Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





15 de mai. de 2011

TEXTO XIV: Vozes Antepassadas: Narrativa Mítica, Discurso Filosófico e Pluralismo Cultural

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. A narrativa foi um dos recursos basilares das primeiras sociedades (1). Originalmente oral, esteve ela, nessas sociedades, estreitamente vinculada à figura do patriarca, isto é, à figura dos seus membros de idade mais elevada, cujos longos anos de vida se constituíam em índice natural - e, portanto, óbvio - de sua mediação entre as gerações. Eram os mais velhos, pois, os grandes responsáveis pela memória de seu povo, pelo seu regresso à sua matriz e identidade. O processo de “racionalização” das sociedades complexas ensejou entre nós a diluição desse aspecto. A identidade individual, por exemplo, remete-nos hoje mais a um código de letras e números do que propriamente à nossa filiação mesma. De qualquer modo, nas pequenas cidades interioranas, a linguagem cotidiana ainda permite-nos denunciar alguns resquícios do antigo modo de ser das primeiras sociedades, quando, por exemplo, os mais jovens são identificados somente se ao seu nome segue o nome de seu pai ou o sobrenome da família a que pertencem. Neste sentido, não vale dizer que o homem é aquilo que ele próprio faz, mas, sim, que é ele os seus antepassados - razão pela qual a individualidade hodierna é uma característica tardia comparativamente às primeiras sociedades, onde o grupo ou a família é que existem e o indivíduo é ainda uma presença, se não inexistente, demasiadamente opaca. Cada qual é todos os seus parentes vivos ou mortos, próximos ou longínquos, porquanto, assim, cada qual só é, só existe, só é identificado pela sua estirpe, só existe pelo e para o seu grupo. Os mortos servem aos vivos e, por este prisma, vivem, e os vivos servem aos mortos e, já por esta perspectiva, morrem. A “lareira”, então, jamais pode-se apagar. Dela os vivos devem cuidar antes de tudo. Sua chama representa... Ou melhor, ela é a certeza de que não há ruptura entre os vivos e os mortos, entre os presentes e os antepassados. O apagar do fogo implica, por conseguinte, o fim de tudo, posto que todos perdem a sua identidade, ou seja, o seu próprio ser. Cuidar dos mortos (os verdadeiramente mortos não precisariam de cuidados!) é o modo pelo qual os vivos cuidam de si mesmos. Prestar-lhes homenagens e cultos expressa, em verdade, uma auto-afirmação e uma garantia aos vivos de que a sua morte também não passará de uma morte aparente e que a distinção entre os dois mundos é bastante tênue ou sem qualquer rigor, o que facilmente se pode precisar em seus mitos (e que Xenófanes, Eurípedes e Epicuro, ainda na Antigüidade, tratarão de negar com veemência, acentuando um claro e excludente limite entre esses mundos).

02. Mas, o que são os seus mitos? São exatamente a narrativa que conta acerca das origens, dos seus heróis e de cada acontecimento ordinário que, muito ao inverso, são franjas de uma matriz extraordinária e fantástica, na ordem do terrível e do admirável, do temor e do encantamento. E quem sabe melhor sobre isto é quem mais o ouviu ser contado e passado de geração a geração: são os idosos. Estes dominam a arte da narrativa. São eles, em suas tantas experiências de vida, as mais aptas testemunhas de que tudo ocorre como contaram os seus pais, avós, e todos os demais que “passaram sem passar”. São eles a memória que nos chega e é reforçada pela narrativa repetida e atualizada (tradução/tradição); são eles que dizem de onde viemos e para onde vamos; são eles que dizem de nossa identidade, de nosso grupo, de nossa família, de nosso lar, de nossa “lareira”, de nossos antepassados, da “idade de ouro” que se foi e à qual, pelo movimento cíclico de todas as coisas (estrutura mítica), tendemos a retornar. Tudo implica numa necessidade de se re-ligar com o maior de todos os acontecimentos épicos, com o divino, com o sagrado. Os deuses nascem da “lareira” e o que chamamos comumente de religião é o seu corolário mais expansivo (2).

03. Com efeito, o papel social do idoso é passar adiante a estrutura do vivido que é de vários modos contado. E se “passar adiante” tem por vocábulo etimológico o termo “tradução”, donde vem por desdobramento a palavra tradição, segue-se que os mitos são ao mesmo tempo a atualização e a redescoberta presente da estrutura do vivido humanamente. Por este “ponto-de-fuga”, ele possibilita ao homem situar-se e encontrar-se no mundo. Não se trata de colocar primeiramente as coisas do mundo para depois colocar-se a si mesmo ou vice-versa. Precisamente, trata-se de uma contextualização, ou seja, as colocações se dão concomitantemente uma pela outra. O mito é, pois, uma cosmogonia, uma organização do caos, a “pedra angular” de sustentação de todas as coisas, a condição de possibilidade da existência humana - condição necessária; logo, nesse sentido, evidente, mas, noutro, é ele o que há de menos vidente, posto que é a condição apriorística do ato de se “ver”, como os olhos que vêem, sem ser vistos, num mundo sem espelhos.

04. A narrativa mítica, opostamente ao discurso lógico, é um fenômeno social universal e não está ligada de nenhum modo ao desenvolvimento da escrita (3). A narrativa escrita é, então, uma manifestação bastante tardia relativamente à narrativa oral, o que não se constata em relação ao discurso lógico, visto que esse tem por seu fundamento o assim chamado “princípio da não-contradição”, que, por sua vez, construiu-se e expandiu-se indefectivelmente sob os auspícios das primeiras narrativas míticas escritas. Com a gênese da memória escrita, a morte social dos membros mais velhos de uma sociedade se instaura lenta mas impiedosamente, não sendo, pois, um aspecto apenas característico do modo de produção capitalista. Neste, ela apenas se aprofunda paralelamente à necessidade de acentuação progressiva da produção material pela força humana de trabalho.

05. No Ocidente, a lógica foi um instrumental (organon) descoberto por Aristóteles de Estagira, quando este se pôs a analisar a formação dos discursos políticos e sofísticos, da eloqüência ou oratória ou ainda “arte da persuasão”, muito em voga na Atenas “democrática” de seu tempo. Todavia, o princípio sobre o qual tal instrumental se assenta advém da necessidade de sistematização das narrativas míticas, até poucos séculos antes apenas veiculadas oralmente. Dessa maneira, as obras de Homero (que sérios estudiosos hoje afirmam ter sido muitos poetas-escritores) e de Hesíodo emergiram como tentativas primeiras de organização e cristalização dos mais importantes mitos da Antigüidade clássica grega, o que permitiu aos pensadores posteriores detectar as várias “incoerências” entre uma parte e outra de um mesmo mito ou entre mitos distintos, mas dados como complementares, e, enfim, criticar a “veracidade” de muitos de seus conteúdos. Tomando este fio condutor, muitos historiadores apresentaram (e outros tantos ainda apresentam) o discurso “lógico”, racional e filosófico como uma manifestação anteposta e supressiva da narrativa mítica (4).

06. Aristóteles jamais fora esquecido no Ocidente devido a este seu contributo. Peter de Vries escreve no seu romance Reuben, Reuben que “a prova de seu domínio sobre o homem ocidental é que ele domina o pensamento de gente que nunca ouviu falar a seu respeito” (5). De fato, uma das grandes teses sustentada por Immanuel Kant, no berço da contemporaneidade, foi a subjetividade transcendental das categorias aristotélicas. Ou seja, tudo aquilo que o Estagirita tomou como categoria dos entes não era senão conceitos constitutivos do próprio modo de os homens entenderem as coisas, isto é, da própria faculdade humana. E é exatamente essa característica universal de toda psique humana que garante a objetividade da ciência. Logo, embora paradoxalmente, Kant nega Aristóteles para ratificá-lo incondicionalmente (6).

07. Destarte, a “palavra” dos filósofos (logos) ridicularizou, no desenrolar de nossa história, a “palavra” dos poetas cantores. Coube, porém, à ciência moderna levar tal feito ao seu extremo, apoiada por correntes filosóficas como o positivismo e o empirismo lógico. Nada mais parecia incólume à crítica do logos, da razão instrumental, para bem usar um termo hoje bastante corrente (7). Ora, a palavra de um discurso “lógico-formal” resume-se na exigência de superação de toda diferença radical, porque esta é, no seu entender, dado inconfundível de um equívoco seguramente cometido. E na ânsia de “resolver” as ambigüidades, tal pensamento, que também se estende na avaliação das relações humanas, não possui a capacidade de, pelo menos aí, compreender discursos diversos de um suposto mesmo mundo.

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08. Nas ciências humanas, contra a linearidade da concepção social dos evolucionistas, Claude Lévi-Strauss, fundador da antropologia estruturalista, afirmará que o “lógico” não é atributo apenas da ciência ocidental. Em verdade, ele é uma expressão intrínseca à cultura lato sensu. E não somente a uma cultura dominante, mas a todas as sociedades existentes, por mais pejorativamente primitivas que elas possam parecer ao olhar estrangeiro. As sociedades não caminham todas numa mesma direção, mas cada qual segue sua “lógica” própria (8), que, surpreendentemente, aqui, coincide com o que há de mais subjacente, mais determinante e, contudo, menos detectável claramente enquanto tal em toda e qualquer sociedade: o mito. Embora cada ação social seja dele uma expressão possível, nenhuma possui a capacidade de esgotá-lo, ou melhor, de coincidir-se com ele. Se assim não se pode mais falar de um povo ápice e modelo ao destino dos demais, todas as sociedades, por um lado, falam inevitavelmente a partir de princípios próprios e, a fortiori, nenhuma delas escapa a um mesmo tipo de etnocentrismo. Por outro lado, todavia, torna-se cada vez mais inaceitável o processo de aculturação, segundo o qual uma sociedade age não reciprocamente sobre as demais. Do mesmo modo que a trajetória pessoal expressa a identidade de um homem e esse, a partir dessa sua identidade ou trajetória de vida observa, julga e age, também um povo, sob o peso de seu passado, de sua história, percebe-se, avalia-se e move-se a si mesmo e igualmente a tudo mais. Perfeitamente, toda identidade implica paradoxalmente a “mesmidade” e a diferença. Em relação a uma dada sociedade, isso parece ainda mais claro, posto que, não obstante toda sua diversidade interna, ela se apercebe una frente a uma sociedade outra, tanto mais esta lhe seja relativamente discrepante. Do mesmo modo que a perspectiva cartesiana da consciência de si se faz insustentável hoje porque remete a consciência pessoal a um “sol-ipsismo” radical, isto é, a uma ipseidade negativa de toda alteridade, é semelhantemente insustentável almejar a autoconsciência social se se pensa uma sociedade distante de um encontro, de um verdadeiro encontro, que, enquanto tal, exige impreterivelmente o diverso. Contudo, à perspectiva ou à expectativa do encontro, o ostracismo, o fundamentalismo e o fideísmo são possíveis posturas prévias de defesa, mas que, uma vez instauradas, tornam-se difíceis de serem superadas.

09. Para uma tentativa de encontro, conseqüentemente, deve-se entender que o discurso lógico, aristotélico, cartesiano ou formal é o menos indicado para tal, não só porque ele está associado à arrogância do único adequado para o resgate do verdadeiro, mas também porque ele inevitavelmente já se estrutura sobre os sustentáculos do combate e da violência implícita na arte da persuasão. A pretensão última desta é que uma das partes faça a sua considerada oponente calar-se. Dessa maneira, parece realmente que o discurso “lógico-formal” não se conforma ao “diá-logos”, porém o seu sucesso está associado, em última instância, ao “mono-logos” do pretenso universal que se deseja, a todo custo, alcançar. É talvez contra isto que se quer hoje menos “entendimento” e muito mais “compreensão”, menos “justificação” e muito mais “narrativa”.

10. A narrativa é um ato desarmado que se dirige a um espírito desarmado. A narrativa é antes um convite do que um desafio. Não é uma disputa. Diz de tudo sem se querer um ditado exclusivo. Diz do vivido, que ninguém pode negar, e menos do como se deve viver, sobre o qual, de um outro modo, pode-se discutir. É somente uma lição dentre tantas outras possíveis e que podem até ser completamente diferentes; lição que revela, simples mas intensamente, todo um modo próprio de sentir, de pensar e de agir; um modo de ser que quer apenas se dizer uma existência dentre todo o existente - um simples modo de ser, um simples modo do ser que se diz de vários modos.


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1) Artigo publicado na Rhema - Revista de Filosofia e Teologia - com o mesmo título.
2) A religião e o mito, como fundamentos de todas e quaisquer sociedades e ciências, foram tematizados por muitos importantes pensadores, cada qual a seu modo próprio. É famosa a pergunta que Sigmund Freud fez a Albert Einstein em uma de suas correspondências a este, de 1932: “Não será que cada ciência, no fim, se reduz a um certo tipo de mitologia?” Émile Durkheim, por sua vez, com todas as letras, afirmou, em sua última grande obra, “que as categorias fundamentais do pensamento e, por conseguinte, a ciência, têm origens religiosas. (...), que quase todas as instituições sociais nasceram da religião.” (DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema sistêmico na Austrália. Tradução de Joaquim Pereira Neto; revisão de José Joaquim Cabral. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 495-496.).
3) “(...) ‘mito’, de acordo com o significado original grego da palavra, é sempre ‘expressão sonora’ (a palavra mytha, lingüisticamente parecida, é em grego phone, ou seja, ‘voz, som’) (...)”. Cf. KERÉNYI, K. O testemunho antropológico do mito. In: GADAMER, Hans-Georg; VOGLER, Paul. (Orgs.). Nova antropologia: o homem em sua existência biológica, social e cultural. São Paulo: E.P.U./EDUSP, 1977. v. 6 (Antropologia filosófica I), p. 218.
4) “Para Gusdorf, o homem de hoje vive duas possibilidades de alienação: a alienação do mito e a alienação do intelecto. Um é o apego radical ao modo mítico da verdade, querendo restabelecer o mito como forma atual e única (grifo nosso) de defrontar-nos com a realidade; o outro é a quimera da demitização completa da existência pela aceitação também única do logos. Para o filósofo francês, essas alienações são duas formas de infidelidade à condição humana, cuja trama deve resultar de um contraponto entre a consciência mítica e a consciência reflexiva.” (MORAIS, Regis de. A consciência mítica: fonte de resistência do sagrado. In: ______. (Org.). As razões do mito. São Paulo: Papirus, 1988. p. 79.
5) Cf. MORRALL, John B. Aristóteles. Tradução de Sérgio Duarte; revisão de Carlos Evaristo da Costa. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. p. 5.
6) REALE, Giovanni.; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. São Paulo: Paulinas, 1990. v. II, p. 884.
7) Primeiramente, o pensamento discursivo interveio como um instrumento de mediação, aumentando o domínio do espírito sobre as coisas. Depois o comportamento categorial, que não passava de um meio, afirmou-se como um fim em si. Rompem sua subordinação ao mito, que ele tinha como primeira função elucidar. Levou a cabo a crítica ao mito e esta censura resultou num rechaço sistemático. Afinal de contas, o que tinha ficado de irredutível na consciência mítica se vê agora reprovado, desonrado, como um asilo de ignorância”. GUSDORF, Georges. Mito e metafísica: introdução à filosofia. Tradução de Hugo Prímio Paz. São Paulo: Convívio, 1979. p. 192.
8) LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. In: Seleção de textos. São Paulo: Abril, 1976. p. 51-94.

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