Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





17 de out. de 2010

TEXTO IX: Primeira Reflexão: Motivos Céticos à Religião e à Ciência

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Inserido no mundo, o homem, crescentemente, passou a situar-se ao modo do que, desde o início da modernidade, denominamos “nova ciência”, ocupando espaços de influência que outrora coube quase que exclusivamente à religião. Por essa transição, também a filosofia, antes atenta aos motivos religiosos, deslocou-se do eixo da ontologia, do que especialmente se denominou “filosofia teológica”, para o da epistemologia, particularmente da teoria do conhecimento científico.

02. Esse fundo da modernidade implicou a nossa concepção do ceticismo como um avesso da filosofia, pois, enquanto esta última é concebida como um otimismo à possibilidade de conhecimento humano do que chamamos de “realidade”, aquele primeiro é tomado pela consideração segundo a qual “de nada temos certeza”. Nesse sentido, não somente “o pretendente ao saber”, que dá nome ao “filósofo”, é desabonado, mas também aquele que se dedica, entusiasticamente, a qualquer tipo de ciência da pretensa “realidade” – o que inclui, por conseguinte, o “cientista” de nosso tempo.

03. O que se pretende aqui destacar, inicialmente, é que o protocolo científico que está na gênese da modernidade e que domina toda a cultura ocidental dos últimos séculos, conforme o qual “o mundo deve ser conhecido por ele mesmo”, obscureceu o fato de que a filosofia nasceu antes como “sentido de vida” do que estritamente como “epistemologia”. E, de roldão, que também o ceticismo é antes uma “filosofia de vida” do que um avesso da filosofia ou uma pronta negação da epistemologia. Noutros termos, os céticos não são o que são por “princípio”, má-fé ou má vontade, mas por fadiga e zelo. Em melhores termos retóricos, os céticos desistem da ciência humanamente inalcançável para viverem a felicidade humanamente possível; não veiculam a filosofia que interessa à ciência moderna, mas ainda veiculam a filosofia que interessa à vida.

À CIÊNCIA

04. Se o conhecimento do mundo nunca é definitivo, toda intervenção no mundo à luz desse conhecimento é inevitavelmente irresponsável. O cético concorda com a “nova ciência” que um conhecimento último das coisas do mundo está para além das capacidades humanas, mas as pragmáticas que amparam a ambos nesse mesmo sentido são completamente distintas, pois somente o cético, por isso mesmo, se detém no imediato e se abstém de juízos últimos. O cientista, por sua vez, assim considera a questão em virtude do interminável encalço das causas últimas que lhe impediriam a faceta operante, técnica ou instrumental do seu conhecimento, tomando – incoerentemente, portanto – o imediato como último (como necessário, universal e definitivo), a fim de por aí estabelecer as suas intervenções. Assim, a coerência da pragmática cética, diferentemente da irresponsabilidade científica, conduz-nos à contemplação, à afasia e à ataraxia (contrárias à manipulação, à profissão e à crítica).

05. Noutros termos, já os iluministas destacavam que a “nova ciência” seria uma feliz conciliação entre “razão” e “experiência”. De fato, concordam os céticos que estas são as duas capacidades estritamente humanas de conhecimento. Contudo, ressaltam não menos que tais faculdades (a de entendimento e de sensibilidade) são, em seus limites, desproporcionais à dimensão do mundo que pretendem conhecer. Na contemporaneidade, o próprio “positivismo crítico” leva em consideração essas ponderações céticas, embora não veem como podemos escapar a essas nossas precondições ontológicas. Sua “demarcação” entre ciência e não-ciência não mais arroga, como os positivistas clássicos, que a não-ciência seja um discurso “sem-sentido”, mas apenas a considera como sentido formalmente distinto do científico. Confirma, ademais, a própria precariedade das precondições humanas que se refletem nas atividades e produções científicas, destacando, assim, o caráter de “provisoriedade” que também marca as teorias científicas. Tal destaque choca-se frontalmente com a aparente segurança que a cosmovisão científica do mundo possui no senso comum ou, antes, nas mentes tradicionalmente positivistas. Nesse sentido, a própria filosofia da história cientificista é uma tentativa de nos fazer esquecer que também a ciência é uma atividade humana e que, assim sendo, carrega consigo, inevitavelmente, os estreitos limites dos poderes humanos.

06. Finalmente, insistimos que ainda é corrente e predominante entre os contemporâneos a concepção de que a ciência é modo de compreensão e expressão de mundo que não se preocupa com as causas primeiras e últimas de seus objetos de investigação (como ainda fazia a filosofia próxima do mito e da religião), mas tão-somente com as causas imediatas dos mesmos. Insistimos, igualmente, que isso se justifica, pois a demora em perpassar e alinhavar todas as coisas a impediria de cumprir precisamente o que lhe dá fama: sua capacidade de pronta intervenção e manipulação do mundo. Em compensação, ela, esta ciência, se pulverizou em “especializações”, o que nos gera a expectativa de que nada lhe poderá escapar. A demanda hodierna de interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade deixa transparecer, ao fundo, uma concepção do mundo como unidade ao mesmo tempo em que compensa a sua insistência no trato dos vários modos como este mundo se nos revela.

07. Hoje, entretanto e cada vez mais, a “ciência moderna” se desnuda não como apenas aquela que não sabe das causas primeiras e últimas do que investiga, mas desconhece tanto mais as conseqüências longínquas de cada coisa que manipula. Na verdade, ela só se estende até os efeitos “co-laterais” ao que diretamente lhe importa. Ela mesma se avoluma, presentemente, em descobertas de efeitos nocivos de seus procedimentos passados à natureza e, por inclusão, a cada um de nós, procedimentos estes que outrora lhe pareceu tão inofensivos.

08. Perdidos no imediato de nossas próprias contingências plurais e valorizando-as, esquecemos que, no entanto, estendemos o nosso pequeno mundo para uma última fronteira muito além dele mesmo. Como que por um “efeito rebote”, estamos tomando consciência do quanto nos tomamos como absolutamente responsáveis por aquilo que, na verdade, nunca estávamos em plenas condições de responder. Todavia, isto se faz não por uma cosmovisão menos sistêmica, mas, muito opostamente, reafirmamos a unidade das múltiplas coisas quando precisamente estamos a falar de uma “natureza” que reclama de nossas agressivas intervenções, ampliadas pelas técnicas científicas. As coisas, assim, se reafirmam em cadeia, ou seja, como múltiplas e uma só, ambiguidade que, mais uma vez, expressa a nossa trágica condição.

09. Tratar da ecologia, por exemplo, em nosso tempo tecnocientificista e capitalista é, verdadeiramente, um drama, pois se, por um lado, remete a nossa atenção, sem dúvida, à necessidade de conservação de nossa diversidade de fauna e flora, paradoxalmente atrelada à idéia de cadeia entre tal diversidade, uma vez que é precisamente ela que sustenta a concepção de que somos todos co-responsáveis pela destruição ou conservação da natureza, estejamos direta ou indiretamente lidando com ela, por outro lado o trato da ecologia, alerta-nos ainda mais para o fato de que enquanto nos vemos diante da natureza, como é praxe acontecer na “nova ciência”, estamos imperceptivelmente sendo vítimas de uma concepção de natureza que é simples objeto para a nossa intervenção qualquer, porquanto nada mais é propriamente intocável, mas tudo sofre a manipulação que o transformará em mercadoria, objeto de troca que é demandado e que ao mesmo tempo sustenta a sociedade do “livre” mercado. Eis o paradoxo da nossa própria existência: sentimo-nos diante da natureza (aliás, como senhores dela), mas não menos estamos na natureza (submetidos a ela), expressão de nosso inexorável entrelaçamento com cada ente que conosco compõe esta unidade chamada “vida”. Não há, consequentemente, como esgotá-la sem nos consumirmos fatalmente a nós próprios – inquietação de nossa alma!

À RELIGIÃO


10. Uma vez que as capacidades humanas de conhecimento estão demasiadamente aquém do que pretendem conhecer, o “sentido de vida”, que, para tanto, é necessariamente universal, não se contém nos limites humanos de razão e de experiência. Logo, o universal que se quer ensejado pela razão ou pela experiência não passa de uma ilusão dogmática para os céticos.

11. Brevemente, justificamos que os dados sensoriais que temos apenas nos fornecem as particularidades da vida e que, dessas particularidades, por maior que seja o seu número, não se pode daí inferir uma proposição universal. Também os dados racionais, para serem assim considerados, devem ser inferidos imprescindivelmente de outros dados evidentes por si sós. Se ainda estes últimos também assim não o são, devem ser deduzidos de outros que assim o sejam. Ora, comumente, ou a cadeia cessa em dados ainda não auto-evidentes ou se desenrola ao infinito e logicamente indecisa.

12. Em nosso passado, essa contingência dos dados humanos foi compensada pela primazia dos dados pretensamente não-humanos. Em outras palavras, se humanamente não podíamos nos dar a nós mesmos o incorruptível, pensou-se que somente poderíamos tê-lo caso ele próprio se nos revelasse a nós. A verdade foi, portanto, apresentada como sua revelação àqueles que agora nos a revelam. E, em nossa história recente, a fim de nos reconduzir aos limites do que nos é dado às nossas capacidades naturais, pensadores racionalistas e empiristas reunirão seus esforços para desacreditar as pretensas autoridades dessas verdades reveladas, chamando estas últimas de superstição. Pouco a pouco, ocorre a “democratização” das instâncias de verdade: todo homem é detentor de razão e de experiência; portanto, tudo o que nos é dado por razão e experiência é verdadeiro, não por autoridade de alguns, mas por autoridade de todos os homens, porquanto não há ninguém que seja privado de confirmar, por essas mesmas capacidades que igualmente possui, a veracidade do verdadeiro ou a falsidade do não-verdadeiro. Mas o otimismo da distribuição equânime dessas capacidades logo se desfez e ainda hoje assistimos, na falta de algo melhor, ao governo provisório dos convencionalismos de grupos humanos, casando a epistemologia com as hegemonias políticas.

13. Chegou-se mesmo a denunciar, ainda na metade do século XVIII, que também a “nova ciência” está calcada em conexões habituais e costumeiras, que, no entanto e erroneamente, são-nos apresentadas como conexões necessárias, bem como nas crenças de que o futuro há de se dar tal e qual o passado. A unidade do pensamento foi se dissolvendo em multiplicidade cultural. Bem observando, a modernidade foi multiplicando e consolidando os motivos céticos primitivos, os mesmos que fizeram com que alguns filósofos suspeitassem de que o absoluto não se adequa às condições humanas e que, por conseguinte, não há afinidade entre a verdade universal, humanamente inalcançável, e a felicidade do homem, mas sim entre esta e o abandono daquela. Tal relativismo que comumente antecede ao comportamento cético não se demora, contudo, aí. O relativismo moderno, que em si se demora, tornou-se parte insubstituível do atual modo de produção, pois bem expressa a extensão da novidade que se tem para se consumir num tão breve tempo, fazendo de nossa vida uma insatisfação sem fim, estressante e vã. O relativismo cético, ao contrário, tende a conduzir-nos ao engajamento absoluto da cultura a que pertencemos: se as culturas, se os modos de se pensar e de se ser dos grupos humanos se equivalem, não há porque se desgastar em se querer diferentemente do que já se tem. O relativismo cético, consequentemente, não é inimigo da tradição, como o relativismo de consumo, mas lhe é desenlace para uma vida feliz. O ceticismo pirrônico, ao denunciar os limites das faculdades humanas de entendimento e sensibilidade, reporta-nos ao que somente a tradição nos pode mais facilmente fornecer: os aportes mais seguros para uma vida pacificada.

14. Como parte de nossa tradição, a religião pode ser assim bem guardada. Não é por acaso que Montaigne se manteve coerentemente cético e cristão fervoroso e Pascal, um fideísta advogado de Pirro.

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