Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





31 de out. de 2011

TEXTO XVI: A Filosofia Grega Vai ao Estrangeiro

Rodrigo Rodrigues Alvim

1. Considerações panorâmicas sobre as filosofias helenísticas

01. A filosofia da antiguidade clássica grega, particularmente sustentada em Sócrates, Platão e Aristóteles, não pode ser dissociada da constituição política da qual gozavam as poleis gregas, precisamente porque eram cidades-estados, ou seja, gozavam de uma autonomia que bem refletia o orgulho grego em relação a sua identidade, distinção e superioridade. Tinham a si mesmos (os helenos) como homens propriamente ditos e os não-gregos como bárbaros, animais e selvagens, tanto mais seus costumes se distanciassem do modus pensandi e do modus vivendi gregos.

02. Esses dados nos permitem compreender o impacto que o mundo helênico sofreu ao submeter-se ao macedônio Alexandre. Embora este, bem educado por Aristóteles, tenha, na realidade, expandido a cultura grega por todo o seu império (não é por acaso que este império fora denominado ulteriormente “helenístico”), tal expansão não foi bem vista pelos gregos (do mesmo modo que, nos seus mitos, os deuses se enfureceram com os titãs que roubaram o fogo divino e o entregaram a criaturas inferiores: a humanidade), ciosos que eram de sua cultura. Na filosofia, este impacto não foi menor. A partir de então, o tema geral dos pensadores em contexto helenístico será precisamente este: como filosofar e viver em nova e estranha condição, porque não mais balizada pela constituição política grega?



03. Caídos os muros das cidades-estados modelos, os filósofos veem-se a si próprios num mundo sem fronteiras, sem as antigas orientações. Ao senso comum ateniense, por exemplo, que naqueles anos de autonomia recorriam à praça para decidirem os seus destinos (o destino da polis, as suas leis), agora, submetidos a um estrangeiro, o imperador macedônio, nem mesmo a este podem recorrer, uma vez que Alexandre, de modo constante, se encontra longinquamente em algum ponto da grande expansão do seu império. Assim, sedentos de novas referências, Zenão de Cítio, Epicuro e Pirro, dentre outros, desenvolverão reflexões que marcarão esse novo tempo, tomando vulto histórico como novas vertentes filosóficas, denominadas, respectivamente, estoicismo, epicurismo e ceticismo, dentre outras, como o cinismo e, mais tarde, o neoplatonismo.



04. É imperativo, pois, observar que as filosofias helenísticas são, antes de tudo, filosofias de vida, ainda que não percam o rigor de pensamento. É notório que os pensamentos de Platão e Aristóteles exigiram uma profundidade conceitual somente alcançada por aristocratas que, distantes do cuidado direto e incessante do provimento das necessidades materiais (manuais), reconheceram a importância desse “ócio” para dedicação às especulações, abstrações e generalidades (às “coisas mais elevadas”, segundo consideravam). As filosofias helenísticas, nesse sentido, são mais próximas do pensamento de perfil socrático, num claro interesse de acessibilidade para todo e qualquer homem, grego ou macedônio, livre ou escravo. Daí que surge a concepção do homem como “cidadão do mundo”, concepção denominada geralmente “cosmopolitismo” (“minha cidade é o mundo”). Por isso que, mais do que pensamentos atrelados a elementos externos como o de origem e naturalidade, as filosofias helenísticas promoverão um movimento de internalização, que nos revela a sua tarefa maior de conduzir o homem à traquilidade de sua alma. Eis o filósofo: aquele que se mantém imperturbável, mesmo em meio às intempéries da vida em seu entorno, como as conquistas ou perdas políticas, o acúmulo de riquezas ou a pobreza, etc.

05. Passemos, agora, a expor algumas peculiaridades introdutórias de cada uma das três maiores vertentes filosóficas helenísticas.

2. O epicurismo

06. O epicurismo enquanto escola filosófica desaparecerá paulatinamente com o advento do cristianismo, principalmente pelo fato de o seu fundador, Epicuro, ter proposto a identidade entre a felicidade humana e o prazer, este último no seu sentido mais amplo e, por isso, também carnal, o que se opõe frontalmente à concepção ascética cristã. Nos fármacos ou remédios que Epicuro apresenta para livrar os homens das perturbações da alma, podemos entrever a recusa de Epicuro a uma outra realidade para o homem, senão esta na qual já nos encontramos. Por exemplo, diz ele que, se os deuses existem, não precisamos temê-los, pois os tomamos distintos de nós, ou seja, como distintos da condição humana, não podendo eles, portanto, ter nada conosco. Noutros termos, se, com precisão, são eles divinos, isto é, fora do humanamente ordinário, então, na verdade, não podem haver conosco. Outro exemplo se encontra no remédio que ele nos apresenta para não nos perturbarmos com a morte, pois se a morte de cada um é tomada como a negação da sua vida, significa, então, que quando ela chegar a alguém, este deixa de ser e, tendo deixado de ser, nada mais pode lhe abater (como quando, por ignorância, pensamos na morte como algo que nos abate). Percebe-se, pois, que, para Epicuro, não há um mundo que transcenda a este, no qual nós nos encontramos, e, mesmo que existisse, não teria a ver com o nosso. Ora, na cosmovisão cristã, prevalecerá a existência de dois mundos, sendo a morte não um fim, mas exatamente a transição humana entre um mundo corruptível e um mundo eterno. Nesses limites, podemos bem observar o materialismo epicurista que não se adequará ao espiritualismo cristão. Para Epicuro, a comunidade humana feliz é a comunidade de amigos, que assim constroem a felicidade num “jardim de delícias”.

3. O estoicismo

07. Como o epicurismo, também o estoicismo como escola filosófica desaparecerá pouco a pouco com o advento do cristianismo. No entanto, isso se dará por razões muito opostas, pois se o cristianismo se apresentou como uma contraposição ao epicurismo, assim extinguindo-o, só venceu o estoicismo, ao seu tempo, à medida que, em geral, conseguiu absorvê-lo. Para Zenão de Cítio, pai do estoicismo, nada no mundo é por acaso. Tudo tem uma razão, porque, antes, o que tomamos por realidade é uma Razão Universal, um Macrocosmo (relembremos que “cosmo” é um termo de origem grega que significa “algo bem ordenado”), no qual o homem, entendido como razão, é um microcosmo. Dizendo melhor, conhecer racionalmente o mundo é reproduzi-lo em mente e, em essência, reproduzir a sua ordem. Logo, somente quem bem compreende o mundo é livre, pois age em conformidade com essa sua compreensão, que, por sua vez, se conforma às determinações do mundo. Tudo o que acontece no mundo tem uma razão. Portanto, tudo o que acontece no mundo acontece necessariamente. Tudo, assim, já está predeterminado e ser livre corresponde em agir segundo essa predeterminação que a razão humana pode compreender. Ser livre, enfim, ao invés de se opor à predestinação é precisamente agir de acordo com o inevitável, porque se o compreende como algo que verdadeiramente não é de outro modo e, por conseguinte, só pode ser assim mesmo. Somente quem não pensa adequadamente o mundo, age em contraposição ao mundo e, consequentemente, sente-se constrangido pelos eventos que são a realidade. É o pensamento que assegura a autonomia e liberdade do homem. As paixões são tendências que desequilibram a reprodução da justiça, do equilíbrio e da ordem que a razão humana microscópica traduz da Razão do Universo. Cada homem, porque dotado de razão, não depende de outrem para ser feliz e alcançar a tranquilidade de sua alma: somos cidadãos do mundo e podemos conhecer as leis que nos destinam, bem como a todas as demais coisas, para agirmos sempre em conformidade com elas.

4. O ceticismo

08. Depois de errar por vários cantos do mundo, perguntando pela sua verdade, Pirro passou a suspender todo e qualquer juízo último e pretensamente universal acerca da chamada realidade, pois refletiu sobre as diferentes considerações que os homens têm acerca dela, que redundaram em diferentes culturas e sociedades, resignando que os limites dos nossos sentidos e da nossa capacidade racional são mui estreitos para se estender às coisas, que não são “mais isso que aquilo”. Restaria-nos, pois, não mais nos deixar perturbar com o intuito de conhecer as coisas mesmas, mas sermos completamente indiferentes à verdade pela suspensão dos nossos juízos, mantendo-nos distantes tanto da afirmação quanto da negação (nada podemos dizer: afasia).

09. Não se deixando perturbar por aquilo que é inapreensível, a alma humana se torna feliz.

10. Frente a várias filosofias dogmáticas (ou seja, defensoras da possibilidade de conhecimento, pelo uso da razão ou pelo uso da sensação), predominou a interpretação do ceticismo como oposição às afirmações dessas filosofias. Nesse sentido, o advento do cristianismo associou o ceticismo ao ateísmo (a começar literalmente pela oposição à sentença “Deus existe” com a sentença, que julgavam “cética”, de que “Deus não existe”). No entanto, como dissemos, o ceticismo pirrônico mantinha-se em igual distância da afirmação e da negação, ou seja, pelos limites de nossas capacidades racionais e sensoriais, não podemos dizer que “Deus existe”, mas tampouco que “Deus não existe”, pois deste último também não há possibilidade de provas lógicas ou empíricas cabais. Duvidar não significa negar, mas suspender o juízo e ser indiferente àquilo sobre o qual não se pode ajuizar definitivamente.

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