Última atualização: 12 de abril de 2011, à 13h15min.

02. Nossos dados sensíveis nos apresentam a transitoriedade de todas as coisas e as nossas diferentes culturas fazem-nos óbvia a tese dos sofistas de que tais coisas são somente as múltiplas interpretações dos homens em conformidade com a disposição em que cada um se encontra. Isto, no entanto, exige que abandonemos qualquer propósito de buscar um conhecimento preciso do mundo ou de alcançar o que é indiscutivelmente justo.
03. Foi assim que, frente à pergunta sobre a possibilidade de conhecermos o mundo com exatidão, os sofistas responderam negativamente: estamos condenados a conviver simplesmente com as múltiplas opiniões acerca do mundo, opiniões estas tantas vezes até contraditórias entre si. Sem real convicção, todo parecer se equivale.
04. Platão enfrentará, de maneira positiva, o problema da possibilidade do conhecimento rigoroso das coisas do mundo no qual nos encontramos e fará disso a preocupação central de sua filosofia. Sendo assim, é estranho que muitos ainda hoje o tomem como um filósofo que menosprezou este nosso mundo. O que levou e ainda leva tantas pessoas a este equívoco?
05. A fim de sustentar, opostamente aos sofistas, uma resposta positiva à possibilidade de conhecermos o nosso mundo com exatidão, Platão elaborou a hipótese conhecida como “Teoria das Ideias”, segundo a qual as coisas verdadeiras existem de forma estática e o mundo no qual nós nos encontramos é constituído de múltiplas manifestações de cada uma dessas Ideias. Caso seja assim, poderíamos conhecer as múltiplas coisas sensíveis com precisão através da Ideia estática, da qual todas elas participam: as coisas diversas e mutáveis dadas aos nossos sentidos são quais sombras várias e cambiantes que se possam produzir de uma única e mesma coisa. Foi dessa maneira que, para facilitar a compreensão de sua hipótese, Platão elaborou uma imagem (uma alegoria) que se encontra descrita por Sócrates, de quem fez personagem principal do seu diálogo denominado A república, em seu livro VII.

07. Não menos, Platão recorre a uma concepção mística de mundo, corrente entre os pitagóricos – os quais frequentou por algum tempo –, segundo a qual a essência humana é a alma. Sem esta, não se é humano. Por isto mesmo, a alma é imortal, sobrevivendo ao corpo, no qual presentemente ela habita. Esta alma, tomada pelos filósofos como a razão, é imortal, pois ela mesma – destaca Platão – tem a capacidade de conter o eterno, aquilo que não pode ser pensado de outro modo e que, portanto, não pode ser de outro modo. E, não podendo ser de outro modo, só pode ser assim mesmo: imutável, pois, e eterna. Por exemplo, para inicialmente não complicar, podemos recorrer à proposição já examinada no texto Filosofia: em nome da razão (Texto III). Verdadeiramente, não há como pensar o triângulo senão como a figura fechada, na qual a soma dos seus ângulos internos seja idêntica à soma de dois ângulos retos. Pensando diferentemente disso, não é triângulo. Nesse sentido, portanto, não há multiplicidade e nem mutabilidade. Se eu falo, porém, que o triângulo é retângulo (ou seja, tem um dos seus ângulos internos reto), esse predicado é possível ao triângulo, mas não lhe é essencial. Tal figura já não mais participaria tão-somente da ideia de triângulo, mas também de outra ideia, a saber, da ideia de ângulo reto. Daí a multiplicidade que percebemos nas coisas sensíveis: elas participam comumente de várias ideias. Cada ideia é algo em si, é algo puro, uno, não dependendo de outra coisa, senão dela mesma, para ser o que é. As coisas sensíveis têm a sua causa nas ideias das quais participam. São, portanto, dependentes de outrem, efeitos possíveis (não necessários), diversos e acidentais.

09. Com essa possibilidade de conhecer o verdadeiro, a filosofia nos possibilitaria igualmente a política do justo, a instauração de uma polis diferente daquela que havia condenado Sócrates à morte. A mesma Alegoria da caverna nos revela o “filósofo” retornando àqueles que ainda se encontram no “mundo das sombras” e das aparências sensíveis para libertá-los rumo ao mundo verdadeiro. Aliás, tal Alegoria se encontra precisamente na principal obra política de Platão, A república, como antes já o dissemos.
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10. Não obstante a cidade-Estado considerada racionalmente perfeita por Platão fosse, conforme ele próprio admitiu no “livro IX” d’ A república, “algo que não existe em parte alguma da terra”, considerava-a o fundamento da política justa. De fato, o teor revolucionário de obras que arquitetaram “sociedades ideais”, dentre as quais a platônica é a primeira do Ocidente, far-se-á sentir no decorrer de todos os séculos que se seguirão, pois, por si sós, apresentam-se como alternativas críticas às sociedades existentes. A dificuldade de realização de sua “república” (politeia), Platão a sentiu em vida, quando, por duas ocasiões, motivado por um amigo próximo do rei de Siracusa (na região da Sicília), termina antipático a tal rei, que, na segunda de suas tentativas, vende-o como escravo. Só recuperou sua liberdade porque foi comprado por um amigo seu.
11. Essas experiências abalariam qualquer pessoa, mas, no caso de Platão, tal abalo certamente foi muito maior, pois, ainda jovem, encontrava-se ao lado de Sócrates por motivos não muito diferentes dos outros filhos da aristocracia ateniense que se punham a frequentar um sofista. Platão fazia parte de importante família política de Atenas e, por isso mesmo, esperava-se que se tornasse igualmente famoso político. Todavia, em virtude da oposição de Sócrates aos sofistas e da condenação deste à morte pela cidade, Platão (segundo adiantamos no parágrafo 11 do Texto V) logo percebeu a impossibilidade da prática política adequada sem a dedicação ao pensamento filosófico. Apesar, pois, dessa afinidade desejável, sua realização pareceu-lhe, desde as suas frustradas experiências em Siracusa, muito difíceis. Assim, coincidentemente, Platão sofreu em vida a incompreensão que anteviu e expressou em sua figura do “rei-filósofo” quando retorna para conduzir os seus conterrâneos, ainda acorrentados às falsas aparências, à verdade, ao justo e real: dele riem e, por pouco, não o matam.
12. Mesmo assim, o laço entre filosofia e política (diríamos, hoje, entre pensamento e ação) em Platão permaneceu indelével. Sua última obra, inacabada, Sobre as leis, é um claro indício disso, embora faça notar significativas mudanças em seu pensamento que a farão, no entanto, apta a realizar uma reforma sócio-política, talvez na própria Sicília, após a morte do rei de Siracusa. Soma-se a isso a procedimento platônico (como socrático) de que o caminho para a ascensão ao conhecimento é a dialética, pela qual entre teses e contrateses, ditos e contraditos, vamos realizando a depuração para o verdadeiro (a reminiscência). Na prática, é a conversação, é o diálogo entre diferentes interlocutores, entre cidadãos (forma que Platão dará às suas obras), que permite-nos trilhar para fora da “caverna”, para o mundo das verdades, para a polis justa, na qual, em sua destinação, comumente expressa em leis, todos vêem a sua própria destinação.
Assistir, no Youtube, ao vídeo respectivo ao seguinte endereço:
http://www.youtube.com/watch?v=nxVwsKNv08Q&feature=related

Parabéns pelo texto professor. Sabe mais que qualquer um sobre filosofia, admiro muito seu trabalho e suas aulas.
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