Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





26 de abr. de 2011

TEXTO XII: Deus Existe?

Rodrigo Rodrigues Alvim

No primeiro semestre de 2010, fui convidado para ministrar, sob a forma de mesa redonda, a aula inaugural dos Cursos de Filosofia e Teologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, CES-JF, com o filósofo e teólogo Elílio de Faria Mattos Júnior. O tema proposto foi "Deus existe?". Mais do que um tema, tratava-se de um livro publicado com esse título, em torno do qual, pois, deveríamos apresentar algumas palavras. O texto que se segue transcreve as palavras iniciais que proferi naquela oportunidade.


A leitura do livro Deus existe? deixa-nos a sensação de que não é propriamente seu título a questão provocadora do debate, ocorrido no ano de 2000, entre o então Cardeal alemão Joseph Ratzinger (hoje o Papa Bento XVI) e o filósofo italiano ateu Paolo Flores d’Arcais, bem como de seus textos adjuntos.

O que incomoda d’Arcais é a interpretação de Ratzinger, mas também do então Papa João Paulo II e de outros cristãos católicos, que considera o cristianismo como que a coroação da racionalidade motriz do pensamento ocidental, não somente no contexto dos primeiros séculos do seu surgimento, mas ainda e sobretudo hoje.

É certo que esta discussão prévia se faz importante, uma vez que definiria os limites dentro dos quais a questão da existência de Deus poderia se desdobrar. No entanto, essa mesma delimitação já se torna o centro mesmo de toda discussão que fora possível e que, não concluída, deixou definitivamente à margem o tema da existência (ou não) de Deus.

Não soube, assim, se deveria me comprometer com o debate ocorrido, mas que para mim fugiu ao tema, ou se com o tema propriamente dito desta mesa redonda.

Minhas breves palavras de abertura serão, portanto, lançadas como se seguirão e, a partir do diálogo entre nós, vislumbrarei as expectativas dos aqui presentes e tentarei melhor atendê-las.

Podemos nos assegurar hoje uma prova empírica ou racional da existência de Deus, ou seja, uma demonstração publicamente disponível de que Deus existe? Considero que não a temos, desde que igualmente consideremos a analogia como analogia, isto é, como a semelhança entre entidades que, por isso mesmo e também, são entidades distintas; considero que não a temos, desde quando Kant elucidou as antinomias da nossa razão pura, isto é, as conclusões radicalmente opostas a que podemos chegar por força estritamente lógica, mas que, contudo, apresentam a mesma força, apesar de serem excludentes; considero que não a temos, por fim, desde que não tomemos a existência como um predicado (contrariamente ao que encontramos no que denominamos o argumento ontológico de Anselmo acerca da existência de Deus). Noutros termos, considero que não possuímos tal demonstração ao modo como pensamos que se pensa racionalmente hoje, ou seja, ao modo científico moderno e contemporâneo, “racionalidade” esta indubitavelmente hegemônica, bastando-nos perceber a impressão decisiva que comumente uma conclusão científica, simplesmente porque dita “científica”, tem sobre o senso comum, até sobre este mesmo que, por sua própria natureza, é pouco afeito ao procedimento sistemático da investigação científica.

Nesse sentido, sei que me aproximo das advertências do filósofo Paolo Flores d’Arcais.

Porém esta “racionalidade” está histórica e culturalmente situada. Ela ainda pretende-se a si própria, se não detentora, destinatária de uma verdade objetiva, de uma verdade excludente, pouca afeita, por isso mesmo, a outras formas humanas de compreensão e expressão da realidade, como a metafísica, a arte, a religião e os mitos, com os quais ainda hoje a ciência convive, embora malgrado seu. O inegável processo de secularização pelo qual passamos nesses cinco últimos séculos – e do qual ninguém em sã consciência, seja crente, seja não-crente, discorda – avaliza a hegemonia dessa “racionalidade”, fio sobre o qual pelejamos em nos equilibrar.

Tal noção de razão e de verdade da ciência moderna e contemporânea aludida por d’Arcais foi fundamentada pelos iluministas franceses e por outros filósofos, particularmente dos séculos XVII ao XVIII, que a adotaram como critério de decisão entre “o verdadeiro” e a “superstição”, tomando como um de seus passatempos mais importantes a sujeição das proposições de fé da Igreja Católica ao crivo dessa razão: toda certeza por fé cristã que não conseguisse se traduzir nessa nova racionalidade era desmascarada como engodo – uma reprodução de uma fórmula já dos primeiros filósofos patrísticos, apesar de pelas avessas e pessimista. Especialmente Agostinho, mas também seguido por outros, tomou a racionalidade filosófica predominante em seu tempo para traduzir as verdades da fé cristã (sobrenaturais e por isto mesmo divinamente reveladas) em termos da capacidade natural da qual todo homem é dotado, ou seja, nos termos da razão (o que permitiria, pois, que os dados da fé cristã fossem assim acessíveis, compreensíveis, inclusive aos então denominados pagãos), expressando, dessa maneira, o otimismo de que, sendo a verdade, porque a verdade, una, a razão bem exercida chegaria, pelos seus próprios caminhos, às verdades antecipadas pela revelação de Cristo.

D’Arcais trás à luz as observações céticas historicamente feitas a tal racionalidade que, grosso modo, eu chamaria de “analítica”, mas se opõe sobremaneira e de modo mesmo sarcástico à racionalidade mais “hermenêutica”, na qual ele entrevê, especialmente nos textos de Heidegger, uma “última margem da teologia”. Enumerando aspectos contraditórios na concepção cristã católica, precisamente porque se pretende ela o suprassumo da racionalidade, d’Arcais parece melhor conviver com cristãos que confessassem a sua visão de mundo por simples fé, pois sublinha que toda fé que se pretenda racional guarda intimamente consigo a intolerância a qualquer modo diverso ao seu, que se arvora verdadeiro ou como o verdadeiro sentido da vida.

Contudo, há palavras de d’Arcais que, a um filósofo como me fiz, causam muito desconforto, principalmente quando se querem pronunciadas por um também filósofo. Tomo, dentre outros exemplos possíveis, duas expressões finais de d’Arcais, presentes em mesmo parágrafo. Vou inverter suas ordens originais, a fim de que o mal-estar filosófico possa ficar mais patente. Diz ele: “A razão não só não pode demonstrar a existência de Deus e da imortalidade da alma, como também não pode demonstrar ‘que não existam’”. Mas também diz imperativamente: “(...) a filosofia há de estabelecer, sobriamente, que Deus não existe e que é falso que exista uma alma imortal”. Pela insuficiência disso, eu afirmo que não é a filosofia que dá razão a d’Arcais, mas que é o seu ateísmo confesso que assim o impeliu a destinar a filosofia.

3 comentários:

  1. Gostei muito deste texto Rodrigo. Ele me remeteu a outro texto que trata do mesmo tema: “ Debate entre o padre F.C.Colpleston e Bertrand Russell”, transmitido, originalmente, pela BBC em 1948. Este texto foi publicado em português como um capítulo do livro de Russell intitulado “Por que não sou Cristão” (L&PM Editores). Magnífico livro que reforçou algumas de minhas antigas convicções.

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    1. Caro Luiz! Como chegou-me apenas o seu primeiro nome, não sei se nos conhecemos pessoalmente. Li, já há muito tempo, apenas um capítulo da obra por você citada, o Capítulo 13. Não tive acesso à obra completa, em língua portuguesa, editada pela Editora L&PM, mas apenas a esse Capítulo 13, publicado na Coleção Os pensadores. O confronto de ambos os encontros seria interessante de se fazer, embora, pelo que eu me lembre, o problema da existência de Deus é mais diretamente enfrentada por Copleston e Russell do que por Ratzinger e d’Arcais, que, como disse em meu texto, parece-me que fugiram ao tema proposto e que deu título à obra que nos traz tal debate. Em breve, vou rever a discussão de Copleston e Russell, está bem? Muitíssimo obrigado por sua leitura e por seu comentário, sobretudo pela lembrança que me fez desse importante encontro do final da década de 40 do século passado e que certamente marcou tantas vidas. Meus abraços!

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  2. Caro mestre, sou o João Luiz. Fui honrado em ser seu aluno no Seminário. Meu trabalho foi sobre a Teoria das Descrições do Russell. Tenho saudade de suas maravilhosas aulas. Um grande abração.

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