordialmente, pelos seus próprios limites no conhecimento das coisas. Arma-se, dessa forma, como que um grande tribunal da razão, do qual é ela não só juíza como também ré.

25. Com efeito, a possibilidade humana de conhecimento, em Kant, não é mais absoluta, como anteriormente ainda podia-se acreditar. Afinal, para ele, numa concessão de igual medida aos empiristas e intelectualistas, o conhecimento propriamente dito exige a experiência do que se quer compreender, mas igualmente a sua conformidade com as formas e categorias a priori do aparelho psíquico humano (matéria da Crítica da Razão Pura de Kant).

Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem os conceitos sem uma intuição de certa maneira correspondente a eles nem intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento (41).

26. Ora, vivendo neste mundo, o homem só pode ter experiência do natural e não do sobrenatural. E ainda que algum visionário como Swedenborg afirme ter esta experiência de seres transcendentes, tais visões obtidas não estariam, por assim dizer, à disposição de todos aqueles que também desejassem tê-las ou confirmá-las. Esta privacidade da “experiência mística” constitui-na, por conseguinte, como um sonho, somente tendo alguma validade e importância para aquele que sonha (42). Além disso, mesmo o conhecimento do mundo natural tem estreitos limites, anteposto que o modus humani de dar-se ao próprio homem esse mesmo mundo é apenas um modo dentre outros tantos possíveis e existentes (como mais tarde postulará Friedrich Nietzsche, por analogia à condição de uma “mosca”, em uma de suas obras de teor claramente epistemológico) (43). Assim – pode-se perguntar –, o que é o mundo em si mesmo, se cada espécie o capta de maneira diferente? A resposta – por superação de todo antropocentrismo exacerbado – somente pode configurar-se da seguinte forma: o que se obtém, num processo de conhecimento das coisas, não são as coisas em si mesmas, mas apenas as coisas como são para nós. E mesmo que um antropocentrismo exacerbado se restaure (se re-instaure), ele jamais poderá oferecer-nos uma prova cabal de que a coisa-para-nós coincida com a coisa-em-si, isto é, que o fenômeno (fe-noumenon) do mundo humano coincida com o noumenon do mundo em si próprio, com a essência das coisas, ainda que estas mesmas coisas tenham sido bem averiguadas e confirmadas a partir de um método que seja o mais adequado. Dito isso, não nos cabe mais preocuparmo-nos com as essências ou com aquele tradicional “mundo das idéias” platônico, com aquela esfera que nos transcende ou transcenderia, com o sobrenatural ou meta-natural (mesmo porque o que chamamos de natureza já é especificamente natureza humanizada).

27. Conscientes de nossos limites, abdicamo-nos forçosamente do absoluto. Deste não mais devemos ter sede nas ciências, justamente porque aí ela não pode ser saciada. Como problema insolúvel, a coisa-em-si deixa de ser problema. E a crítica que a razão exerce sobre si própria absolutiza-a, enfim, exata e paradoxalmente, ao apontar-se a si mesma como não absoluta, visto que conclui que a única realidade para o homem é justamente essa realidade já humanizada e na qual tudo segue, grosso modo, a jurisdição da razão. Desde então, trabalhar-se-á com tal noção de (falso) absoluto, estendendo-a até à rediscussão moral, quando toda regra ou norma só terá validade se instituída por essa razão que, soberana, agora não mais requer a experiência do que lhe é estranho, de um mundo (natural ou sobrenatural) que a transcenda (matéria da Crítica da Razão Prática de Kant). E será nessa sua mesma soberania que se reconhecerá a sua autonomia: ela é aquela que impera sobre si mesma, sendo, pois, livre (não heterônoma) ao submeter-se a nada que lhe seja estranho, a nada que não seja senão ela mesma.

28. Finalmente, com a Crítica do Juízo de Kant, essa tendência adquirirá a sua fronteira última(44). Toda organização e inteligibilidade do mundo serão postas como obras do próprio sujeito, ponto do qual germinará toda a filosofia idealista alemã posterior, pois sendo o aparelho psíquico o mesmo em todos os homens, chamar-se-á essa mesmidade de “Eu transcendental”. Estruturalmente igual, todo produto estritamente subjetivo ou voltado para a mesma coisa-em-si (sem qualquer gama de passionalidade) é, em verdade, objetivo. Por essa razão, embora o mundo já seja incondicionalmente humanizado, sua objetividade é garantida justamente por esse seu traço subjetivo.


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1) LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Lisboa: 70, 1981. p. 69.
2) MONTAIGNE, Michel de. Dos canibais. In: ______. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 105. (Coleção Os pensadores: Montaigne I).
3) Idem. Apologia de Raymond Sebond. In: ______. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 264. (Coleção Os pensadores: Montaigne I).
4) Idem. Ibidem.
5) Cf. DESCARTES, René. Regras para direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: 70, 1989. p. 11-13 e 41-46.
6) Cf. Idem. Discurso do Método. Tradução de J. Guinsburg e de Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 29. (Coleção Os pensadores: Descartes I).
7) Idem. Ibidem. p. 36.
8) Idem. Ibidem. p. 41-46.
9) Cf. Idem. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e de Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 74. (Coleção Os pensadores: Descartes II).
10) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 37-38. (Coleção Os pensadores: Pascal).
11) Idem. p. 107.
12) Logo, não se trata da intuição entendida como “conceito da mente pura e atenta (...), que nasce apenas da luz da razão”, segundo a terceira regra cartesiana para a direção do espírito.
13) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 123.
14) Idem. Ibidem. p. 53.
15) Cf. Idem. Ibidem. p. 127.
16) Alusão a Maquiavel. Cf. CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. Tradução de Lydia Cristina. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1989. p. 27.
17) VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. p 85.
18) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 84.
19) Cf. VALVERDE, José Maria. et al. História do pensamento: Renascimento e filosofia moderna. São Paulo: Nova Cultural, 1987. v. 2, p. 310.
20) Cf. Idem. Ibidem.
21) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Revisão de H. Dalbosco e L. Costa. São Paulo: Paulinas, 1990. v. II, p. 611-612.
22) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 57-58.
23) Idem. Ibidem. p. 95. Deve-se observar, nessa aposta pascalina de aposta no que nos proporciona as maiores vantagens com os menores riscos, a influência de seus estudos acerca do “cálculo de probabilidades”, do qual é fundador.
24) Idem. Ibidem. p. 107.
25) NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos da filosofia natural. Tradução de Carlos Lopes de Mattos e de Pablo Rubén Mariconda. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 156. (Coleção Os pensadores: Galileu/Newton). Conferir também em: SELVAGGI, Filippo. Filosofia do mundo: cosmologia filosófica. Tradução de Alexander A. MacIntyre. São Paulo: Loyola, 1988. p. 227.
26) CASSIRER, Ernest. A filosofia do iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Unicamp, 1992. p. 23.
27)Idem. Ibidem.
28) Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. As noções inatas. In: ______. Novos ensaios sobre o entendimento humano. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 23-38. (Coleção Os pensadores: Leibniz I).
29) NEWTON, Isaac. Óptica. Tradução de Pablo Rubén Mariconda. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 204. (Coleção Os pensadores: Galileu/Newton).
30) HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 168. (Coleção Os pensadores: Berkeley/Hume).
31) Idem. Ibidem. p. 86.
32) Cf. Idem. Ibidem. p. 83-84, 88 e 90.
33) Cf. Idem. Ibidem. p. 80-81.
34) Cf. Idem. Ibidem. p. 102.
35) Cf. Idem. Ibidem. p. 77.
36) Cf. Idem. Ibidem. p. 82.
37) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Op. cit. p. 865.
38) Cf. KANT, Immanuel. Prolegómenos a toda metafísica futura. In: FERNANDEZ, Clement. Los filósofos modernos: selección de textos. Madrid: EDICA, 1976. v. I, p. 535.
39) Cf. VALVERDE, José Maria. et al. História do pensamento: Renascimento e filosofia moderna. Op. cit. p. 437.
40) O juízo que cumprirá tal exigência foi qualificado por Kant como “sintético a priori”, sendo capaz de conservar concomitantemente o caráter de “novidade” e “incrementação” e o de “necessidade” e “universalidade” das proposições científicas.
41) KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de ValérioRohden e de Udo Baldur Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 55. (Coleção Os pensadores: Kant I).
42) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Op. cit. p. 869.
43) NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 31. ( Coleção Os pensadores: Nietzsche I).
44) Apesar de se fazer necessário, segundo Kant, pensar uma inteligência outra, que não o “Eu transcendental”, que institua e assegure um uma finalidade no mundo (para que assim o desenvolvimento do mundo – conhecido pelas ciências – e o agir humano nesse mesmo mundo – determinado pelo puro eu – não se conflitem), tal necessidade é, também ela, elaboração da razão pura, do próprio homem portanto, ainda que aquela inteligência – voltamos a insistir – seja instituída pela lógica humana como independente de qualquer propriedade humana.