Este artigo foi primeiramente publicado na Rhema
– Revista de Filosofia e Teologia do Instituto Teológico Arquidiocesano Santo
Antônio, Juiz de Fora, v. 14, p. 71-66, 2008. ISSN 1516-3954.
RESUMO
Este
artigo incide na reconstrução do itinerário dos escritos de René Descartes que
lhe forneceu as condições para a intuição do cogito, para, a partir daí, declinar as suas conseqüências lógicas,
fazendo com que estas, em seguida, retroajam no esclarecimento maior dessa res cogitans (deste algo “que duvida,
que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que
quer e que não quer, que também imagina e que sente”), confirmando-o ainda mais
através das compreensões que os principais estudiosos da filosofia cartesiana
têm dessa intuição do pensamento quanto à sua existência e à sua natureza. Espera-se que tal empreendimento nos permita,
pela cadeia de um raciocínio rigoroso, superar, a partir das próprias obras de
René Descartes, o solipsismo da consciência por ele mesmo estabelecido. Tal
cadeia, em resumo, pode ser assim expresso: sendo a “vontade”, para o próprio
René Descartes, uma das atividades do pensamento, ou seja, do “eu” do qual
tenho evidência, o constrangimento desta “vontade” que sou é uma boa razão para
concluirmos pela existência de pensamento além do meu, pois uma vez que
“disponho” do mundo entendido como res
extensa, aquele constrangimento só pode advir de uma vontade distinta da
minha, de uma “outra” res cogitans.
Sendo assim, isto, que se contrapõe ao solipsismo instaurado pela filosofia de
Descartes, ao mesmo tempo e paradoxalmente, dela se infere necessariamente.
PALAVRAS-CHAVE:
Cogito, solipsismo, vontade errante,
alteridade.
ABSTRACT
This article concerns about the reconstruction of Rene Descartes writings’ itinerary who gave them the
conditions to the
cogito’s intuition, for, thereafter declining
to its logical
consequences, making them go back
in the greatest clarification
in this res
cogitans (something that " doubts, denies,
that knows few things,
it ignores many, who
loves, hates, wants, doesn’t want
and which also
imagines and feels"),
further confirming the understanding that
through the mainly studious of the Cartesian philosophy of intuition have
thought about their
existence and their nature. It is hoped that this venture will allow
us, through a chain of rigorous
reasoning, to overcome, from their
own works of Rene Descartes, the
solipsism of consciousness
established by himself. This chain, in short,
may be stated thus: being the "wish" for René Descartes
himself, one of
the activities of thought, the "I " of which I have evidence, the embarrassment of
this "wish" is
that I have a
good reason to
conclude that there is beyond my thoughts,
because once that "dispose" of the world understood as res extensa, that
embarrassment can only stem from a desire of my distinguished
from an "other"
res cogitans. So this, as opposed
to solipsism philosophy
initiated by Descartes, at the same time and paradoxically,
it is inferred
necessarily.
KEY WORDS: Cogito, solipsism, wandering
desire, otherness.
1. Introdução
01. Com o desenvolvimento inconteste da inteligência
artificial nas últimas décadas, bem como a necessidade ou simples interesse de
mantê-la em desenvolvimento, as ciências cognitivas (sejam psicológicas e/ou
comportamentais, sejam neurofisiológicas) passaram a ocupar um lugar de
destaque no campo das pesquisas de maior investimento. O que surpreende é que
muitas das questões balizadoras dessas investigações correspondem
indisfarçavelmente a seculares questões filosóficas. Entretanto, em virtude da
amplitude do seu arco de estudo, a filosofia, neste particular, passou a
denominar-se “filosofia da mente” e hoje já assim se apresenta em muitos
currículos de cursos superiores de filosofia.
02. Em uma obra introdutória aos temas de interesse dessa área, o professor Cláudio Ferreira
Costa, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, destacou, dentre outras,
a seguinte questão: “como conhecemos os nossos estados mentais e os de
outras pessoas?” (COSTA, 2005, 8).[1]
03. De uma
tradição não muito longínqua de nós, herdamos (e, por isso, por ela somos, de
algum modo, constituídos) o pensamento de René Descartes, convencionalmente
considerado, aliás, o “pai da filosofia moderna”. Já nele, aquela questão acima
destacada, que Cláudio Costa apresenta como afim à “filosofia da mente”, é
central – e o seu desdobramento, uma obra-prima da filosofia.
04.
Verdadeiramente, como críticos favoráveis ou críticos desfavoráveis aos
princípios e conseqüências de seu pensamento, Descartes ocupou a atenção de
muitos estudiosos desde o século XVII. Depurando o que se chama de “eu”, a
leitura atenta das suas “Meditações sobre a filosofia primeira” (sua obra
filosófica por excelência) é a mais bem elaborada recusa do empirismo ingênuo e
ressalvas ao empirismo sofisticado.
05. O professor
João de Fernandes Teixeira, da Universidade Federal de São Carlos, escreve, na
conclusão de seu livro “O que é filosofia da mente”, que uma das questões que
vem sendo rediscutida pela filosofia contemporânea pode ser assim elaborada: “como
é possível que nossas idéias espelhem o mundo fora de nós?” (TEIXEIRA, 1994,
294). Se alguma parte dos escritos de Descartes se delineia motivada
precisamente por esta questão, isso, entretanto, no decurso de sua filosofia,
só acontece bem depois ao enfrentamento, em primeiro lugar, do problema da
“minha” existência enquanto instância do que o professor João de Fernandes
Teixeira então chama de “nossas idéias” e, em segundo lugar, da possibilidade
de existência de um mundo fora de nós que corresponda à certeza de um mundo em
mim, em meu pensamento – “minhas idéias” ou percepções que chamo de “mundo”:
(...) no que concerne às idéias, se as considero
somente nelas mesmas e não as relacionamos a alguma outra coisa, elas não
podem, propriamente falando, ser falsas; pois quer eu imagine uma cabra ou uma
quimera, não é menos verdadeiro que eu imagino tanto uma quanto a outra. (DESCARTES, 1988, 33).[2]
06. Tal “locus”
originariamente indubitável do “mundo” – que posteriormente encontrará fortes
ecos na filosofia moderna e já contemporânea, seja na “mônada sem janela”
de Gottfried Wilhelm Leibniz, seja no “eu penso” (“eu transcendental”
ou “razão pura”) de Immanuel Kant, seja ainda no “espírito absoluto”
à maneira de Johann Gottlieb Fichte ou à maneira de Georg Wilhelm Friedrich
Hegel – encontra sua dívida para com o passado do pensamento ocidental ou,
precisamente, com a admiração, preocupação e genial reação especulativa de
Aurélio Agostinho ao ceticismo acadêmico de seu tempo, quando, pois, revela a
inquestionabilidade do “mundo em mim”, do “para mim”, do hoje denominado “mundo
fenomênico”.
07. Admitido o
“mundo fenomênico”, podemos juntar aqui os solipsismos ensejados por David Hume
e por Arthur Schopenhauer, bem como discutidos por Ludwig Wittgenstein, dentre
outros, a fim de percebermos com nitidez que a solidão última das experiências
que se tem – destas fazendo a dita “realidade” – não é uma quimera filosófica,
mas uma das mais difíceis questões que, aos filósofos, cabe decidir.
08. De nossas
experiências de alguma entidade fora de nós, a mais instigante é a que nos
remete ao que comumente tomamos como uma consciência como que distinta da
nossa: o “outro humano” ou, num termo mais breve e corrente nas academias, a
“alteridade”. Contudo, embora a “subjetividade” seja “algo” consolidado, do
ponto de vista teórico – sobremaneira desde a filosofia cartesiana –, a
“intersubjetividade”, tão facilmente propalada em nosso tempo, parece se fazer
alheia aos desafios que lhe foram apresentados pelos escritos de Descartes.
Certamente, não faltaram grandes pensadores que contradisseram o “solipsismo do
eu” cartesiano (como Peter Frederick Strawson, por exemplo, ou, indiretamente,
Ludwig Wittgenstein contra si mesmo), mas o fizeram como que “de fora” das
raias dentro das quais a filosofia de Descartes se elaborou. Neste sentido, os
adeptos da “filosofia da alteridade” ainda se ressentem intimamente da falta de
uma “crítica forte” contra Descartes e a favor da “intersubjetividade”, ou
seja, daquela crítica capaz de “vencer” Descartes por dentro dele mesmo, por
dentro de suas próprias raias, no interior de seus escritos mesmos. Como
escreveu em recente artigo o professor André Constantino Yazbek, da
Universidade Católica de São Paulo, intitulado “O filósofo francês Descartes e
o problema do outro”, “trata-se de uma encruzilhada que assombra a filosofia
desde há muito e que, com efeito, por vezes emerge como o ‘nó górdio’ do
pensamento filosófico moderno e contemporâneo.” (YAZBEK, 2008, 19).
09. Pensando nisso, esbocei, em 1995, no artigo intitulado
“Exercícios sobre o subjetivismo moderno”, um caminho possível para desfazer
este nó cartesiano de incerteza teórica quanto à existência de uma consciência
outra além da que “eu sou” e que foi passada em revista, em 2007, pelo Núcleo
de Pesquisa do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, tendo, sob minha própria
orientação, três discentes do Curso de Filosofia desta mesma Instituição de
Ensino Superior[3], mas que
ainda requer amparo de pesquisa para um aprofundamento ainda mais consistente.
2. Com Descartes, a intuição de uma consciência outra
(...) uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que
afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que
odeia, que quer e que não quer, que também imagina e que sente. Pois, (...),
conquanto as coisas que sinto e imagino não sejam talvez nada fora de mim e
nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar que
chamo sentimentos e imaginações somente na medida em que são maneiras de
pensar, residem e se encontram certamente em mim. (DESCARTES, 1988, 31).
11. Importante
aí notar que as primeiras atividades que Descartes apresenta do que ele toma
como pensamento correspondem à vontade: o ato de duvidar ou de ajuizar (afirmar
ou negar).[4]
Logo após, o filósofo faz menção ao entendimento, mas de modo bastante restrito
(o ato de conhecer poucas coisas, ignorando muitas). Por fim, seguem-se os
sentimentos (relativos às geralmente denominadas “experiências” internas), os
desejos (os atos de querer e de não querer simplesmente – que valeriam um
estudo à parte quanto em que medida distam da vontade que se adianta ao
entendimento), as imaginações e outros sentimentos (estas relativas às
“experiências” como que externas – geralmente tomadas por sensações).
12. Já noutra
parte anterior de suas “Meditações”, Descartes não se faz diferente, mais uma
vez dando primazia à atividade da dúvida, seguida pelo entendimento:
Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. (DESCARTES, 1988, 27).
Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. (DESCARTES, 1988, 27).
13. Além disso,
o deslocamento da atenção do “eu” cartesiano como entendimento para o “eu”
cartesiano como vontade, por mim realizado, é permitido porque a dignidade
humana, segundo o próprio Descartes, não se encontra apenas no entendimento,
rigorosamente detentor do universal, mas também na vontade que, livre (ou seja,
de certa forma “infinita”), nos faz à imagem e semelhança do nosso Criador – a
substância perfeita:
Não posso tampouco me lastimar de que Deus não me tenha dado um livre arbítrio ou uma vontade bastante ampla e perfeita, (...). (...) de todas as outras coisas existentes em mim, não há nenhuma tão perfeita e tão extensa que eu não reconheça efetivamente que ela poderia ser ainda maior e mais perfeita. Pois, por exemplo, se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, eu me represento a idéia de uma outra faculdade muito mais ampla e mesmo infinita; e, pelo simples fato de que me posso representar sua idéia, conheço sem dificuldade que ela pertence à natureza de Deus. (...): de sorte que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e semelhança de Deus. (DESCARTES, 1988, 50).
Não posso tampouco me lastimar de que Deus não me tenha dado um livre arbítrio ou uma vontade bastante ampla e perfeita, (...). (...) de todas as outras coisas existentes em mim, não há nenhuma tão perfeita e tão extensa que eu não reconheça efetivamente que ela poderia ser ainda maior e mais perfeita. Pois, por exemplo, se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, eu me represento a idéia de uma outra faculdade muito mais ampla e mesmo infinita; e, pelo simples fato de que me posso representar sua idéia, conheço sem dificuldade que ela pertence à natureza de Deus. (...): de sorte que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e semelhança de Deus. (DESCARTES, 1988, 50).
14. Disso, em
Descartes, infiro graves conseqüências. Se a atividade do entendimento nos
conduz ao (conhecimento) universal, então, ainda que pressupusermos diferentes
consciências assim em atividade, cada qual se conduziria ao mesmo
independentemente uma da outra e tudo o que alcançaria não lhe seria,
precisamente em virtude de sua universalidade, distintiva dentre as demais. A
atividade da vontade, por seu turno, embora possa se realizar pelo “fácil”
caminho do bem entendido (único verdadeiramente livre para Descartes) ou se
deter na ausência deste (o que corresponderia à dúvida), pode, no entanto, pelo
seu exercício “livre” (em sentido inadequado para Descartes), “errar” por aqui
ou acolá:
Donde nascem, pois, meus erros? A saber, somente de
que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a
contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo;
das quais, sendo a vontade por si só indiferente, ela se perde muito facilmente
e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro. O que faz com que eu me
engane e peque. (DESCARTES,
1988, 51; 1989a, 81).
15. Precisamente
enquanto capacidade de se enganar, o percurso da vontade é múltiplo. E, em
vista das oposições nisto possíveis, a pressuposição agora de diferentes
consciências, permite-nos entrever o confronto de uma com as outras no aceite
de que se faz excludente. Isto significa que agora não “definiria” ou “saberia”
de mim por uma consciência outra, por um outro que me nega, mas,
concomitantemente, saberia do eu (que sou) e do outro (que não sou).[5]
Antes, tomando-me como atividade de entendimento, nada, que não uma consciência
outra enquanto vontade, poderia me confrontar, pois a tese cartesiana de que
vivemos no melhor dos mundos possíveis[6] o
impediria em definitivo, num inextrincável arranjo entre o meu entendimento, o
mundo e Deus, as três substâncias.
3. O pensamento como originalmente entendimento
16. Nenhuma das
obras cartesianas esconde o comprometimento do seu autor com uma instância
pretensamente universal, da qual todas as coisas verdadeiras emanariam. Um só
método para todas as ciências ou as mesmas normas para condução do nosso
pensamento é o confesso objetivo de Descartes, seja em seu “Discurso do
Método”, seja em suas “Regras para a direção do espírito”. Estes, para tanto,
necessitam de raízes metafísicas (como em seu tempo era um imperativo
hegemônico), o que o fez redigir obras como as suas “Meditações sobre a
filosofia primeira” e os seus “Princípios da filosofia”. É a persistência em
tal encalço que impôs a Descartes dar relevo ao pensamento em sua atividade de
entendimento, capacidade de imediatamente conceber ou de intuir evidências
(aquilo que não pode ser pensado de outro modo), que, portanto, só podem ser e
existir assim mesmo como são determinadas.
17. As
evidências do pensamento, então necessárias e universais, destinam-se às
ciências e às suas operações, mas igualmente deveriam ser tomadas pela vontade
humana como guia de quaisquer ações. Mesmo antes de seu método de conduta para
todas as ciências ou regras de conduta para o espírito, Descartes elabora uma “moral”
que, apesar de “provisória” (à espera possivelmente da consolidação de um
método universal, ao crivo do qual também ela deveria ulteriormente ser
submetida – segundo alguns intérpretes da filosofia de Descartes), não perde,
mesmo assim, por boa retórica de seu autor, a intenção de servir a todos os
homens comprometidos não menos que ele com o alcance do universal e
indubitável.
18. Dizemos
isto, a fim de, mais uma vez, realçar e justificar a tendência de Descartes de
sublinhar o pensamento em sua origem lógico-metafísica e existencial como
entendimento, dele distraindo-se como não menos atividade duvidante ou vontade.
Afinal, por aqueles juízos mediante os quais a vontade acompanha as intuições
do entendimento, segue outra intuição, devida ao caráter universal das
primeiras, de que há apenas “um” pensamento, o “meu” pensamento, que não
depende de outro (pois, nesse sentido, não há realmente “outro”). Por
conseguinte, há aqueles que interpretam que o pronome em “‘eu’ penso” é somente
um “acidente gramatical”, porque poderia (e deveria para os apressados adeptos
e defensores da intersubjetividade) ser um “‘nós’ pensamos”. Entrementes, um
“nós” pelo “universal” não teria qualquer força de “diferença”, pela qual a
intersubjetividade, apropriadamente dita, poderia se dar. Seria uma identidade,
uma mesmidade, antes que precisamente “alteridades”. Ademais, como bem notou
Descartes, sei da minha consciência como detentora de um dado por ela mesma
enquanto for ela detentora desse dado: eis originalmente o que tomamos por
“reflexão. Se sei da minha consciência como detentora de um dado (e de um dado
universal por inclusão) – e é precisamente disso e, por princípio, somente
disso que eu não posso duvidar na ordem da atividade que sou e que se exerce
sobre algum dado, não posso, todavia, ter essa mesma intuição de uma
consciência outra (pois já é, em verdade, minha consciência), ainda que, sendo
um dado universal, é um dado para qualquer “outro”. Tanto que, como vimos e
veremos melhor, se o meu ato de duvidar não pode recair sobre a minha
existência enquanto essa atividade duvidante de mim mesmo (e que,
paradoxalmente, me recoloca como evidentemente um ser que é, que existe), esse
mesmo ato meu de duvidar pode recair sobre uma consciência universal outra além
da minha sem “contradição performativa”. Logo, mal sei de uma consciência outra
indiretamente por minha consciência, mas tão somente por “mediação” da minha
consciência ou “analogia” à consciência que sou. Somente a minha consciência me
é autofundante, autônoma e, por fim, existente por si só.
19. Repassando.
Na ordem das minhas “intuições” como atividade do entendimento, somente o
entendimento de mim como entendimento me é diretamente dado. Uma atividade de
entendimento outra só me é dada indiretamente e já por mediação a mim. Com
certeza, pois, só existe em meu entendimento e, assim, é meu entendimento e
não, efetiva e obrigatoriamente, algo distinto de mim ou entendimento operante
verdadeiramente outro. Por esta perspectiva lógico-metafísica, somente existe,
clara e distintamente, um pensamento autobastante em primeira pessoa do
singular. A existência de outra(s) consciência(s), quando muito, nessa mesma
perspectiva, somente se encontra(m) no rol do possível e da qual, portanto,
é-se possível duvidar.
20. Mas – ainda
assim – e se eu estiver enganado em relação a tudo isso? E se o meu
entendimento primeiro for um erro? Eis uma importante autocrítica de Descartes.
Paralelo como esta autocrítica nas filosofias lógico-metafísicas encontra-se no
“Proslógio” de Anselmo de Cantuária, quando, ao tomar a universalidade da
concepção ou pensamento de “o ser do qual não se pode pensar nada maior”,
adverte contra si mesmo e contra toda uma tradição filosófica: “Na verdade,
ter a idéia de um objeto qualquer na inteligência e compreender que existe
realmente são coisas distintas”. A esta surpresa, segue-se outra maior, a
de que, apesar do outrora posto, este pensamento ou concepção – e somente ela –
deve existir inevitavelmente: “Mas ‘o ser do qual não se pode pensar nada
maior’ não pode existir somente na inteligência; se, pois, existisse apenas na
inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente na realidade, e que
seria maior.” (CANTUÁRIA, 1988, 102).
4. Sou uma coisa que duvida – o “eu” como vontade
21. O deslocamento
do “eu” cartesiano como entendimento para o “eu” cartesiano como vontade que a
minha tese promove não se justifica pela simples dupla dignidade humana, pois,
mesmo assim, se Descartes opta por continuar seu itinerário filosófico em
atenção ao “eu” em sua atividade como entendimento, poderia parecer arbitrário
pretender, sem mais, tentar um outro itinerário em atenção ao “eu” em sua
atividade como vontade. Nesse sentido, além da ambigüidade da dignidade humana
antes esboçada, destaco a ambigüidade da própria intuição do “eu” cartesiano,
pois a atividade primeira que se “entende” como eu é, paradoxalmente, uma
atividade “duvidante” [“pensar que tudo era falso” (DESCARTES, 1987a,
46)]. Ora, se há dúvida é porque não há entendimento; se há dúvida, há vontade de
entendimento, pois, como o próprio Descartes escreve, quando a vontade ajuíza
antes do entendimento, erra comumente:
(...), se me abstenho de formular o meu juízo sobre
uma coisa, quando não a concebo com suficiente clareza e distinção, é evidente
que o utilizo muito bem e que não estou enganado; mas se me determino a negá-la
ou a assegurá-la, então me sirvo como devo de meu livre-arbítrio. Se me garanto
o que não é verdadeiro, é evidente que me engano, e até mesmo, ainda que julgue
segundo a verdade, isto não ocorre senão por acaso e eu não deixo de falhar e
de me utilizar mal do meu livre-arbítrio. (DESCARTES, 1988, 52).
22. Ora, a
suspensão do juízo à espera do entendimento é atividade da vontade, a qual
denominamos “duvidar”. Logo, pela
expressão “se duvido, sou” (donde “penso”, logo existo) o entendimento de
existência do eu se infere do ato de nenhum entendimento ainda, mas já de
vontade de entendimento, de “dúvida”: “(...), pelo fato mesmo de eu pensar
em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se mui evidentemente e mui
certamente que eu existia”. (DESCARTES, 1987a, 46). Assim, eu só me entendo
enquanto primeiro entendimento de mim mesmo depois que me entendi como
fundamentalmente “dúvida” ou “vontade”.
23. Não pode a minha vontade, porque livre, ajuizar alheia
ao entendimento? Para desfazer-se de qualquer ilusão, Descartes levanta a
hipótese de um “gênio maligno”, de um artífice que nos engana precisamente
quando intuímos universais como os existentes nos campos da aritmética e da
geometria. Essa hipótese, embora imprescindível à dúvida hiperbólica,
permite-nos, não raras vezes, argumentar a favor da intuição de um “eu” que
“duvida”, que “pensa” ou que “engana-se” de forma muito fraca. É preciso, pois,
compreender que, se Descartes também faz uso dessa forma de argumentação, só o
faz por acréscimo à sua argumentação forte a favor da intuição do “eu” que
necessariamente existe.
24. Há, assim, quem, para evidenciar a existência do cogito
cartesiano, baseado nesse artifício de um “deus” que engana a res cogitans
(e tanto mais quando esta não vê porque duvidar), recorra à construção segundo
a qual “eu existo” enquanto aquele pensamento que é enganado. Ora, esta
construção é a mais imprópria para explicitar a existência irrefutável do cogito
cartesiano, pois o próprio Descartes, no desdobrar de sua filosofia, há de
recusar a existência de um “deus embusteiro” (em verdade, apenas um artifício
para radicalização da dúvida) pela inferência de um “Deus bom e veraz”.
Retroativamente, pois, a negação do “deus enganador” arrasta inevitavelmente
consigo a certeza de existência de um “eu” que é enganado.
25. Há quem, por sua hora, construa a evidência da
existência do cogito cartesiano mais brevemente da seguinte forma: se eu
de tudo duvido, então existo necessariamente como aquele que duvida. Essa
forma, indiscutivelmente melhor do que a anterior, é, todavia, incompleta, não
permitindo prontamente discernir a “‘necessidade lógica’ de existência” entre o
“‘eu’ que come”, por exemplo, e “‘eu’ que duvida” ou mesmo, de
maneira mais refinada, entre o “‘eu’ que entende” e o“‘eu’ que duvida”.
26. No campo lógico-ontológico, estas distinções se fazem
importantíssimas e, não percebê-las, apesar de boa-fé, é índice de que se está
falando de outro “lugar”. Assim sendo o argumento de Descartes incompletamente
formulado, dá margem a alguém confundir a força de existência lógica do “‘eu’
que duvida” com, por exemplo, a do “‘eu’ que come”. Guardadas as
devidas proporções, seria como confundir a necessidade de existência de “o
ser do qual não se pode pensar nada maior”, explicitada por Anselmo de
Cantuária, com uma “ilha perdida” no oceano, como ocorreu fazer um de
seus opositores, chamado Gaunilo. Este parece ter se distraído ao, lendo o
“Proslógio”, passar pelas letras em que Cantuária , ao admitir – contra, aliás, a sua
própria tese – a não identidade entre “ser” (existir) e “pensar”, exceto no
caso – como ele bem o demonstra mais tarde – daquilo que se concebe como sendo
o maior. (CANTUÁRIA, 1988, 129 e passim).
28. É claro que, enquanto eu entendo, posso, então,
entender-me como sendo o que entende. Contudo, nada logicamente me impede de eu
duvidar (ato livre da vontade) disso (de que sou atividade de entendimento),
pois posso estar enganado, malgrado meu. Para evitar tal engano ou outro
qualquer é que se faz importante a dúvida radical. Diferentemente, se eu de
tudo duvido, inclusive disto também (supondo que eu possa estar enganado),
então existo necessariamente como aquele que de tudo duvida (e disto também) e,
assim, por diante. Eis, por fim revelada, a singularidade do “duvidar”: a sua
suficiência existencial.
29. Com ou sem toda e qualquer dúvida, sou, conforme
Descartes, uma atividade duvidante, uma atividade da vontade, precisamente
“onde” não há entendimento. Porque duvido, disso não posso duvidar, ainda que
disto duvide. Fundante do meu eu como res cogitans, é também este
“duvidar” que garantirá a certeza (lógica – “ordem das razões”) da existência
da res infinita[7]
que, como substância, é, no entanto (“ontologicamente – ordem das coisas”),
distinta de mim e “anterior” a mim.[8]
Ressaltamos isso aqui, não porque nos convém tratar de Deus, mas somente para
mostrar, mais uma vez e de outro modo também, o importantíssimo papel que o “cogito”,
como “eu duvido”, exerce, de modo insubstituível, dentro do pensamento
cartesiano.
30. Eis as
palavras com as quais Descartes inaugura as suas “Meditações sobre a filosofia
primeira”:
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus
primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que
aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser
senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário seriamente, uma vez
em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e
começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de
firme e constante nas ciências. (DESCARTES, 1988, 17).
31.
Comparemo-las às últimas palavras de Descartes em sua mesma obra:
(...) como a necessidade dos afazeres nos obriga
amiúde a nos determinar antes que tenhamos tido o lazer de examiná-las tão
cuidadosamente, é preciso confessar que a vida do homem está sujeita a falhar
muito freqüentemente nas coisas particulares; e, enfim, é preciso reconhecer a
imperfeição e a fraqueza de nossa natureza. (DESCARTES, 1988, 74).
32. O próprio
solipsismo, fruto de uma atenção pouco ordinária, pode parecer, aos que ignoram
ou se fazem avessos a tal atenção característica do filosofar, uma simples “tentação
dos filósofos” e contra-intuitiva. O próprio Ludwig Wittgenstein, entre a
escalada por sua “escada” filosófica e o cotidiano do “mundo da vida”,
respectivamente transitará entre a admissão séria do solipsismo e a sua recusa.
33. De qualquer
modo, as “Meditações sobre a filosofia primeira” de Descartes, em suas palavras
iniciais e finais, parecem ensinar a nós todos o que Émile Durkheim, muito
posteriormente, também resumiu nestes seus termos: “A ciência é fragmentária, incompleta; avança
muito lentamente e jamais está concluída; mas a vida não pode esperar.” (DURKHEIM, 1989, 509).
34. Assim
tomado, o “eu” parece estar fadado a mais erros do que acertos. Esta assertiva
pode parecer marginal em Descartes, pois suas obras, como já o dissemos, estão
estreitamente comprometidas com o edifício de uma ciência segura. No entanto,
já o seu próprio método (universal) deixa entrever o quanto mais provável é o
erro do que a certeza, pois, das suas quatro regras, as três últimas são um
esforço no sentido de se assegurar a evidência, conteúdo da sua primeira regra
– regra, a bem da verdade, a qual todas as demais se reduzem. Nesse sentido, o
método é um amparo à vontade, à nossa capacidade de julgar, a fim de que
evitemos os enganos aos quais estamos tão propensos.
35. Redige
Descartes: “(...) experimento em mim mesmo certa capacidade de julgar (...),
(...) que não poderei jamais falhar, quando usar como é necessário.” (Grifo
meu), (DESCARTES, 1988, 47-48). O método cartesiano não é senão um esforço de
nos criar o hábito de manter os nossos “livres” juízos ou assentimentos da
vontade nos limites do entendimento, pois, como admite numa de suas cartas para
Mersenne, os nossos enganos não advêm apenas de uma vontade que, na ausência de
entendimento, ajuíza mesmo assim, mas também “(...) somos sempre livres de
deixar de perseguir um bem que nos é claramente conhecido ou de adquirir uma
verdade evidente”[9]
36. “Dúvida” ou
“engano”, ambos são atividades da vontade no pensamento de Descartes. Contudo,
metodologicamente, fica claro que a primeira tem preferência sob a segunda,
pois duvidar significa abster-se de “formular um juízo” na falta do
entendimento: “Ora, se me abstenho de formular meu juízo sobre uma coisa,
quando não a concebo com suficiente clareza e distinção, é evidente que o
utilizo muito bem e que não estou enganado.” (Grifo meu). Existencialmente,
tais atividades se equivalem, pois o erro (ou o engano) “é uma privação de
algum conhecimento que parece que eu deveria possuir” (DESCARTES, 1988, 48)
– o que coloca Descartes, mais uma vez, na esteira de Agostinho, quando este
assim propôs contra o ceticismo da transição da Antigüidade para o Medievo:
Tais verdades desafiam todos os argumentos dos acadêmicos, que dizem: Quê? E se te enganas? Pois, se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se; por isso, se me engano, existo. Logo, se existo, se me engano, como me engano, crendo que existo, quando é certo que existo, se me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, no que conheço que existo, não me engano. Segue-se também que, no que conheço que me conheço, não me engano. (AGOSTINHO, 1990, 47).
Tais verdades desafiam todos os argumentos dos acadêmicos, que dizem: Quê? E se te enganas? Pois, se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se; por isso, se me engano, existo. Logo, se existo, se me engano, como me engano, crendo que existo, quando é certo que existo, se me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, no que conheço que existo, não me engano. Segue-se também que, no que conheço que me conheço, não me engano. (AGOSTINHO, 1990, 47).
38. Não obstante
superar esta condição ao erro seja o intento da ciência cartesiana, demorar-se
nesse cogito “errante” permite-nos inferências muito interessantes. A
que ora nos interessa – e que julgamos a de maior quilate – é a que instaura um
cogito outro, uma consciência autônoma à minha própria consciência, a
“alteridade” na ordem da minha própria substância.
39. Seguindo a
tradicional ênfase da atividade pensante na filosofia de Descartes – o
entendimento –, a possibilidade de outras consciências humanas – pela analogia
de Descartes ao seu “chapéu e sobretudo” (DESCARTES, 1988, 29) –, conduz-nos a
vetores paralelos que jamais se entrecruzariam, pois cada entendimento teria a
capacidade por si mesma de se conduzir às universais intuições claras e
distintas.
IDÉIAS
UNIVERSAIS
|
||||
↑
|
↑
|
↑
|
||
(...)
|
Ct
|
Cj
|
Ce
|
(...)
|
40. Enfatizando,
por sua vez, a atividade pensante como vontade – e vontade em sua condução
ordinária, ou seja, “errante” (se não espera por entendimento do que ajuíza) ou
“caprichosa” (se ajuíza diferentemente do entendimento) –, a difusão de vetores
de cada consciência humana, da qual analogicamente Descartes suspeita, há de
levar, em toda a sua infinita extensão, inevitavelmente ao seu entrecruzamento
com vontade adversa em todas as oposições possíveis.
↑
|
↑
|
↑
|
||||||
←
|
Ct
|
→
|
←
|
Cj
|
→
|
←
|
Ce
|
→
|
↓
|
↓
|
↓
|
41. Se posso, pois, dispor do mundo à medida em que eu o
conheço e nele intervenho pelo uso de um método seguro que combina a minha
vontade com o meu entendimento, o que, conforme Descartes, há de “nos tornar
como que senhores e possuidores da natureza” (DESCARTES, 1987a, 63), então
não há oposição real entre elas, como a própria concepção de “substância”, que
lhes assiste, já também deveria assegurar: veja toda a dificuldade de
Descartes, por isso mesmo, em sua tentativa de explicar à rainha Elizabeth,
sobretudo em sua obra denominada “As paixões da alma” (DESCARTES, 1987b,
73-154), como pode a alma ressentir-se do corpo e vice-versa.[10]
Ora, tal projeção de disponibilidade se faz então impossível a mim
relativamente ao espectro arbitrário da vontade “errante” que contraria a minha
própria vontade e que é, portanto e indubitavelmente, outra. Aliás, algum constrangimento
à minha consciência só poderia advir na ordem dessa minha mesma substância, ou
seja, como “res cogitans”.
42. Este constrangimento à minha vontade (atenta ou
não ao meu entendimento) não deve ser confundido com a coerção afim às
minhas “experiências externas”, expressas por Descartes, por exemplo, nos
seguintes termos:
(...) eu experimentava que elas [as coisas] se apresentavam ao meu pensamento sem que meu consentimento fosse requerido para tanto, de sorte que não podia sentir objeto algum, por mais vontade que tivesse, se ele não se encontrasse presente ao órgão de um de meus sentidos; e não estava de maneira alguma em meu poder não o sentir quando ele aí estivesse presente. (DESCARTES, 1988, 64).
(...) eu experimentava que elas [as coisas] se apresentavam ao meu pensamento sem que meu consentimento fosse requerido para tanto, de sorte que não podia sentir objeto algum, por mais vontade que tivesse, se ele não se encontrasse presente ao órgão de um de meus sentidos; e não estava de maneira alguma em meu poder não o sentir quando ele aí estivesse presente. (DESCARTES, 1988, 64).
43. É imprescindível que se perceba que o que acontece,
malgrado meu, em virtude de uma vontade outra, não se dá em mim passivamente
como no caso dessas sensações, que Descartes considerou possível por alguma
faculdade em mim ainda desconhecida (DESCARTES, 1988, 64) – consideração
certamente muito fraca como contra-argumentação –, mas se dá a mim ativamente,
por ato que escapa ao meu entendimento atual e de sempre, visto advinda de
vontade arbitrária que não a minha mesma. Não está este ato na ordem de uma
simples sensação em mim, contra a qual eu apresento a minha vontade, mas na
ordem de um “não sei o que” que se apresenta a mim contra a minha vontade.
44. Ademais, ao cabo de sua “Meditação sexta” e última –
após considerar, mais amiúde, da perfeição de Deus, a criação por este do
melhor dos mundos possíveis (no qual o seu mínimo mal ainda é aquele que
concorre para um bem maior) –, assevera Descartes:
(...) essa consideração me serve muito, não somente para reconhecer todos os erros a que minha natureza está sujeita, mas também para evitá-los ou para corrigi-los mais facilmente: pois, (...) podendo usar (...) meu entendimento, que já descobriu todas as causas dos meus erros, não devo temer doravante que se encontre falsidade nas coisas que me são mais ordinariamente representadas pelos meus sentidos. (DESCARTES, 1988, 73-74).
(...) essa consideração me serve muito, não somente para reconhecer todos os erros a que minha natureza está sujeita, mas também para evitá-los ou para corrigi-los mais facilmente: pois, (...) podendo usar (...) meu entendimento, que já descobriu todas as causas dos meus erros, não devo temer doravante que se encontre falsidade nas coisas que me são mais ordinariamente representadas pelos meus sentidos. (DESCARTES, 1988, 73-74).
45. Referindo-se
a esta parte, comenta Gérard Lebrun, corroborando tal parecer: “o mundo é
restabelecido na sua verdade: dispomos dos meios para evitar o máximo o erro”
(DESCARTES, 1988, 74). Ora, se um Deus “bom e veraz”, “o melhor dos mundos
possíveis” e um “método” que realiza uma vontade nos limites do entendimento
superam-nos a coerção instaurada entre os sentidos e a vontade, não pode
superar, contudo, o constrangimento entre uma vontade “errante” ou
“caprichosa” e a minha vontade, seja esta igualmente “errante”, seja ela para
dentro dos limites seguros do meu entendimento.
46. Diante
disso, portanto, só nos cabe frisar que, pela radicalização da mente como
capacidade de entendimento, a “coerção” do mundo sensível tende a desaparecer,
enquanto que, pela radicalização da mente como capacidade volitiva, o
“constrangimento” da mente “errante” ou “caprichosa” não pode deixar de
ocorrer. Nisto reside, em nosso tempo, o valor da minha tese, da qual fizemos
tema deste artigo, pois como recentemente publicou Thomas Nagel,
há um tipo especial de ceticismo que continua a ser um problema mesmo que você admita que sua mente não é a única coisa que existe – que o mundo físico que você aparentemente vê e sente ao seu redor, até mesmo seu próprio corpo, de fato existe. Trata-se do ceticismo quanto à natureza ou mesmo quanto à existência de outras mentes ou experiências além da sua. (NAGEL, 2007, 19).
há um tipo especial de ceticismo que continua a ser um problema mesmo que você admita que sua mente não é a única coisa que existe – que o mundo físico que você aparentemente vê e sente ao seu redor, até mesmo seu próprio corpo, de fato existe. Trata-se do ceticismo quanto à natureza ou mesmo quanto à existência de outras mentes ou experiências além da sua. (NAGEL, 2007, 19).
47. Finalmente,
sendo mesmo assim de tudo o que pudemos averiguar de escritos de René
Descartes, ratifico a tese, que, pela primeira vez, esbocei no meu artigo
“Exercícios sobre o subjetivismo moderno”, de que há uma perspectiva na obra
cartesiana que, estendida, leva-nos a admitir a existência de um pensamento
outro além do meu – o que importa, por conseguinte, na superação teórica,
dentro dos próprios espaços dessa obra, de uma de suas extrações mais marcantes
(pelo seu rigor lógico-metafísico e, ao mesmo tempo, pelo mal-estar que
comumente provoca), qual seja, a da redução de toda dita “realidade” à mais
completa solidão de minha própria existência.
[1] Na
íntegra, são as seguintes questões apresentadas por este autor, literalmente: “Qual
a natureza dos estados mentais? Como eles se relacionam com o cérebro? São os
estados mentais estritamente biológicos, ou computadores seriam em princípio
também capazes de tê-los? Havendo um eu unificador dos estados mentais,
em que ele consiste? Como conhecemos os nossos estados mentais e os de outras
pessoas? (...): o que é uma pessoa? Quando dizemos que uma pessoa é a mesma?
(...): qual é a natureza e estrutura da ação humana? (COSTA, 2005, 8 e 9).
[2]
Antes, escreveu Descartes mais demoradamente: “Haverá, (...), (...) [o] que
se possa dizer que existe separado de mim mesmo? Pois é por si tão evidente que
sou eu quem duvida, quem entende e quem deseja que não é necessário nada
acrescentar aqui para explicá-lo. E tenho também o poder de imaginar; pois
ainda que possa ocorrer (...) que as coisas que imagino não sejam verdadeiras,
este poder de imaginar não deixa, no entanto, de existir realmente em mim e faz
parte de meu pensamento. Enfim, sou eu mesmo que sente, (...). Mas dir-me-ão
que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja; todavia, ao
menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço; e é
propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim
precisamente, nada é senão pensar.” (DESCARTES. 1988, 31).
[3]
Fábio Rodrigues Milioni, James Jesuíno de Souza e Thiago Marques Lopes são os
nomes dos alunos pesquisadores. Como co-orientador, inscreve-se o professor
Miguel Ângelo Guimarães Juliano. O orientador, professor Rodrigo Alvim, também
se fez relator desse trabalho, conforme já se encontrava anunciado no projeto
de pesquisa afim. Acompanhou informalmente tal trabalho o aluno Guilherme
Delmonte, do Curso de Psicologia do CES-JF.
[4]
Quanto às atribuições do entendimento, esclarece-nos Descartes que “só pelo
entendimento, não asseguro nem nego coisa alguma, mas apenas concebo as idéias
das coisas que posso assegurar ou negar.” (DESCARTES, 1988, 49). Já a
vontade “consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer
(isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou antes, somente em que, para
afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe,
(...).” (DESCARTES, 1988, 50). Melhor: “Todas as maneiras de pensar que
experimentamos em nós podem reduzir-se a duas gerais. Consiste uma em apreender
pelo entendimento e a outra em determinar-se pela vontade. Assim, sentir,
imaginar e mesmo conceber coisas puramente inteligíveis são formas diferentes
de apreender; mas desejar, ter aversão, confirmar, negar, duvidar são formas
diferentes de querer.” (DESCARTES, 1989a, 79).
[5]
Esta foi uma das grandes questões da qual Johann Gottlieb Fichte, ao seu modo
próprio, cuidou, sobremaneira em seus “Princípios de toda a doutrina da
ciência”, no terceiro princípio, de um modo particular, e no seu “O princípio
da doutrina da ciência” (Ver, respéctivamente: FICHTE, Johann Gottlieb. A
doutrina da ciência de 1794 / O princípio da doutrina da ciência. Tradução
de J. Rubens Rodrigues Torres Filho. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p.
52-62 / 177-185. (Coleção Os pensadores: Fichte).
[6] Relativamente
a isto, escreve-nos Descartes: “(...) não devemos considerar uma única
criatura separadamente, quando pesquisamos se as obras de Deus são perfeitas,
mas de uma maneira geral todas as coisas em conjunto. Pois a
mesma coisa que poderia talvez, com alguma forma de razão, parecer muito
imperfeita, caso estivesse inteiramente só, apresenta-se muito perfeita em sua
natureza, caso seja encarada como parte de todo este Universo.” (DESCARTES,
1988, 49).
[7]
Escreve Descartes: “(...) quando considero que duvido, isto é, que sou uma
coisa incompleta e dependente, a idéia de um ser completo e independente, ou
seja, de Deus, apresenta-se a meu espírito com igual clareza e distinção.”
(DESCARTES, 1988, 47).
[8]
Cf. DESCARTES, 1988, 47, em nota 97 do tradutor, observação que se faz a partir
da obra: GUÉROULD, Martial. Descartes selon lórdre des raisons. Paris: Aubier, 1950. 2 v.
[9]
DESCARTES, 1988, 51, em nota 118 do tradutor.
[10]
Nessa perspectiva, a proposta de Nicolas Malebranche para resolver o problema
do dualismo cartesiano, conhecida pelo nome “ocasionalismo”, apesar de
fantástica, parece melhor respeitar, no sentido de se evitar qualquer
intercâmbio entre a alma e o corpo, as primeiras disposições do pensamento do
próprio Descartes, desde, por exemplo, o seu “Tratado do homem”, quando,
claramente, desde o seu primeiro parágrafo, considera aí o homem apenas em sua
condição corpórea, isto é, como uma “máquina”, como um “autômato”, e não em sua
condição atual (alma/corpo) ou em sua essência (alma): “Este homens serão
como nós, compostos de uma alma e de um corpo. E é necessário que eu descreva,
primeiro, o corpo, separadamente, e depois a alma, também separadamente. Enfim,
será necessário que eu mostre como estas duas naturezas devem estar unidas para
compor os homens que se assemelham a nós.” (DESCARTES, 1993, 139). O
segundo e terceiro momentos deste seu plano de estudo, apesar de anunciadas aí,
não se encontram no “Tratado do homem”.
Referência bibliográfica
Referência bibliográfica
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DESCARTES, René. (1987a). Discurso do método. Prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 4. ed. Nova Cultural. p. 73-154 p. (Coleção Os pensadores: Descartes I).
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