01. Há quem leia a Bíblia porque acredita que ela seja
palavras divinas reveladas ou inspiradas aos homens. Há quem leia a Bíblia
porque simplesmente a compreende como uma junção dos mais influentes livros da
práxis ocidental, ou seja, do nosso modo de pensar e agir interagidos, um
patrimônio capaz, portanto, de, em larga medida, nos permitir compreender a nós
mesmos, que nascemos nesta parte do mundo, ou de nos fazer melhor compreender
por aqueles que nasceram em outro contexto. Sempre perde, portanto, a meu ver,
quem não lê essa obra, antes para se compreender a si próprio ou a outrem, do
que para já criticá-la, sobretudo relativamente ao seu caráter divino ou não.
02. Quem, por exemplo, pode considerar desinteressante a parábola,
de autoria atribuída a Jesus, denominada “O
filho pródigo”? Ousaria dizer que ela é expressão de algo mais fundamental
em todo ser humano, ao modo de “Édipo”
para os psicanalistas. Mas como psicanalista não sou, tenho que voltar mesmo ao
meu lugar de curioso.
03. Assim está escrito no Evangelho de Lucas:
“Um homem tinha dois
filhos. O mais jovem disse ao pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe”.
E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, ajuntando todos os seus
haveres, o filho mais jovem partiu para uma região longínqua e ali dissipou sua
herança numa vida devassa. E gastou tudo. Sobreveio àquela região uma grande
fome e ele começou a passar privações. Foi, então, empregar-se com um dos
homens daquela região, que o mandou para seus campos cuidar dos porcos. Ele
queria matar a fome com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
E, caindo em si, disse: ‘Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, e
eu aqui, morrendo de fome! Vou-me embora, procurar o meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei
contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me
como um dos teus empregados’. Partiu, então, e foi ao encontro de seu pai.
Ele estava ainda ao
longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao
pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho, então, disse-lhe: ‘Pai, pequei contra o
céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho’. Mas o pai disse
aos seus servos: ‘Ide, depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe
um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos
e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido
e foi reencontrado!’ E começaram a festejar.
Seu filho mais velho
estava no campo. Quando voltava, já perto de casa ouviu músicas e danças.
Chamando um servo, perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este lhe disse: ‘É
teu irmão que voltou e teu pai matou o novilho cevado, porque o recuperou com
saúde’. Então ele ficou com muita raiva e não queria entrar. Seu pai saiu para
suplicar-lhe. Ele, porém, respondeu a seu pai: ‘Há anos que eu te sirvo, e
jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para
eu festejar com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho, que devorou seus
bens com prostitutas, e para ele matas o novilho cevado’. Mas o pai lhe disse:
‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso que
festejássemos e alegrássemos, pois esse teu irmão estava morto e tornou a
viver; ele estava perdido e foi reencontrado!’”
04. Surpreende-me todo o movimento dialético presente nesse
texto, antes mesmo que tal movimento se tornasse notório, como aconteceu
somente, ao nascer da contemporaneidade, com a filosofia de Hegel. Lembremos
que esse mesmo movimento, embora primeiramente destacado por Heráclito na
antiguidade grega, fora como tal esquecido ou tomou a forma de uma “lógica da
aparência” (entendendo a “aparência” como algo desprezível ao verdadeiro
imutável), como apenas um jogo de palavras sem compromisso com a essência universal.
05. Aplicado à Antropologia – ou não é o que tomamos como
maioridade de um homem seu “sair de casa”? –, esse movimento tem por afirmação
o estar aí onde nasceu e ser, em geral, como aqueles pelos quais se foi gestado,
centelha de um mesmo fogo, da mesma lareira, do mesmo lar, “um de casa”. Aí
recebe um nome e se compartilha de um mesmo sobrenome, sua identidade original,
tentativa por imitação. Mas tal identidade também se esclarece melhor pelo que
lhe é oposto, por uma oposição, que, no entanto, se abre como opção, que, por
sua vez, e não menos entanto, já implica um lançar-se à novidade: quando se vê,
já se transita entre o interior e o lá fora de casa. Nesta crise, pensa-se que
ou se fica ou se vai. Alguns se iludem em ficar; outros em sair. Ilusão porque
nada mais é como antes, porém nunca se consegue radicalmente esquecer-se de
casa: uma síntese, uma nova casa, na qual nascerão novas e mesmas gentes.
06. O pai, personagem desse “mito”, “O filho pródigo”
(e mito, para mim, não é algo mentiroso ou ilusório, mas, muito pelo contrário,
é um modo possível de se compreender e expressar o que nos acontece), é como
que a dialética que já se sabe. Seu filho mais velho, ao contrário, é a
personificação de uma espécie de pensamento binário e fixo ora num ora noutro
de seus pólos (mas – pensa-se – jamais em ambos, como isso lhe seria possível?),
que, se não pode evitar o movimento, despreza-o como perturbador da ordem, pois
“é fiel” e “temerário” como “as pedras imóveis na praia” (bela figura de Raul
Seixas): contrapondo-se a todo movimento do mar, as pedras! Também elas se
movem, sem assim se perceberem a si próprias – e confirmam, também elas, o que
pretendem negar: a dialética geral.
08. O pai é a dialética que já se sabe – como disse antes.
Por isso, espera pela volta do filho que se foi. Ele, o pai (mas
que um dia era somente filho), certamente com os olhos sempre postos no
horizonte, reconhece o filho ainda ao longe. Esse filho é, por sua vez, a
dialética que se faz. É pelo filho mais novo que a novidade se
faz – e novidade é movimento. Mas, no ápice da contradição dialética, a novidade
tem consigo o mesmo de uma repetição (é repetição que abriga o novo
e a mesmidade). A dialética do filho novo já está presente no velho pai
que, por isso, o espera todos os dias. A volta é o movimento para o mesmo
lugar, é “re-torno”. Mas o mesmo, nunca é o mesmo (entendam-me como a um
dialético): há um mesmo antes da partida, um mesmo durante a partida, um mesmo
depois da volta. Logo, posso dizer que a lógica binária não é simplesmente um
erro, mas seu erro é não se perceber apenas possível no trato de um momento que
se quer analisar como único (um interessante e até importante exercício na
circunscrição ficcional de um momento tomado como um todo).
QUERIDO PROF. RODRIGO,
ResponderExcluirCOMO SEMPRE SUAS EXPLICAÇÕES E ARTIGOS TEM UMA FORMA DIFERENCIADA DE SE CONDUZIR UM ASSUNTO!
LINDA HISTÓRIA!
UM GRANDE ABRAÇO!
Eis aqui, neste texto XXVIII, uma verdadeira e grande exegese. Seu texto, Rodrigo, se abre como uma janela cheia de luz e de possibilidades. Após a leitura, fiquei muito tempo contemplando suas palavras e as de Deus, as de Jesus. Um texto bom é sempre aquele que nos remete a outro, que nos faz pensar diferente, que nos abre horizontes. Eis aqui, neste texto XXVIII, uma verdadeira e grande exegese. Grande porque alarga, ilumina e seduz; verdadeira porque lê a Bíblia “para se compreender a si próprio ou a outrem”. Também não me aventuro pela psicanálise, mas Lacan diria que o filho mais novo matou o pai porque pediu a herança com este em vida. Sair de casa, eis um grande paradigma, uma grande metáfora, um grande problema, um inominado conflito. Lançar-se ao mundo, sendo que o retorno jamais trará de volta o mesmo que se foi. O conflito: se alguém sai, alguém fica. Se alguém se foi, outro ficou para trás. Desde o ventre, desde o berço tem sido assim. Imobilidade, por contraste, como bem lembrado no poema de Raul, não significa apenas um estacionar-se, porque mesmo estando parado uma opção já se fez. Nesse poema, gosto ainda de outra frase: “ninguém neste mundo é feliz tendo amado uma vez.” Conflito, retorno. O filho que fica não reconhece a casa (home), precisaria se distanciar dela (house), como o mais novo. O vocabulário revela muita coisa, ele diz: “esse teu filho”, mas o pai corrige: “filho, esse é teu irmão”. Abraços!
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