01. Por ocasião da Páscoa
do ano de 2006, os alunos representantes dos Diretórios Acadêmicos dos Cursos
de Filosofia e Teologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES-JF –
me pediram algumas palavras escritas para que pudessem ser publicadas num
informativo, chamado “Anônimo”, pelo qual eram eles responsáveis. Assim, ao
segundo número do primeiro ano deste informativo, que tinha por tema a
“renovação”, apresentei o seguinte texto:
“Instaurare omnia in Christo”
(01).
Se fôssemos completamente presos à “terra” (1), nem mesmo disto teríamos “consciência”, pois desta a “distância” é uma das
características básicas (2). Se fôssemos completamente presos à “terra”, não poderíamos “nos ultrapassar” (3)... Ora, vemo-nos “diante” do mundo, embora nele estejamos mergulhados; vemo-nos
“diante” de nós próprios, embora sejamos nós próprios... Logo, como seres
conscientes de si e do mundo, ultrapassamo-nos a todo instante (4).
(02).
Os antigos gregos assim se compreenderam: animais em posse do “fogo” dos deuses
e, por isto mesmo, nem mais totalmente animais, nem totalmente deuses, nem
metade animais e metade deuses, mas um terceiro: homens (5)!
(03).
A tradição judaico-cristã foi mais direta: somos à imagem e semelhança de Deus (6).
(04).
Por não estarmos completamente presos à “terra”, esta “distância” nos faz para
nós próprios e, portanto, livres – livres inclusive para nos entregarmos
completamente à “terra”. Logo, se assim é, quem “responde” por nossa “entrega”
somos nós mesmos.
(05).
Livres e conseqüentemente responsáveis, podemos conscientemente mudar a nós
próprios. Entretanto, quem muda a si mesmo conscientemente se reconhece naquilo
que antes fora e, por conseguinte, continua sendo, em alguma medida, o que
outrora se fora. Somos, pois, um rastro, um “superar-conservando”, uma
“suprassunção” por excelência (7).
(06).
Quanto a nós, cristãos, penso que não devo perder a memória do “homem
velho”, a fim de exaltar a atualidade do “homem novo” (8), que é antes “re-nascendo” que prontamente nascido. E, com os meus irmãos de fé,
eu guardo a íntima esperança de que a nossa renovação em Cristo, numa Páscoa
tão infinita quanto Deus, possa contagiar e renovar a “terra”.
(1) Alusão a Friedrich
Nietzsche.
(2) Gerd Bornheim e outros.
(3) Friedrich Nietzsche em
questão.
(4) Dinâmica da vida humana.
(5) Por exemplo, o mito de
Sísifo ou de Prometeu.
(6) Imago Dei, Gn 1,
27.
(7) Antropologia dialética.
(8)
Alusão a Paulo de Tarso, Col 3, 9-11.
02. Dias subsequentes à Semana da Páscoa, obtive um dos exemplares do
informativo no qual estava publicado este meu pequeno escrito, quando saía de um dos
campi do CES-JF, Instituição na qual trabalhei como professor de
disciplinas filosóficas, dentre as quais encontrava-se a “Lógica”. Carreguei-o
comigo.
03. Já noutro momento, estando eu a aguardar, dentro de sala de aula, que
os meus alunos terminassem a resolução de alguns exercícios pertinentes à
disciplina anteriormente citada, resolvi tomar algo para ler. Como não trouxera
nada comigo, senão aquele exemplar do informativo “Anônimo”, acabei lendo-o
mais uma vez e mais outra e mais outra.
04. De repente, percebi que
já estava eu perscrutando a estrutura lógica do meu texto acima exposto,
apesar de sua simplicidade, ou, de outra forma, analisando o encadeamento de
pensamento que possivelmente fiz ao constituí-lo. Tal “distração” que encontrei
redundou nas considerações que agora passo a apresentar e que, no meu juízo,
parecem-me oportuno a quem já leu os Textos VII, VIII e XVIII (que se encontram dentro da
Categoria “Lógica” deste Blog), os
quais apresentam rudimentos da lógica aristotélica e simbólica,
respectivamente. Como temos aí apenas rudimentos lógicos, a análise aqui é também, para uma compreensão possível, bastante rudimentar, mas já permite que se entreveja, com tão pouco, o uso de elementos lógicos para análise ou construção do discurso.
05. Ademais, não poderia eu
perder tais condições para isto, porque constantemente relembro aos meus alunos
que todos sempre fizeram e fazem uso do que fundamentalmente importa à “Lógica” filosófica, que, enquanto tal, é apenas a chance que encontramos de pensar sobre
como sempre pensamos, ou seja, de explicitar o que sorrateiramente sempre nos
acompanhou em nossas conversas, seja em nossas discussões familiares, em nossos
debates em mesa de bar, em nossas queixas às autoridades públicas, etc. Do
mesmo modo, quando escrevi o meu pequeno texto em questão, não o fiz por uma
explícita análise lógica, mas como algo que me pareceu livre e espontaneamente
coerente. Contudo, o que posso agora constatar é que tal coerência se deu e se
mantém tanto mais o que eu disse ou escrevi coincidiu e coincide com os
limites, com a estrutura ou com os princípios e as normas da minha própria
razão (ainda que nem tudo se reduza tão-somente a isto). Por conseguinte, se
bem argumentar faz parte do ofício do filósofo, redigir dominando os recursos
lógicos é imprescindível à formação do estudante de filosofia e de todo
acadêmico.
06. O título do texto é um
imperativo e, como tal, pretende incitar o leitor a uma determinada ação:
instaurar, restaurar, renovar “tudo” ou “todas as coisas” à luz da mensagem de
Cristo (o “Filho de Deus” e o próprio Deus aos por isto mesmo denominados
cristãos). Por “todas as coisas” toma-se “o mundo no qual vivemos”, que, no
entanto, para o cristianismo, não é tudo, pois esta religião professa entidades
transcendentes ao “mundo no qual vivemos” e existência após morte para o homem.
“Todas as coisas” e “mundo no qual vivemos” também são chamados, no texto, de
“terra”. Tudo isto está subentendido no texto desde o seu título e pelo público
ao qual ele se dirige. Clamar que “todas as coisas” sejam renovadas à luz da
mensagem de Cristo significa aceitar que elas assim não se encontram e,
portanto, que “todas as coisas” e a mensagem de Cristo se distinguem. Mas
significa, ao mesmo tempo, que “todas as coisas” podem se conformar à mensagem
de Cristo por obra daqueles a quem o imperativo se dirige, ou seja, por obra
dos cristãos, destinatários do texto. Para isto, não podem os homens serem
apenas um produto do meio em que vivem, do “mundo no qual vivemos”, da “terra”.
Esta disjunção pode ser assim representada:
p – A “terra” é passível de
ser renovada à luz da “Boa Nova” cristã.
q – Todos nós somos
completamente determinados (“presos”) pela “terra”.
p w q [Ou a
terra é passível de ser renovada à luz da “Boa Nova” cristã ou todos nós
somos completamente determinados (“presos”) pela “terra”].
07. Como o texto tem por seu título o imperativo “Instaurare omnia in
Christo”, estará obviamente na sustentação da proposição p pela negação da proposição q:
p w q
~ q
-------------------------
:. p
08. Neste sentido, a tese que o texto pretende defender é a de que nós
não somos completamente presos à “terra”, pois, como observamos no seu
decorrer,
~ q g p (Se nós não somos completamente presos à “terra”,
então a “terra” é passível de ser renovada à luz da “Boa Nova” cristã).
~ q g p
~ q
-------------------------
:. p
09. Por força disto, o primeiro parágrafo do texto se configura a partir
da elaboração de uma argumentação que possa ter como sua conclusão necessária a
proposição de que nós não somos completamente presos à “terra”.
Largamente, isto ocorreu desta maneira:
Todo completamente preso à “terra” não é capaz de ultrapassar
a “terra”.
Ora, (todos) nós somos capazes de ultrapassar a “terra”.
Logo, (todos) nós não somos completamente presos à “terra”.
10. Este argumento é válido: 1) possui três termos: um maior (“o
completamente preso à ‘terra’”), um médio (“o capaz de ultrapassar a ‘terra’”)
e um menor (nós); 2) os termos da conclusão não têm extensão maior do que eles
mesmos nas premissas (o sujeito da conclusão é universal e se encontra com
igual extensão como sujeito da premissa menor; o predicado da conclusão,
encontrando-se numa proposição negativa, é universal e se encontra com igual
extensão como sujeito da premissa maior); 3) o termo médio não entra na
conclusão (para exercer o seu papel mediador, este termo se encontra devidamente
presente em ambas as premissas); 4) o termo médio é universal ao menos uma vez
(apesar de sua extensão particular na premissa menor, ele se faz universal na
premissa maior); 5) de duas premissas negativas, nada se conclui (somente a
premissa maior se faz negativa); 6) de duas premissas afirmativas, não pode
haver conclusão negativa (não obstante a conclusão seja negativa e a premissa
menor seja afirmativa, a premissa maior é negativa); 7) a conclusão segue
sempre a premissa mais fraca (do ponto de vista quantitativo, a conclusão é
universal, mas do mesmo modo o são as premissas das quais ela se infere; do
ponto de vista qualitativo, da premissa maior negativa e da premissa menor
afirmativa, a conclusão é negativa, seguindo, pois, a qualidade mais fraca da
premissa maior); 8) de duas premissas particulares, nada se conclui (não é o
caso deste argumento, formado por duas premissas universais).
11. Apesar de válido, este argumento não é “perfeito”, ou seja, ele é
“inteligível”, mas não o mais claramente inteligível. De outra forma, embora
tal argumento respeite as regras lógicas acima, o lugar do termo médio (M) na
premissa maior faz com que ele contrarie a sua extensão comparativamente à
extensão do termo maior (T), pois este como sujeito e o termo médio como
predicado faz com que o termo maior seja considerado menor que o termo médio:
Sujeito
|
<
|
Predicado
|
||
Premissa
maior:
Premissa
menor:
Conclusão:
|
T
t
t
|
<
<
<
|
M
M
T
|
← Termo maior (T)
menor que o
termo médio (M)
|
12. Neste caso, pode-se apenas fazer a conversão simples dos termos da premissa maior, uma vez que esta é uma proposição universal negativa. Recorrendo ao atalho medieval, trata-se do modo CES/A/RE de 2ª Figura (imperfeita) que deverá ser reduzida ao modo CE/LA/RENT de 1ª Figura (perfeita). Desta maneira, obteremos o argumento abaixo:
Todo capaz de ultrapassar a “terra” não é completamente preso
à “terra”.
Ora, (todos) nós somos atos ultrapassantes.
Logo, (todos) nós não somos completamente presos à “terra”.
13. Em seguida, dos fundamentos da tese, tem-se a expectativa de que
alguém poderá suspeitar da premissa menor: (todos) nós somos atos
ultrapassantes”. Daí a necessidade de justificação desta proposição, o que
ocorre, primeiramente, por uma simples recorrência à autoridade (de Gerd Albert
Bornheim), que afirma ser a “distância” uma das características básicas
de realização do ato de consciência, o que permite ao texto, ainda nas
entrelinhas de seu primeiro parágrafo, rascunhar uma articulação de argumentos
mais ou menos assim:
┌ ּּּּ
│
│
│
│
└→
┌ ּּּּ
│
└→
|
Todo se
voltar para si ou para outro (mundo) [estar “diante” de...] implica em tomada
de distância de si ou de outro (mundo).
Ora, toda
consciência de si ou de outro (mundo) implica em se voltar para si ou para
outro (mundo) [estar “diante” de...].
Logo,
toda consciência de si ou de outro (mundo) implica em tomada de distância de
si ou de outro (mundo).
Toda
tomada de distância de si ou de outro (mundo) é ato ultrapassante de si ou de
outro (mundo).
Ora, toda
consciência de si ou de outro (mundo) implica em tomada de distância de si ou
de outro (mundo).
Logo,
toda consciência de si ou de outro (mundo) é ato ultrapassante de si ou de
outro (mundo).
Toda
consciência de si ou de outro (mundo) é ato ultrapassante de si ou de outro
(mundo).
Ora, cada
um de nós é consciência de si ou de outro (mundo).
Logo, cada
um de nós é ato ultrapassante de si ou de outro (mundo).
|
14. Estes argumentos são
válidos, porque observam as oito regras lógicas já antes explicitadas e
aplicadas em argumento silogístico anterior, e são racionalmente óbvios (ou
perfeitos), pois também o termo médio (M) nas premissas de cada um dos
argumentos permite o respeito à extensão de todos os termos destes mesmos
silogismos. Trata-se em todos os casos do modo BAR/BA/RA de 1ª Figura.
15. Os parágrafos segundo e
terceiro do texto são ilustrações histórico-culturais de compreensão de que nós
homens não somos completamente presos à “terra”, mas ultrapassamo-la
como a nós mesmos. Indiscutivelmente pode ser encarado como recurso
retórico de importantes efeitos psicológicos sobre o leitor em favor da tese do
autor do texto. Todavia, permite ser cunhado logicamente como imediatamente
apresentamos:
┌ ּּּּ
│
└→
┌ ּּּּ
│
└→
|
Os
antigos gregos e a tradição judaico-cristã compreendiam o homem como seres
ultrapassantes ou transcendentes ao mundo.
Ora a
cultura ocidental é produto dos antigos gregos e da tradição judaico-cristã.
Logo, a
cultura ocidental compreende o homem como seres ultrapassantes ou
transcendentes ao mundo.
A cultura
ocidental compreende o homem como seres ultrapassantes ou transcendentes ao
mundo.
Ora, nós
pertencemos à cultura ocidental.
Logo, nós
compreendemos o homem como seres ultrapassantes ou transcendentes ao mundo.
Todo
homem é compreendido por nós como seres ultrapassantes ou transcendentes ao
mundo.
Nós somos
homens.
Logo, nós
somos compreendidos por nós (mesmos) como seres ultrapassantes ou
transcendentes ao mundo.
|
16. Resolve-se, enfim, um
dilema que assim se expressa:
q – Todos nós somos completamente determinados (“presos”) pela
“terra”.
r – Todos nós somos livres.
(q . ~ r) w (~ q . r) [Ou todos nós somos
completamente determinados (“presos”) pela “terra” e todos nós não somos
livres ou todos nós não somos completamente determinados (“presos”) pela
“terra” e todos nós somos livres].
{[(q . ~ r) w (~ q . r)] . ~ (q . ~ r)} g (~ q . r)
18. Conclui-se, pois, que todos
nós não somos completamente determinados (“presos”) pela “terra” e que todos
nós somos livres.
19. O parágrafo quarto do
texto explora tal resultado e infere da dimensão de nossa liberdade a nossa
autodeterminação e responsabilidade. Representamo-lo também por um silogismo
válido e perfeito de primeiro modo:
Todo aquele
que é livre responde pelos seus atos (“entregas”).
Ora, todos
nós somos livres.
Logo, todos
nós respondemos pelos nossos atos (“entregas”).
20. O quarto parágrafo segue
nos desdobramentos lógicos a partir do antes igualmente desdobrado:
Toda
mudança voluntária de si mesmo (livre e responsável) é consciência de si
próprios como interseção extensiva a um
antes e um depois (“suprassunção”).
Alguns
dentre nós mudam-se a si mesmos voluntariamente.
Alguns
dentre nós são consciências de si próprios como interseções extensivas a um
antes e um depois (“suprassunção”).
21. Este argumento é
construído de modo a ser válido: DA/RI/I, 1ª Figura.
22. Todo este suporte lógico
visa atender ao que requer a mensagem final do texto, que guarda, em seu mais
fundo, a tradicional relação DEUS – HOMEM – MUNDO. Aliás, a filosofia foi, por
muitos e longos anos, definida como um tratado destas três “substâncias” ou “naturezas”.
Numa perspectiva cristã e otimista, o mundo submete-se à boa vontade humana,
que, por sua vez e enquanto tal, só pode coincidir com a vontade santa de Deus,
porque perfeita. Finalmente, não é o mundo que determina o homem, mas é Cristo
que o contagia no exercício da própria liberdade do homem e, através deste,
renova a “terra”. Eis a inabalável “aliança”, a grande PÁSCOA que
ininterruptamente se realiza e o banquete dito eterno pelos cristãos.
23. Como
propus e desenvolvi aqui uma análise de texto sobretudo numa perspectiva
silogística, o material examinado deveria ser agora re-elaborado – caso se
pretenda dele uma atenção tanto lógica quanto de estilo literário. Afinal, bem
se viu que, tantas vezes, teve-se que recorrer mais ao subtendido do que ao
explicitamente dado. Por isto mesmo, a análise aqui feita também não deixou de
ser uma defesa do próprio texto, quando se procurou sempre apresentá-lo
mediante recursos de silogismos não somente válidos, mas também perfeitos.
Apesar disto, não se está aqui comungando de uma tendência que geralmente
afirma que um texto mais atento à sua elegância prejudica a sua clareza lógica
ou vice-versa. Ao contrário! Como já disse antes, quando produzi o texto aqui
examinado, fi-lo sem qualquer esboço de estrutura lógica. Se ele permitiu ainda
alguma análise desta ordem, isto se deveu estritamente ao fato de ele ter sido
composto por um ser racional e de modo argumentativo. Creio, pois, que, se eu o
redigisse novamente agora, não apenas o melhoraria em sua clareza mas
igualmente em arte e inspiração.
24. Em nossas considerações cotidianas, também não estamos a prezar por esta clareza lógica. Na verdade, isto demanda tempo – e tempo é precisamente o que atualmente não nos é mais oferecido para pensar. Se “tempo é dinheiro”, a pobreza material do filósofo, que o oferece todo ao pensamento, está devidamente justificada. De certa vez, num programa televisivo, foi pedido a uma filósofa que, rapidamente, dissesse o que pensar sobre determinado ponto da questão então em pauta. Ela não quis se manifestar. Insistiu-se. Fez ela um gesto de passar a vez. Teimou-se, contudo. Então ela disse, sem esconder algum cansaço: se vocês querem saber o que pensar sobre isto, eu preciso de mais tempo e posso dizê-lo depois; se, entretanto, vocês querem apenas a minha opinião, esta sim eu posso lhes apresentar agora.
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