Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





7 de mai. de 2011

TEXTO XIII: Traços da Filosofia Moderna

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tamanho foi o impacto sofrido pelos europeus em razão do seu maior contato como o Extremo Oriente e, sobretudo, com o seu descobrimento do “Novo Mundo”, que o maior antropólogo do final do século XX, Claude Lévi-Strauss, ao desenvolver um estudo desse tempo, asseverou:

Nunca a humanidade tinha conhecido provação mais pungente, e nunca voltará a conhecer outra igual, a menos que um dia se verifique que outro globo, situado a milhões de quilômetros do nosso, é habitado por seres pensantes (1).


02. No século XVI, o mundo, especialmente a Europa, era um palco no qual se entrecruzava um sem número de modos de se pensar e se comportar, de objetos sobre os quais refletir e objetivos à vista dos quais agir. Entrecortava-se igualmente uma riqueza incalculável de espécimes de flora e de fauna. Todo e qualquer trabalho de síntese nesse contexto parecia não só temporariamente insuficiente, mas, para sempre, impossível de se realizar. O universal nunca pareceu tão ilusório. E quem nele ainda cria fez-se assim duplamente dogmático: primeiramente, no sentido mais antigo, consoante o que tudo aquilo que está para fora do conceito, tudo o que já não participa de algum modo do conceito é dado como falso e inexistente; em segundo lugar, no sentido pejorativo, segundo o qual aquilo que tem tão poucas chances de se fazer convencer numa discussão, deve-se furtar a qualquer embate crítico, tornando-se, pela esta sua própria recusa, indiscutível.

03. Por fim, na Europa que se fazia berço da “modernidade”, o próprio ato de se questionar se relativizava em cotejo com outrora. Nas viagens que se empreendia às Américas, costumava-se, quando de retorno, trazer de lá, junto a tantas outras novidades, alguns de sua própria gente. Foi, então, numa dessas ocasiões, que o filósofo Michel de Montaigne conheceu três índios com quem a nobreza francesa, conjuntamente com o Rei Carlos IX, entretinha-se. “Ensinaram-lhes como era uma cidade grande”. Entretanto, tão logo foi-lhes permitido, fizeram eles, os índios, três observações acerca de tudo o que viram no “Velho Mundo”, das quais citaremos apenas a última nos próprios termos do filósofo francês:


Observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (...); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais (2).

04. Ainda que acreditando-se senhora e juíza do mundo, a Europa não pôde impedir que também se fizesse vítima de negativas avaliações, advindas de sociedades que violentamente submetia ao seu mando. E, como se já não bastasse, paralelamente a esta “crítica exótica” desenvolveu-se uma ofensiva no seu próprio interior, uma autocrítica ou “crítica esótica” que não a poupava menos de censuras e retaliações.

* * *

05. Fundamentalmente, quatro procedimentos filosóficos se destacaram no sentido de posicionar-se frente à nova situação do mundo moderno. São eles: o intelectualismo, o empirismo, o fideísmo e o ceticismo. Estes, no entanto, podem ser agrupados em duas denominações radicalmente excludentes: o racionalismo (que abarca aqueles dois primeiros) e o irracionalismo (que abriga os outros dois restantes).

06. Os racionalistas, como o próprio nome já deixa entrever, crêem na possibilidade da razão humana atingir verdades absolutas, ou por si mesma, isto é, a priori – é o caso de intelectualistas como René Descartes – ou por via da experiência, isto é, a posteriori – como é o caso de empiristas como John Locke. Os irracionalistas, então, têm uma opinião antagônica: a racionalidade do homem, pela própria finitude e contingência de todo humano, nunca seria capaz de abranger o absoluto em sua infinitude e transcendência. Somente por um ato de fé, afirmarão os fideístas, o homem alcançaria tal absoluto, mas que continuaria indemonstrável racionalmente. Mais extremistas, contudo, são os céticos, para quem nem por um engajamento absoluto apreenderíamos algo de inquestionavelmente verdadeiro. Assim, a suspensão de todo juízo último resume o seu único conselho.

07. A substituição da astronomia ptolomaica pela copernicana e da física aristotélica pela galileana era, para os racionalistas, a prova cabal do poder humano no conhecimento da verdade acerca do mundo, assim como a física newtoniana será, mais tarde, a “menina dos olhos” dos filósofos iluministas. Por conseguinte, o homem poderia encontrar conforto em si mesmo, em sua razão, do mesmo modo que, no feudalismo, o homem fez de sua fé num único Deus onipotente, onisciente, onipresente e providente (o próprio absoluto, universal e verdadeiro) o sustentáculo do seu universo. Neste caso, os filósofos modernos serão adeptos da religião natural que assevera que Deus criou o mundo, mas, logo após, como que o abandonou sob a regência de sua vontade, leis fixas, razão divina da natureza, cuja apreensão estaria a cabo do homem (criatura especial, dotado de razão pelo mesmo Deus, a fim de prever e prover segundo os seus interesses, os quais, obviamente, deveriam visar o bem da própria humanidade).

08. Todavia os céticos modernos não eram menos convincentes em sua desconfiança dessa autonomia da razão na apreensão da Razão Universal, pois ainda que esta de fato exista – diziam – não existe como tal, entretanto, para uma criatura determinada, isto é, com precisos limites sensíveis, intelectivos, lingüísticos, geográficos, históricos... E com referência aos prováveis avanços científicos, por exemplo, podemos ter um acesso à interpretação cética, recorrendo, outra vez, ao atento Montaigne:

O céu e as estrelas foram durante três mil anos considerados em movimento. todos acreditaram, até que (...) se lembrou de sustentar que a terra é que girava em torno do seu eixo (...); e em nosso tempo Copérnico demonstrou tão bem esse princípio (...). Quem sabe se daqui a mil anos outro sistema não os destruirá a ambos? (3).

09. Ainda mais adiante, tomando em sua atenção outro fato que lhe era recente, o mesmo pensador retorna com a mesma questão de inegáveis traços céticos:

Ptolomeu (...) determinava os limites de nosso mundo; os filósofos antigos pensavam nada ignorar a esse respeito acerca do que existia, salvo algumas ilhas longínquas que podiam ter escapado às suas investigações; (...) e eis que neste século se descobre um continente de enorme extensão (...). Pergunto então se, visto que Ptolomeu enganou outrora (...), não seria tolice acreditar resolutamente nas idéias de seus sucessores (...)? (4).

10. Francês como Montaigne, Descartes, porém, não é cético. E como bom racionalista proporá a elaboração de uma mathesis universalis (5) (já precedentemente esboçada por Nicolau Oresme). A razão (ou o “bom senso” – como Descartes primordialmente a denominou) é estabelecida como “a coisa do mundo melhor partilhada” (6). Ou seja, a fim de conter toda diversidade e toda contingência que, em seu tempo, marcam a esfera dos costumes e o campo da moral, Descartes estende a razão, tão cara aos “civilizados”, até os bárbaros, anteriormente destituídos dela – e sobretudo dela. Pode-se, inclusive, encontrar, desde então, um maior uso da razão num selvagem do que no homem europeu (7). Tudo jaz, portanto, na sujeição à solidificação dessa razão, a única capaz de recuperar o universal, eterno e não contraditório – ela, a própria unidade comum. Antes dessa tarefa de fundamentação da razão, assim como da exposição de seu bom uso, isto é, de seu método, tudo o mais é provisório, como os preceitos morais que se conformam, nesse primeiro instante, às circunstâncias particulares da época (8). Por fim, somente um método de cunho universal poderia ousar guiar adequadamente razão tão excelsa na construção daquela “ciência plena”. Descartes, entretanto, julga já tê-lo descoberto (9). E ao investigador exige-se que seja sempre ativo e nunca passivo, que nunca a sua alma inquisitiva sofra despreocupadamente as determinações dos sentidos do corpo, pois estas, por si mesmas, propendem-nos ao erro. O homem em sua razão, dominador absoluto da situação, somente assim ascenderia à verdade incondicional, à presença incontinenti.

11. Essa razão cartesiana, porém, é denominada na filosofia de Blaise Pascal – outro francês, este agora de contorno fideísta – de “espírito de geometria”. E, como tal, não é de modo nenhum universal, mas apenas peculiar à matemática e a algumas outras áreas mais afins. Ela mesma, em sua cadeia, está na dependência do “coração”, ou melhor, daquilo que Pascal chamou de “espírito de finura”, que, por sua vez, é constituída de princípios sutis, “apenas entrevistos, mais pressentidos do que vistos”, indemonstráveis (posto que, de outra maneira, incorreríamos numa petição de princípio) e não manipuláveis como aquelas dos geômetras (10). Este espírito sutil é, pois, acima de tudo, um sentimento e, assim sendo, irracional – de um modo especial, porque muito mais intenso, para a tradição racionalista. É, por isso, que a filosofia pascalina foi difundida e guardada numa só e mesma epígrafe, qual seja, a de que “o coração tem razão (entenda-se “princípios”) que a própria razão (a dos geômetras e racionalistas) desconhece” (11). Portanto, aquilo que tão-só por si mesma a razão cartesiana aceita imediatamente como evidente, porque claro e distinto (ou como verdadeiro, conforme a primeira regra do seu método), não seria com fidelidade entendimento, mas sim intuição (12). Aliás, é evidente e inquestionável, porque indemonstrável pela razão. É chão sobre o qual se eleva o edifício da ciência e a partir do qual todos os elos da cadeia do raciocínio podem-se tornar, agora sim, demonstráveis e justificáveis e ser, em vista disso, considerados pela força da lógica do entendimento.

12. Também para Pascal a grandeza humana está em sua razão (13). No entanto, almejar a sua absolutização para aí fundar toda a certeza é tolice e ilusão. Afinal, devemos convir que não somos absolutos:

Conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo; o que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada; e o pouco que temos de ser impede-nos a visão do infinito (14).

13. Trágico e paradoxal não é então somente Pascal, mas todo homem, inclusive e – talvez principalmente – esses que não se atentam para a condição humana de intermediário entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, de um ser que se faz destacar pela atividade de sua razão, mas que logo se interrompe e sucumbe ao som de uma insigne mosca (15). Singularmente, a diversidade do século XVII, que se abriu por todos os lados, circunscrevendo o ser humano, faz deste, ainda mais, uma criatura atônita. À medida que as décadas foram se sucedendo umas às outras para constituírem-se em séculos também sucessivos, certamente as diferenças já existentes multiplicaram-se ainda tantas vezes mais, resultando em diversidades inestimáveis. Infinitas. Mas a acentuação da tragédia desses primeiros séculos da “modernidade” está justamente na sua proximidade com a Idade Média, que lhe é, em precisos aspectos, destoante, realçando, por isso mesmo, os tons próprios e exclusivos de um tempo e outro. Movia-se como que num tempo distinto do qual se nascera, sem que contudo o tivesse visto passar. Entre a “fortuna” e a “virtu” (16), entre um destino que se crê plenamente traçado e o horizonte que se percebe completamente aberto, tenta o homem contemporâneo de Pascal proteger-se outra vez sob a mão do absoluto, que, no seu pretérito, já havia serenado tanto temores humanos. Porém não mais existia aquele tipo de crença necessário no absoluto pessoal e providente, cuja abundância era notória no medievo. E, não obstante tudo isto, era difícil a esse mesmo homem acostumar-se tão repentinamente ao espírito aventureiro que o novo momento lhe exigiu em substituição ao espírito missionário daqueles anos idos.

(...), o homem de pascal (...): ele não está mais abrigado sob a ordem cósmico-teológica da visão cristão-medieval do mundo, nem voltado, como o homem cartesiano, para o senhorio e posse da natureza (17).

14. Os estreitos limites humanos em face do universo ilimitado, se reconhecidos pelo homem, detêm toda prepotência de sua razão no que concerne à sua habilitação para compreender não só o imanente em sua totalidade, mas também o Ser que lhe é completamente transcendente: o Deus absconditus cristão (18). Logo, em sua condição de grande físico e matemático, Pascal atenta-nos para o fato de que é pura ilusão humana pensar na realidade de um método único e universal que nos proporcione todo e qualquer conhecimento. Se é o “método geométrico” que nos confere os precisos dados matemáticos, o uso do “método experimental” será, por sua ordem, imperativo no campo da física (como ocorreu na sua teoria sobre o vácuo) (19). E nesse campo não há propriamente certeza, mas apenas uma hipótese mais provável do que outra(s). Ou seja, caso haja aí alguma evidência, ela diz respeito à falsidade da hipótese afastada, por nos conduzir a absurdos, e não à inquestionabilidade da hipótese que se firmou como a teoria aceita (20). Afinal, teorias antes dominantes – pois as melhores para a sua época – em épocas seguintes foram falsificadas e substituídas por outras (21).

15. Já como pessoa religiosa, adepta do jansenismo, Pascal pondera que a fé em Deus é graça concedida pelo próprio Deus a alguns homens, seus eleitos. E somente a autoridade da revelação divina, que se encontra na tradição da Igreja e na Bíblia, fornece-nos os seus preceitos. Desse modo, ao homem sem fé resta apenas “apostar” na existência de Deus, se almeja a transcendência. Pois a razão só pode nos fornecer uma pseudodivindade, um ser absoluto artificial, semelhante à res infinita cartesiana, “ab-usada”, por Descates, para legitimar definitivamente a sua física e metafísica (22). As palavras seguintes de Pascal ratificam o seu apontamento para um engajamento absoluto:

Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, pois, não tendo partes nem limites, não tem nenhuma relação conosco. Somos, portanto, incapazes de conhecer não só o que ele é como também se existe. (...). Examinemos, pois, esse ponto e digamos: “Deus existe ou não existe”. (...). Em que apostareis? Pela razão não podereis atingir nem uma nem outra; (...). Pensemos o ganho e a perda escolhendo a cruz, que é Deus. Consideremos esses dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderes, não perdereis nada. Apostai, pois, que ele existe, sem hesitar (23).

16. Conseqüentemente, na maneira de entender de Blaise Pascal, Deus e os princípios do coração não são exatamente definíveis de forma racional. Esta tendência perdurará no campo da filosofia e da ciência e radicalizar-se-á, respectivamente, na “morte de Deus” nietzscheana e na “negação da pura indução” popperiana. Mais proximamente a Pascal e como que num “rito de passagem”, os filósofos iluministas destruirão a noção de um Deus tão íntimo e arbitrário, sustentado pela fé cristã, e apenas aceitarão, no seu limite, um Deus de vontade rígida, cujo conhecimento se tem indiretamente pela apreensão racional das leis da natureza. Em poucas palavras, o que importa não é mais tanto a existência de um Deus, porém, isto sim, a de um mundo de razão e que, como tal, pode ser conhecido progressivamente pela razão do homem. Somente nisto Deus ainda recebe alguma atenção devida: como mantenedor do mundo em sua ordem eterna pela sua vontade imutável. Trata-se, então, de um Deus dissolvido no mundo, do “extra-ordinário” tornado também ordinário, numa superação do dualismo entre natural e “sobre-natural”. Sim, o iluminismo instaura uma nova religião, a religião natural, em companhia da qual a religião antiga, da revelação, torna-se, em considerável extensão, supersticiosa. Não há como negar que muitos iluministas ainda são “homens de fé”; todavia, relembremos, toda essa ambigüidade é característica desse tempo de transição e que pende tais iluministas para onde a própria transição indica: os dados revelados, que podem ser expressos racionalmente, estes permanecem; aqueles que assim não podem ser transcritos dirigem-se imperceptivelmente para o esquecimento.

17. Quanto aos “princípios do coração”, o mais genial dos filhos gerados pelo Iluminismo, Isaac Newton, parece considerá-los, ainda que sem notar claramente – ele, que almejou negar toda metafísica como alicerce de sua física. Pois quais são expressamente alguns desses princípios? Pascal mesmo citou-nos alguns:

(...) pelo coração; é desta maneira que conhecemos os princípios (...). Sabemos que não sonhamos (...). Pois o conhecimento dos princípios, como o da existência de espaço, tempo, movimentos, números, é tão firme como nenhum dos que nos proporcionam os nossos raciocínios (24).

18. Ora, são precisamente três desses princípios, básicos para a física newtoniana, que o seu autor apresenta sem demonstração ou definição alguma, justificando-os como evidentes:

Até aqui só me pareceu ter que explicar os termos menos conhecidos, mostrando em que sentido devem ser tomados na continuação deste livro. Deixei, portanto, de definir, como conhecidíssimos de todos, o tempo, o espaço, o lugar e o movimento (25).

19. Em muitos outros pontos, todavia, os iluministas são cartesianos. Pois da autonomia da razão, já conferida por Tomás de Aquino na esfera do natural, observar-se-á uma passagem para uma autonomia absoluta da razão, possível por aquela redução entre o transcendente e a natureza. Tal obra permitirá a Ernest Cassirer escrever hodiernamente sobre aquela época:

O século XVIII está impregnado de fé na unidade imutável da razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo-pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura. De todas as variações (...) destaca-se um conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade e sua consistência são justamente a expressão da essência própria da razão (26).

20. Nesse primeiro instante, grande é o otimismo humano que instaura a si mesmo, enquanto capacidade cognitiva de compreensão de todas as coisas que o mundo contém, como o novo e verdadeiro eixo de tudo o que existe. Todavia, quando em breve reconhecer os seus fracassos e o não cumprimento de muito do que prometera naquele seu primeiro momento de entusiasmo, a razão do homem concomitantemente reconhecerá os seus próprios limites. E é isso o que corrobora Ernest Cassirer, caso prossigamos em sua leitura:

Para nós – se bem que estejamos de acordo, no plano das idéias e dos fatos, com determinadas teses da Filosofia do Iluminismo – a palavra “razão” deixou de ser há muito tempo uma palavra simples e unívoca. Assim que recorremos a esse vocábulo, sua história logo revive em nós e ficamos cada vez mais conscientes da gravidade das mudanças de sentido que ele sofreu no transcurso dessa história (27).

21. Igualmente imprescindível, mas contra o intelectualismo, é a experiência do mundo, para os iluministas, a fim de que, pela observação, possa se chegar a generalizações teóricas, dotadas de caráter explicativo o suficiente para esclarecer aqueles fatos particulares, que as ensejaram, e outros mais similares que certamente escaparam até então às observações feitas. Este aspecto fará com que os empiristas neguem todo “a priori”, toda idéia inata no homem, defendida veementemente por intelectualistas como, além de Descartes, Gottfried Wilhelm Leibniz (28). Isaac Newton, assim procedeu ao tentar negar toda hipótese e metafísica em sua análise do mundo:

Esta análise consiste em fazer experimentos e observações, e em traçar conclusões gerais deles por indução (...). Pois as hipóteses não devem ser levadas em conta... (29).

22. Mas quem melhor tratará dessas questões será o empirista britânico, David Hume, contemporâneo e conhecedor de Newton, que lucidamente reconhece a riqueza preceitual e prática de seu tempo, mas que paradoxalmente – como esse próprio ínterim histórico – incita ainda mais a ânsia humana pelo universal:

Até agora, os moralistas estão habituados, quando consideram a multiplicidade e a diversidade das ações que despertam nossa aprovação ou nossa repulsa, a procurar um princípio comum do qual poderia depender esta variedade de opiniões. E, embora tenham às vezes levado o assunto demasiado longe devido à sua paixão por algum princípio geral (...). Análogos têm sido os esforços dos críticos, dos lógicos e mesmo dos políticos (30).

23. Levando as teses empiristas às suas últimas conseqüências, Hume abala irreversivelmente a “pedra angular” de toda “filosofia difícil e abstrata”, de todo pensamento racionalista e metafísico. Esta se resume no princípio de causa e efeito que tem raízes no “hábito” e no “costume” (31) (formados por sucessivas experiências semelhantes numa mesma ordem de contigüidade e na “crença” de que o futuro tem por modelo o passado) (32) e não numa idéia inata da razão ou numa “conexão necessária” da natureza (33). No entanto não só as “relações de idéias” sofrem, finalmente, o golpe dessa conclusão humeana, mas também as “questões de fato” (34) que não mais escaparão à sua irredutibilidade, pois, por ser o contrário de um fato sempre possível, não implicando jamais em contradição (35), a espera de um fato-efeito, que habitualmente sempre seguiu a um fato-causa, acaba inevitavelmente dado lugar, se visto por este ângulo, à dúvida. Assim, toda capacidade humana de ciência tem que se restringir ao que os nossos sentidos nos fornecem imediatamente, o que, desse modo, não pode ser denominado, exatamente, Filosofia. Pode-se, agora, compreender todo aquele espaço que Hume concede ao ceticismo em suas obras. O termo médio de toda preposição não encontra qualquer impressão que lhe corresponda (36). No entanto, sua recusa, inevitável se se tem o empirismo de Hume como pano de fundo, implica na aceitabilidade tão somente do que nos é fornecido ao nível do simples dado sensível. Visto como resultado da imaginação humana, o delírio do termo médio desacredita toda metafísica, desde aquilo que concerne à existência de Deus até ao que se afirma acerca da unidade do “eu” ou toda afirmação antecipada como “o sol nascerá amanhã”.

24. As conclusões a que chegou o pensamento humeano provocaram um grande impacto dentro do recinto epistemológico, fazendo surgir reflexões outras, que, por sua vez, realizariam verdadeiras revoluções de contornos filosóficos, permitindo, inclusive, que os seus próprios promotores se sentissem como que demasiadamente alienados do antigo modo de se pensar. É nessas circunstâncias que emerge o trabalho intelectual de Immanuel Kant. Ele próprio se considerava um apaixonado pela metafísica (37), mas, paradoxalmente, despertado, por Hume, desse “sono dogmático” (38). A “filosofia contemporânea”, nasceu exatamente aqui, indicando, pois, esse novo tipo de investigação, que agora se faz em plena luz do dia, em plena luz natural, em plena razão finalmente, assim como almejavam os iluministas de seu tempo (39). E o que a inaugura é a assim chamada “revolução copernicana kantiana”, segundo a qual o conhecimento não se traduz em sua base primeira por uma simples e passiva adequação do pensamento, do sujeito, ao objeto que investiga, mas, em radical oposição, ele se traduz, antes de tudo, por uma adequação da coisa investigada à maneira própria do sujeito dar-se o mundo. Caberia, portanto, à razão, que se crê apreendedora da constituição mais íntima de todas as coisas, ou seja, da verdade absoluta do mundo, sair desse seu conformismo, dessa sua comodidade, de sua pretensa imobilidade e centralidade, diante da qual tudo o mais se circunscreve e se mostra, à “razão imperatriz”, como de fato é em si mesmo. Caberia-lhe, então, para dizer de outro modo, projetar-se a si própria para fora dessa sua aparente e ingênua onipotência, a fim de perguntar-se, primordialmente, pelos seus próprios limites no conhecimento das coisas. Arma-se, dessa forma, como que um grande tribunal da razão, do qual é ela não só juíza como também ré.

25. Com efeito, a possibilidade humana de conhecimento, em Kant, não é mais absoluta, como anteriormente ainda podia-se acreditar. Afinal, para ele, numa concessão de igual medida aos empiristas e intelectualistas, o conhecimento propriamente dito exige a experiência do que se quer compreender, mas igualmente a sua conformidade com as formas e categorias a priori do aparelho psíquico humano (matéria da Crítica da Razão Pura de Kant).

Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem os conceitos sem uma intuição de certa maneira correspondente a eles nem intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento (41).

26. Ora, vivendo neste mundo, o homem só pode ter experiência do natural e não do sobrenatural. E ainda que algum visionário como Swedenborg afirme ter esta experiência de seres transcendentes, tais visões obtidas não estariam, por assim dizer, à disposição de todos aqueles que também desejassem tê-las ou confirmá-las. Esta privacidade da “experiência mística” constitui-na, por conseguinte, como um sonho, somente tendo alguma validade e importância para aquele que sonha (42). Além disso, mesmo o conhecimento do mundo natural tem estreitos limites, anteposto que o modus humani de dar-se ao próprio homem esse mesmo mundo é apenas um modo dentre outros tantos possíveis e existentes (como mais tarde postulará Friedrich Nietzsche, por analogia à condição de uma “mosca”, em uma de suas obras de teor claramente epistemológico) (43). Assim – pode-se perguntar –, o que é o mundo em si mesmo, se cada espécie o capta de maneira diferente? A resposta – por superação de todo antropocentrismo exacerbado – somente pode configurar-se da seguinte forma: o que se obtém, num processo de conhecimento das coisas, não são as coisas em si mesmas, mas apenas as coisas como são para nós. E mesmo que um antropocentrismo exacerbado se restaure (se re-instaure), ele jamais poderá oferecer-nos uma prova cabal de que a coisa-para-nós coincida com a coisa-em-si, isto é, que o fenômeno (fe-noumenon) do mundo humano coincida com o noumenon do mundo em si próprio, com a essência das coisas, ainda que estas mesmas coisas tenham sido bem averiguadas e confirmadas a partir de um método que seja o mais adequado. Dito isso, não nos cabe mais preocuparmo-nos com as essências ou com aquele tradicional “mundo das idéias” platônico, com aquela esfera que nos transcende ou transcenderia, com o sobrenatural ou meta-natural (mesmo porque o que chamamos de natureza já é especificamente natureza humanizada).

27. Conscientes de nossos limites, abdicamo-nos forçosamente do absoluto. Deste não mais devemos ter sede nas ciências, justamente porque aí ela não pode ser saciada. Como problema insolúvel, a coisa-em-si deixa de ser problema. E a crítica que a razão exerce sobre si própria absolutiza-a, enfim, exata e paradoxalmente, ao apontar-se a si mesma como não absoluta, visto que conclui que a única realidade para o homem é justamente essa realidade já humanizada e na qual tudo segue, grosso modo, a jurisdição da razão. Desde então, trabalhar-se-á com tal noção de (falso) absoluto, estendendo-a até à rediscussão moral, quando toda regra ou norma só terá validade se instituída por essa razão que, soberana, agora não mais requer a experiência do que lhe é estranho, de um mundo (natural ou sobrenatural) que a transcenda (matéria da Crítica da Razão Prática de Kant). E será nessa sua mesma soberania que se reconhecerá a sua autonomia: ela é aquela que impera sobre si mesma, sendo, pois, livre (não heterônoma) ao submeter-se a nada que lhe seja estranho, a nada que não seja senão ela mesma.

28. Finalmente, com a Crítica do Juízo de Kant, essa tendência adquirirá a sua fronteira última(44). Toda organização e inteligibilidade do mundo serão postas como obras do próprio sujeito, ponto do qual germinará toda a filosofia idealista alemã posterior, pois sendo o aparelho psíquico o mesmo em todos os homens, chamar-se-á essa mesmidade de “Eu transcendental”. Estruturalmente igual, todo produto estritamente subjetivo ou voltado para a mesma coisa-em-si (sem qualquer gama de passionalidade) é, em verdade, objetivo. Por essa razão, embora o mundo já seja incondicionalmente humanizado, sua objetividade é garantida justamente por esse seu traço subjetivo.


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1) LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Lisboa: 70, 1981. p. 69.
2) MONTAIGNE, Michel de. Dos canibais. In: ______. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 105. (Coleção Os pensadores: Montaigne I).
3) Idem. Apologia de Raymond Sebond. In: ______. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 264. (Coleção Os pensadores: Montaigne I).
4) Idem. Ibidem.
5) Cf. DESCARTES, René. Regras para direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: 70, 1989. p. 11-13 e 41-46.
6) Cf. Idem. Discurso do Método. Tradução de J. Guinsburg e de Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 29. (Coleção Os pensadores: Descartes I).
7) Idem. Ibidem. p. 36.
8) Idem. Ibidem. p. 41-46.
9) Cf. Idem. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e de Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 74. (Coleção Os pensadores: Descartes II).
10) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 37-38. (Coleção Os pensadores: Pascal).
11) Idem. p. 107.
12) Logo, não se trata da intuição entendida como “conceito da mente pura e atenta (...), que nasce apenas da luz da razão”, segundo a terceira regra cartesiana para a direção do espírito.
13) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 123.
14) Idem. Ibidem. p. 53.
15) Cf. Idem. Ibidem. p. 127.
16) Alusão a Maquiavel. Cf. CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. Tradução de Lydia Cristina. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1989. p. 27.
17) VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. p 85.
18) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 84.
19) Cf. VALVERDE, José Maria. et al. História do pensamento: Renascimento e filosofia moderna. São Paulo: Nova Cultural, 1987. v. 2, p. 310.
20) Cf. Idem. Ibidem.
21) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Revisão de H. Dalbosco e L. Costa. São Paulo: Paulinas, 1990. v. II, p. 611-612.
22) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 57-58.
23) Idem. Ibidem. p. 95. Deve-se observar, nessa aposta pascalina de aposta no que nos proporciona as maiores vantagens com os menores riscos, a influência de seus estudos acerca do “cálculo de probabilidades”, do qual é fundador.
24) Idem. Ibidem. p. 107.
25) NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos da filosofia natural. Tradução de Carlos Lopes de Mattos e de Pablo Rubén Mariconda. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 156. (Coleção Os pensadores: Galileu/Newton). Conferir também em: SELVAGGI, Filippo. Filosofia do mundo: cosmologia filosófica. Tradução de Alexander A. MacIntyre. São Paulo: Loyola, 1988. p. 227.
26) CASSIRER, Ernest. A filosofia do iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Unicamp, 1992. p. 23.
27)Idem. Ibidem.
28) Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. As noções inatas. In: ______. Novos ensaios sobre o entendimento humano. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 23-38. (Coleção Os pensadores: Leibniz I).
29) NEWTON, Isaac. Óptica. Tradução de Pablo Rubén Mariconda. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 204. (Coleção Os pensadores: Galileu/Newton).
30) HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 168. (Coleção Os pensadores: Berkeley/Hume).
31) Idem. Ibidem. p. 86.
32) Cf. Idem. Ibidem. p. 83-84, 88 e 90.
33) Cf. Idem. Ibidem. p. 80-81.
34) Cf. Idem. Ibidem. p. 102.
35) Cf. Idem. Ibidem. p. 77.
36) Cf. Idem. Ibidem. p. 82.
37) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Op. cit. p. 865.
38) Cf. KANT, Immanuel. Prolegómenos a toda metafísica futura. In: FERNANDEZ, Clement. Los filósofos modernos: selección de textos. Madrid: EDICA, 1976. v. I, p. 535.
39) Cf. VALVERDE, José Maria. et al. História do pensamento: Renascimento e filosofia moderna. Op. cit. p. 437.
40) O juízo que cumprirá tal exigência foi qualificado por Kant como “sintético a priori”, sendo capaz de conservar concomitantemente o caráter de “novidade” e “incrementação” e o de “necessidade” e “universalidade” das proposições científicas.
41) KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de ValérioRohden e de Udo Baldur Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 55. (Coleção Os pensadores: Kant I).
42) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Op. cit. p. 869.
43) NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 31. ( Coleção Os pensadores: Nietzsche I).
44) Apesar de se fazer necessário, segundo Kant, pensar uma inteligência outra, que não o “Eu transcendental”, que institua e assegure um uma finalidade no mundo (para que assim o desenvolvimento do mundo – conhecido pelas ciências – e o agir humano nesse mesmo mundo – determinado pelo puro eu – não se conflitem), tal necessidade é, também ela, elaboração da razão pura, do próprio homem portanto, ainda que aquela inteligência – voltamos a insistir – seja instituída pela lógica humana como independente de qualquer propriedade humana.

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