Rodrigo Rodrigues Alvim
(Este texto foi primeiramente publicado na Revista Rhema).
Diante do desafio de se fazer acontecer entre
adolescentes do ensino médio, a filosofia vai à escola com o compromisso de
fazer diferença. Ora, a própria filosofia, antes ausente do ensino médio
brasileiro, já é, ela mesma, tal diferença, se realmente a disciplina for
confiada a quem se formou a tratar a existência de maneira filosófica. A
filosofia não é qualquer modo de se pensar, mas um modo distinto de fazê-lo.
Sendo assim, a filosofia não pode ser aventada como qualquer coisa sob
orientação de qualquer um. A filosofia é coisa de filósofos, com os quais os
alunos devem conviver para, paulatinamente, iniciarem-se nessa maneira de “ver”
e “interagir” com o seu mundo, exigindo das autoridades que a disciplina
filosofia, agora garantida por lei, seja ministrada por filósofos. Este artigo
procura discutir as especificidades desse filosofar e contribuir com esse momento
do espraiar da filosofia em nosso país.
Filosofar na escola, crítica fraca e crítica forte,
re-atualização das filosofias, itinerários filosóficos.
1. Introdução
01. Coisas embaraçosas...
Adiamo-las enquanto se pode adiar, mas chega o tempo em que é preciso dizer o
que é preciso, embora tantas vezes o que se precisa seja desagradável só em
dizê-lo, tanto mais dizê-lo “preciso” e, mais ainda, realizá-lo, pelo que já
nos é exigido para isto.
02. Estamos num tempo em que
tendemos todos a exigir não de todos de quem é preciso exigir, mas de quem –
passado! – milagrosamente ainda assume exigências e responsabilidades, gente
cada vez mais rara. Desta se exige por todos até o seu esgotamento e necessária
“re-evolução”. Este parece ser o nosso tempo. Se não, será ele imediatamente
depois do nosso.
03. Dentre estas coisas sobre as
quais se precisa dizer responsavelmente se encontra o ensino de filosofia. Este
foi exigido como disciplina no ensino médio brasileiro e só pôde ter alcançado
este status por sua distinção relativamente ao que outras disciplinas já
aí faziam ou podem-no ainda fazer. Do contrário, esta inserção da filosofia no
processo educacional básico brasileiro não fará qualquer diferença, sendo,
pois, injustificada. Acrescente-se a isto o fato de que esta sua hoje
intangível inserção no ensino médio brasileiro deixa de circunscrevê-la apenas
aos professores e alunos dos Cursos de Filosofia existentes numa ou noutra
Instituição de Ensino Superior de nosso país, e abertos senão àqueles que
livremente desejem neles ingressar, mas estende-a indefectivelmente a muitos
que, até o momento, sequer esperavam ser interpelados ao modo das questões
filosóficas. Pouco a pouco, a expectativa é que o modus philosophicus de
pensar, sentir e atuar na sociedade brasileira será das entranhas mesmas de nossa
cultura, da escola, certamente, mas para muito além dela. Crescentemente, a
filosofia vai se tornando problema de todos, mas, em contrapartida, também os
problemas de todos vão se tornando verdadeiramente problemas da filosofia.
04. Como bem expressam as Orientações
curriculares nacionais do ensino médio em sua introdução dos “conhecimentos
da filosofia”, os desafios que aí se delineiam se estendem aos Cursos de
Filosofia do ensino superior, principalmente, mas não somente, em sua
habilitação licenciatura.[1] Se
esta foi, para muitos de nós, até o presente momento, fruto de nossa
imaginação, agora o desafio está efetivamente posto para confrontarmos as
nossas idéias afins aos apelos de nossa escola e sociedade. Ora, tal confronto
exigirá de nós mudanças na atual configuração da filosofia em seu ensino
superior? No mínimo, tal configuração se tornará muito mais grave. E se antes
cabia ao nosso livre imaginário toda sorte de poucos maturados exercícios
filosóficos na escola que adequávamos a nosso bel-prazer, agora a filosofia
deverá submeter-se à escola real e, por suas características próprias,
contribuir para convertê-la de dentro, promovendo-a ao que ela pode ser de cada
vez melhor aos seus próprios desafios. Para tanto, será preciso, antes de tudo,
que a disciplina filosofia seja assumida nas escolas por “filósofos”. O ensino
de filosofia é um ofício do filósofo. Do contrário, resultados decepcionantes
sob a insígnia de “filosóficos” serão injustamente imputados à filosofia, sem
que esta possa ter as condições necessárias para oportunamente se justificar.
Depois, dada a disciplina ao filósofo, é preciso que este tenha, realmente, o
seu tempo de maturação. Assim, nunca as lições de filosofia na escola deixarão
de ser igualmente lição à própria filosofia, a fim de que esta possa
constantemente pensar o seu exercício dentro da própria escola como atividade
que cabe ao filósofo aí desenvolver. Mas, desde já e antes, cabe ao professor
de filosofia (que não é, pois, qualquer professor de qualquer coisa) ir à escola
sempre de modo propositivo. Isto, contudo, só se consegue quando sabe ele o que
dele faz um filósofo e não outro profissional, tema deste nosso artigo.
05. Em segundo lugar, este texto
advém de uma inquietação à consideração, bastante comum, de pessoas formadas em
filosofia no Brasil, produto, por sua vez, de uma impressão sincera de muitos a
seu próprio respeito, de uma subserviência ideológica consciente ou não de
alguns outros, de uma falsa modéstia, simplesmente, de outra parte ainda.
06. Tal consideração consiste em,
na condição de professores de filosofia, resistirem estes, contudo, em se
assumirem como filósofos, como podem-no fazer – e o fazem – franceses, alemães
e norte-americanos. Pudera fosse isso, por zelo ou formalidade, apenas notório
em licenciados em filosofia, mas também os seus bacharéis assim procedem
predominantemente.
07. Para dar
relevância ainda maior a tal matéria, devemos destacar que, quando se trata da
relação ensino e filosofia, poucos não rememoram e ratificam as palavras
escritas por Immanuel Kant (este sim professor e filósofo!) a esse respeito, a
saber, que “os alunos devem ir à escola, não para aprender pensamentos, mas
para aprender a pensar e a conduzir-se.” Difícil imaginar isso
acontecendo em sala de aula quando o professor de filosofia não se põe ele
mesmo a filosofar, atividade esta, por seu turno, constituinte do
filósofo por excelência.
08. Esse pensar,
contudo, não se faz alheio à tradição filosófica. Muito pelo contrário: isto se
mostra tanto no estudo daqueles filósofos que se destacaram no decorrer da
cultura ocidental, ao manterem incessante diálogo com os escritos de seus
pares, quanto deve se mostrar nos programas de disciplinas filosóficas que os
seus professores propõem trabalhar. É preciso, por conseguinte, primeiramente,
insistirmos um pouco mais em o que consiste melhor esse pensar.
2. Ensinar a
filosofar, filosofando
2.1. Os sensos e o filosofar especificamente
09. No encontro
com o pensamento de outrem, a compreensão deve, por coerência, anteceder a
qualquer comentário. Absolutamente, isso nunca acontece na realidade, mas deve
ser, todavia, um procedimento metodológico constante de um “pretendente à
verdade”. Portanto, como artifício do “trato”
filosófico, o filósofo não se deixa ser “senso comum”, mas conduz o seu
espírito diferentemente. Bem genericamente, assim é o stricto sensu
filosófico e é nele e por ele que se gesta ou se forma um filósofo acadêmico.
Sem essa atitude, corremos o risco de criticar o outro pelo que nós próprios,
indevidamente e talvez sem o perceber, colocamos na boca ou na pena desse
outro, um assim apenas aparentemente outro. Crítica fácil e desonesta!
10. Nesse
sentido, a filosofia não se define pelo algo sobre o qual se exerce, mas pelo
próprio exercício que ela é: esse pensar. Isto se expressa na “in-definição” de
seu “objeto”, na amplitude do arco de suas “direções”, diluído (uno e múltiplo)
ao que os filósofos comumente chamavam de “ser” ou de “existência”. A atividade
pensante importa ao filósofo e o remete, então, ao “pensar o pensar”. Por
conseguinte, pensar algum filósofo é, antes de tudo, pensar como o filósofo, o
que, em seguida, nos permitiria pensar como tal filósofo para além de “o que”
ele mesmo pensou. Não se trata mais, pois, de uma filosofia morta (de algo),
mas de um filosofar, de um perfazer para “fazer como” para além do já feito ou
pensado: eis o ofício[2] do
filósofo! Somente por isto, por antes pensar o próprio pensar, capacitando-nos,
enfim, a atuar tal pensamento alhures do que a princípio perfazemos, bem como
atuar diferentemente dele (noutro ou por outro modus pensandi), que a
filosofia, ao contrário das ciências “objetivas”, é crítica e, somente ela,
autocrítica.[3]
11. No campo do
exercício filosófico, podemos distinguir dois tipos de críticas que nos
permitem clarificar o pensar filosófico. Uma dessas críticas, embora muito
usada, é qualificada como “fraca” e não propriamente “filosófica”, sendo mais
apropriada à “sofística”. É uma crítica “externa”, porquanto instaura uma
incompatibilidade (incoerência ou oposição) por fora daquilo de que se trata.
Isto muitas vezes se dá em discussões entre pessoas que partem de princípios
distintos, apesar de seguirem as mesmas constantes de desdobramentos que se
fazem a partir daqueles fundamentos, ou, ao contrário, entre pessoas que
admitem iguais princípios, mas divergem nas constantes que determinam as suas
inferências, ou ainda entre pessoas que não se coadunam nem nas premissas e nem
nas regras de declinação de seus conseqüentes. Esta crítica é qualificada como
“fraca” porque nada soluciona, pois ambos os adversários se mantêm fechados em
seu mundo próprio e justificados desde sua raiz. A crítica “forte”, todavia,
soluciona os grandes debates, pois, por ela, cada parte, por assim dizer, tem a
coragem de se haver em “campo inimigo”, deixando o outro se dizer e ele mesmo
se contradizer. Nisto, Sócrates se tornou paradigmático à filosofia.[4]
Relembremos.
2.2. O exercício socrático como exemplo
clássico do filosofar
12. O
procedimento filosófico socrático é comumente apresentado em dois momentos
interpenetrantes que lhe são constitutivos.[5] O
primeiro momento é denominado ironia e o segundo, maiêutica.
a) A ironia
tem por sustentação a epoché, a qual, mais tarde, Edmund Husserl, pai do
método fenomenológico, proporá como condição de retorno a uma intuição (como
tal sempre primeira) das coisas, antes, pois, de as mediarmos, de as
conformarmos às nossas “pré-concepções”, estas que, por seu turno e como já o
seu próprio nome nos indica, são originalmente estranhas às coisas mesmas.[6] A ironia
se realiza quando o sujeito “toma-se sobre si” que nada sabe, atitude que René
Descartes tentou recuperar pela “dúvida hiperbólica”, capaz de nos esvaziar de
todo agregado mediador (“deformador”) da coisa manifesta. Daí Sócrates só se
reconhecer o mais sábio – segundo o pronunciamento da sacerdotisa do templo de
Delfos – por se reconhecer não sábio e, nesse sentido, tão somente um amante,
um pretendente, um amigo do saber: um filósofo! Eis o que o arrebata dos
sofistas à filosofia. Dizer “só sei que nada sei” coloca, quem assim se assume,
na busca sincera e incansável da verdade, defendendo-se de toda fixação em erro. Ao mesmo tempo,
dizer “só sei que nada sei” coloca, quem assim se assume, em atitude de
verdadeira escuta do que se diz, de quem se diz. Implica, portanto, em momento
de acolhimento da alteridade e de sua compreensão. Nesta sua posição, nada cabe
a Sócrates senão perguntar o não compreendido por contradição. Sumamente, a ironia
não passa de um apontamento de contradições. Ou seja, o interlocutor de
Sócrates, na tentativa de se fazer compreender, passa em revista a si próprio e
expõe de si mesmo também contradições que o fazem incompreensível. Na esperança
de rapidamente desfazer-se de tais contradições, instaura outras mais,
percebendo em si um avolumar de componentes de ser e de pensamento
completamente excludentes. Neste emaranhado por ele próprio confessado,
sente-se vítima da ignorância, que o faz considerar, por fim, que nada sabe:
“só sei que nada sei”. Neste momento, morre mais um “sábio” para gestação de
mais um filósofo.
b) A maiêutica,
que etimologicamente significa “parto”, tem por sustentação e contínuo essa krisis
instaurada pela ironia: incide em um momento “doloroso” de
“desconstrução”, concomitante a uma gestação, suprassumidas numa concepção:
trata-se de um “parto de idéias”, antes contraditas, agora compossíveis de uma
unidade. Mais do que um momento crítico, é ela um momento autocrítico. Daí que
Sócrates dá à luz não como parturiente de idéias aos homens, mas como parteiro
de idéias dos homens, pois todo esforço do parto cabe a quem concebe, bem
expresso no “conhece-te a ti mesmo”. A crítica no procedimento filosófico
socrático não é ato que vem de fora, mas de dentro de quem pare: contra os
sofistas que vivem de agregados de informações corriqueiras e agradáveis, de “senso
comum”, Sócrates apela para que nada saia de nós sem que realmente seja nosso,
ou seja, sem que passe pelo crivo de nossa consciência, de nossa crítica,
avessa e depuradora de incoerências. Grávidos do mundo, cabe a cada um de nós a
gestação de todas as coisas colhidas, fazendo-as como que nossas
(re-conhecimento), transformando-as no maior e mais perfeito dos compossíveis
(identidade do múltiplo), no esforço sempre renovado de gerar as entidades
pelas quais Sócrates sempre chamou à luz: dentre tudo o que tomamos por
verdade, o que é “a Verdade” pela qual tomamos tudo isso? Crítica forte, fonte
e berço de filhos sãos.
13. Importa
perceber que esse procedimento filosófico socrático tem o diálogo como a sua
condição de possibilidade, pois, intuitivamente, cada ser humano considera-se
clara e plenamente consciente de si próprio. É, pois, ao querer se fazer
compreender a outrem que alguém se expõe igualmente para si mesmo,
percebendo-se agora uma unidade de dobras, uma identidade que, embora
constituída de mediações continuadas, busca perfazer-se agora de modo
paulatino, isto é, pretensamente sem quaisquer saltos. E ao se expor, pela
inquietação das incompreensões que possa suscitar, necessariamente se refaz
(por exclusão e por criação, por conservação e por mudança), reparações no
constante intento do melhor dos compossíveis, no constante intento do
melhor “‘conhecimento’ de si mesmo”.[7]
Como os sofistas bem perceberam em relação às cidades-Estados gregas, um homem
fechado em si mesmo tende inevitavelmente a tomar-se como “universal”,
absolutismo promotor de ações intolerantes e violentas.
14. Sócrates,
Platão e Aristóteles são muitas vezes versados como filósofos que apresentaram
uma alternativa contraposta à sofística. Tal interpretação não se desfaz, mas
atenua-se significantemente quando nos atentamos para o modo como o fizeram. Na
verdade, a atuação dos ensinos sofísticos nas decisões políticas atenienses já
era de dimensões tão incontestes e imensuráveis, que muito pouco conseguiriam
aqueles que simplesmente os afrontassem por qualquer justaposição de
alternativas ou simples exclusão. A condenação de Sócrates à morte por ingestão
de cicuta pelo tribunal ateniense não deixa-nos dúvida dessa influência.
Contudo, Platão sugere que, apesar de sua condenação, Sócrates cumpre sua pena
confiante de que os alicerces sofísticos já haviam se comprometido fatalmente.
Como sofista em sua juventude, sua conversão de vida, através do que aqui
estamos chamando de crítica “forte”, ensaiou a derrocada do exercício
sofístico, posto que seu mote era intrínseco e cerne desse mesmo exercício.
15. Seria,
porém, lícito nos perguntar: afinal, Sócrates importou a derrocada do exercício
sofístico ou o advento de um exercício sofístico mais poderoso? Podem os deuses
ter se enganado e a porta-voz dos mesmos, a sacerdotisa do Templo de Delphos,
se equivocado? Ou não seria Sócrates realmente o maior de todos os “sábios”, o
maior de todos os “sofistas”, como ele mesmo se apercebeu a si ou de si mesmo,
realizando a sua “vocação” ou o seu “daimon” ao promover o exercício
sofístico através de uma superação de si próprio? Não seria o filosofar,
então, “suprassunções” deste mesmo exercício “subliminar”?
2.3. Exemplo do exemplo: a capacidade de
re-atualização da filosofia
16. Mas
desdobremos um pouco mais deste procedimento filosófico. Tomemos Aristóteles,
discípulo-neto de Sócrates. Aristóteles não apenas adotou a crítica “forte”
como também a elevou à consciência em todos os seus meandros mais
determinantes. Como isso aconteceu?
17. Aristóteles
não se afastou dos sofistas, mas deles se aproximou. Talvez isto cause certa
surpresa a quem paradigmaticamente sempre o tomou como um “arquiinimigo” dos
sofistas, tentando contrapor o pleno “otimismo” aristotélico à possibilidade
humana de conhecimento seguro ao “pessimismo” crescente dos sofistas, como bem
expresso no pensamento de Górgias. Contudo, o que almejamos aqui dizer é que
uma significativa parte da obra de Aristóteles não se conforma a uma radical
ruptura do mesmo com os sofistas. Muito ao contrário, ela nos impele à
percepção de que Aristóteles procurou compreendê-los, perfazendo o modo como
pensavam, com se convenciam a si mesmos e aos seus interlocutores ou como
afetavam os seus ouvintes mediante seus discursos. Isto deu à cultura
ocidental, por meio de Aristóteles, duas grandes obras: o Organon e a Retórica.
Aristóteles foi assim o grande divulgador das “habilidades” sofísticas,
permitindo a muitos mais pensarem desse modo. Em contrapartida, essa
compreensão do exercício sofístico minimizou os seus efeitos persuasivos
e maximizou o uso da demonstração e do convencimento, crítica e
crise que converteu este exercício sofístico ao ofício filosófico.
18. Desta forma,
Aristóteles atualiza Sócrates, pois tenta vencer os sofistas no próprio
“território” destes, explicitando e usando “conscientemente” contra os sofistas
os recursos dos quais estes mesmos já espontaneamente se utilizavam.
19. Não obstante
pudéssemos multiplicar os exemplos, não o temos aqui como a nossa pretensão
maior. Deixamos, porém, no intuito de somente sinalizar o poder de
re-atualização alcançado por este filosofar, a observação feita por
Peter de Vries, em seu romance Reuben,
Reuben. Referindo-se a
Aristóteles, este autor escreve que “a prova de seu domínio sobre o
homem ocidental é que ele domina o pensamento de gente que nunca ouviu falar a
seu respeito”.[8]
Abstraída dos seus exageros, tal observação facilmente se deixa constatar,
principalmente se fechamos o nosso foco nas escolas e universidades ocidentais.
2.4. Em um parágrafo, o mais atual de todos
os exemplos
20.
Sumariamente, como este nosso texto se constituiu até aqui? Primeiramente,
conservamos o que tradicional e convencionalmente se tem pelos sofistas e pelos
filósofos clássicos da antiga Grécia e nele mergulhamos... Em seguida, deste
interior, fizemos uma abordagem “desconstrutiva” destas mesmas personagens: não
se reproduziu a radical oposição entre as primeiras e as segundas, mas
entrelaçamo-las de tal modo que, apesar das diferenças sublinhadas, parecem-nos
elas agora “extensões” de um mesmo movimento. Conseqüentemente, os usuais
parâmetros passaram a se apresentar como insustentáveis para delas continuar
cuidando. Como? Se tomarmos os exemplos históricos aqui trabalhados,
perceberemos que ao mesmo tempo em que Sócrates e Aristóteles “venceram” os
sofistas, tornaram-se eles próprios o “robustecimento” de suas “vítimas” e
principais representantes das mesmas.
2.5.
Como aconteceu tomar uma contribuição como um contra-exemplo
21. Comumente
também os três grandes filósofos da Antigüidade Clássica Grega foram
apresentados como combatentes do “relativismo” sofístico. Bem compreendido à luz de tudo o que se
escreveu até agora, tal combate, todavia, se fez, paradoxalmente, pela pretensa
“universalização” do exercício sofístico “robustecido”, sempre “suprassumido”,
“subliminar”.
22. Uma das mais
famosas expressões desta presença nos interstícios do pensamento ocidental se
encontra nas próprias notas que o filósofo de Estagira, Aristóteles, nos
adiantou acerca do princípio da não-contradição.
23. Antes dos
sofistas, sobretudo, cada Cidade-Estado grega se via a si própria como o
universo do humano. Com efeito, de um modo geral, todo grego tinha dificuldades
de tratar a “humanidade” num não-grego. Tão forte foi tal sentimento nele
(Claude Lévi-Strauss o denunciará em toda unidade cultural, seja antiga seja
contemporânea[9]) que,
mesmo quando sofria a presença de outrem, reagia imediatamente, tomando a si
mesmo, então, como o que melhor expressaria tal “humanidade”, sem no entanto se
preocupar com qualquer inspeção comparativa – um “pré-juízo” que, obviamente,
não se percebe enquanto tal. Como cada grego só encontrava o sentido de sua
existência dentro da sua unidade política natal, aí se vive e se morre,
reforçando o sentimento de que “todo mundo” é, em suma, como ele mesmo. No que
se refere, portanto, ao mundo grego antigo, os primeiros pensadores viajantes
entre as várias Cidades-Estados gregas, os sofistas, instauraram um relativismo
jamais antes pronunciado. Nisto eles se colocaram na contramão dos demais
pensadores gregos: contra “a água” de Tales, o “ápeiron” de Anaximandro,
o “pneuma” de Anaxímenes, a “unidade” dos pitagóricos”, os “quatro
elementos” de Empédocles, os “não-divisíveis” de Leucipo e Demócrito, o “fogo”
de Heráclito, a “esfera” de Parmênides... O intercâmbio cultural dos sofistas
tornou patente que o que então se tomava como comum, geral e universal não era
senão uma correspondência às diferenças e particularidades daqueles que o
tomavam.
24. Foi no
contexto deste relativismo sofístico que Aristóteles desvelou “universais” como
o princípio da não-contradição. Seguro de que tal princípio não era
propriamente seu, mas, antes, de todos os seres detentores de razão
(como ele), por isto mesmo pacificou se tratar de um princípio de toda razão
e, como tal, determinante de todo desdobramento que se pretenda assim:
racional. Demonstrar que não é assim, já implica em contradição interna
e “performativa”, pois dizê-lo que “não é” distingue-se radicalmente de
dizê-lo que “é”, o que já é precisamente a observância e uso do próprio princípio
da não-contradição que se pretendeu negar. Por conseguinte, o próprio
exercício sofístico de negação de todo ou qualquer pretenso universal implica
no exercício de algo universal.
25.
Constrangimentos ou colapsos como este sofrido pelos sofistas são que darão
fama, na Antigüidade, a Sócrates, Platão e Aristóteles, seus detectores. Mesmo
não sendo os grandes sofistas pensadores de menor quilate (já demonstramos que
aqueles os confirmarão), a instabilidade política e abrandamento dos instintos
vitais ou existenciais gerados pelo ceticismo, para o qual apontava o
relativismo por eles sustentados, certamente contribuíram para que a cultura
ocidental tomasse aqueles outros como os “clássicos” do seu pensamento.[10]
Assim aconteceu tomar a inestimável presença dos sofistas na filosofia
ocidental de todos os tempos como um contra-exemplo à mesma, limitada, ademais,
apenas aos seus primeiros anos.
3. Como os
filósofos pensam
3.1. Averiguando uma bifurcação no
itinerário filosófico
26. O que até
aqui escrevemos não é, contudo, uma simples e indiscutível explicitação do filosofar
e, em consonância com isto, de como o ensino de filosofia deve se
realizar, pois esclarecer em que consiste o pensar dos que denominamos
filósofos não é tarefa fácil de se cumprir, por várias situações, dentre as
quais duas interessa-nos destacar. Primeiramente, embora seja legítimo tratar
da filosofia ocidental, nunca se pode perder de vista que mesmo esta compreende
muitas filosofias. Em segundo lugar, não obstante se possa afirmar que a
filosofia atual advém do que se procedeu antes, não é menos verdadeiro que,
conforme definamos hic et nunc o que seja a filosofia,
processaremos o que outrora foi a filosofia.
27. Por isso,
não há como nos fazermos indiferentes a duas tendências filosóficas que amparam
os “esquemas” que geralmente são utilizados em apresentações panorâmicas do
pensamento ocidental, para somente depois elucidarmos em que consiste o pensar
dos filósofos e, por fim, o ensino da filosofia. Distinguiremos estas duas
vertentes filosóficas pelas expressões “tendência lógico-epistemológica” (ou
simplesmente “tendência analítica”) e “tendência histórico-hermenêutica” (ou
simplesmente “tendência histórica”).[11]
28. O filosofar
que explicitamos outrora parece possuir, a olhos de lince, traços de
indisfarçável tendência analítica. Contudo, revisto, não se faz indiferente às
exigências da tendência histórica, mas atende-as igualmente. É precisamente
isto que, em seguida, tentaremos esclarecer.
3.1.1.
Professando “Apolo”
29. Ainda que
consideremos que a filosofia melhor expresse a sua liberdade no “trágico” e no
“poético”, dizer que estes possam ser segura e adequadamente “ensinados” não
agradaria nem a Friedrich Nietzsche e nem a Martin Heidegger. Por conseguinte,
deixando-os outrora como que à sua própria liberdade, só nos restou, ao falar
do ensino de filosofia, cuidar daquilo que, em suas outras co-expressões, possa
ser indubitavelmente “ensinado”: seus aspectos “instrumentais” e “analíticos”,
mais ou menos formais.
30. Já por isso
mesmo, certamente muitos leitores denunciarão o “conservadorismo” da noção de
ensino com a qual confeccionamos este nosso texto. Não estamos em desacordo. Muito
pelo contrário, queremos reforçar que esta é uma das vantagens que
indubitavelmente tal noção tem sobre as outras – consideradas “intuitivas”,
“liberais” e “revolucionárias” – e que compensa em parte as suas desvantagens também
existentes. De outro modo, queremos dizer que se a possibilidade de “controle”
perfila esta noção de ensino que estamos usando, é esta mesma possibilidade de
“controle” que nos permite dizer com maior precisão como se filosofa e, por
conseguinte, responder por isto que se faz e se ensina: a filosofia. Mais
tarde, porém, destacamos que é tal aprendizado que, paradoxalmente, nos permite
ir com segurança e vívida liberdade para muito mais longe do que até então se
aprendeu, movimento dialético que se realiza pela “suprassunção”, ou seja,
quando toda “superação”, ao mesmo tempo em que, em sua superfície, nega
qualquer continuidade e “conservação”, também as implica em sua profundidade
por ininterruptos desdobramentos.
31. Tomemos, por
exemplo, Michel Foucault em texto de sua entrevista concedida a Christian Delacampagne no
jornal Le Monde.[12]
Quando aí ele nos fala de Nietzsche, conhece ele Nietzsche? Ou quando aí nos
fala do pensamento analítico, conhece ele a “analítica”? Ora, o que é
fidedignamente “conhecer”? Sugerem alguns franceses que, etimologicamente,
“conhecer” significa “nascer com”...[13]
Daí inferimos legitimamente que conhecer um filósofo enquanto filósofo é, pois,
antes de tudo, “nascer com” o seu pensamento, é se fazer com e como por cada
momento de “formação” de seu pensamento inteiro. Conseqüentemente, mesmo para
quem hoje, genericamente, “filosofia” significa “o deslocamento e
a transformação dos esquemas de pensamento, a modificação dos valores
adquiridos e todo o trabalho que se faz para pensar de outro modo, para fazer
outra coisa, para tornar-se diferente daquilo que se é”,[14][14]
tal exercício só se sabe diferente ou o “não-mesmo” quando,
dialeticamente (para não dizer “num só tempo”), sabe o “mesmo” que não se é (um
“superar-conservando”).[15]
3.2.1.
O que fazem as “bacantes” na escola
32. Enquanto se
compreende a escola oficial como meio pelo qual a sociedade instituída se
incute a si própria nos novos homens que nela nascem, seja através dos seus
valores (ainda que com toda a complexidade que hoje os caracteriza), seja
através das suas necessidades funcionais (supridas pelos “papéis” que todos
nós, “atores sociais” portanto, assumimos), seja através da sua auto-percepção
como o resultado melhor possível de toda tradição, o filosofar de
tendência histórica é expressão inconteste de uma intenção de ruptura, não “com
o” status quo, mas “do” status quo, pois enquanto as instituições
sociais objetivam a regularidade que nos subtrai a insegurança de nossa
existência, este filosofar, por sua vez, nos subtrai de tal
regularidade, denunciando-a como conjectura humana de causas e efeitos apenas
psicológicos e sociais.[16]
33. Avessa,
conseqüentemente, a toda forma de “controle”, qualquer “antevisão” (ou
previsão) se faz impossível à filosofia. Daí a “revolução” que o filosofar
significa no âmbito da educação escolar, pois, rigorosamente, não se pode
ensinar o “como” pensar. A filosofia das escolas não passaria, na
verdade, então, de um arremedo da pretensa ciência histórica, social ou
religiosa, quando atentas aos seus conteúdos, de uma precisão de pensamento
obsoleta numa cultura atenta, de antemão, ao respeito à pluralidade dos vários
modos de se “pensar”, mas que devem se manter intactos, de um nada sério
enfadonho aos alunos e ao próprio professor, enfim.
34. Contra a
cultura de “rebanho”, o filosofar é uma atividade radicalmente livre e a
originalidade ou “autenticidade”, a sua distinção. Quando não por
incompetência, por subserviência ideológica ou falsa humildade, quiçá esteja
nisto a resistência de muitos filósofos no Brasil em se assumirem a si próprios
como realmente alguém que filosofa e, quando professores de filosofia
(expressão assim inadequada), então se vêem apenas como “repetidores” do que
lhes fora igualmente repetido.[17] E
se nem a história da filosofia bem memorizaram, se vêem a si próprios apenas
como fomentadores de um espírito crítico que, uma vez incompetente para assumir
qualquer defesa, tudo irresponsavelmente combate pelo simples desdém do “dar os
ombros”. Todavia, porque tudo combatem, se sentem engajados, muito embora, para
tudo inaptos, com nada estejam filosoficamente comprometidos.
35. Entrementes,
denunciar diferentes modos de pensamento na história da humanidade ou em mesmos
momentos, entre grupos ou indivíduos humanos, já se calca no reconhecimento de
que cada um se diferencia dos demais por implicar num perfazer próprio de
pensamento. Mesmo quando os filósofos nietzscheanos advogam um primeiro e um
segundo Nietzsche ou os filósofos heideggerianos, um primeiro e um segundo
Heidegger, estão implicitamente reconhecendo que há um modo próprio de
exercício de pensamento pelo qual se pode identificar e se distinguir um
filósofo do outro. E se alguém não consegue acompanhar a desenvoltura de um ou
de outro pensamento, a comunidade filosófica não lhe concede os “louros” dos
que bem professam Nietzsche ou Heidegger. Mesmo as intermináveis intrigas que
porventura ainda marcam os grupos de estudiosos que se pretendem os melhores
intérpretes desses filósofos somente corroboram a existência dessas
“arquiteturas dinâmicas” ou “motores perpétuos”, “lentes” compositoras do ser
segundo os “polimentos” que possuem.
3.2. Averiguando um entroncamento no
itinerário filosófico
3.2.1.
O polidor de lentes para leituras do mundo
36. O mais famoso polidor de
lentes do Ocidente foi um filósofo. Convidado a lecionar filosofia na
universidade, preferiu continuar filósofo, polindo lentes. Baruch de Espinosa é
emblemático. Foi ele quem pretendeu uma ética por lentes pouco usuais para
tanto: a geometria.[18]
Baruch de Espinosa é paradigmático.
37. Quase três
séculos depois, encontramos, como que também num canto melhor iluminado de uma
grande sala escura, a figura de Ludwig Wittgenstein a “flanelar” lentes de
mesmo tipo: procura ler o cotidiano por equações ou assim equacionar as
leituras que faz do cotidiano. Esta mania se avolumará no “telescópio” do
positivismo lógico: Tractatus logico-philosphicus.[19]
Depois disto, abandonou os cômodos da universidade, procurando adotar um
comportamento afásico.[20]
Viajando para condições que lhe eram então inusitadas, contemplou por outras
lentes – as lentes que redundarão em suas outras Investigações filosóficas.[21]
Estas lentes e as anteriores estão todas dispostas numa mesma caixa, embora
tenham as do Tractatus logico-philosphicus, no passado, pretendido tal
caixa apenas para si própria. Explicitemos este nosso último período.
38. Eis os
limites do universo científico-instrumental, fazendo uso aqui das sete
proposições que sustentam o Tractatus logico-philosphicus:
1
O mundo é tudo o que é o caso.
(...).
2
O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas.
(...).
3
A figuração lógica dos fatos é o pensamento.
(...).
4
O pensamento é a proposição com sentido.
(...).
5
A proposição é uma função de verdade das proposições elementares. (A
proposição elementar é uma função de verdade de si mesma).
(...).
6
A forma geral da função de verdade é: [ p, ξ, N(ξ) ].
(...).
7
Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.
39. Dentre
outros subitens destas proposições fundamentais, sublinhamos o 6.53, que assim
se apresenta:
O método correto da
filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer;
portanto, proposições da ciência natural – portanto, algo que nada tem haver
com filosofia; e, então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de
metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas
proposições. Esse método seria, para ela, insatisfatório – não teria a sensação
de que lhe estivéssemos ensinando filosofia; mas esse seria o único
rigorosamente correto.
40. Abdicando-se deste seu
pretenso absolutismo epistemológico, o Tractatus logico-philosphicus não
se oporia às Investigações filosóficas, sendo que estas já teriam
confirmado o Tractatus logico-philosphicus, observados os limites do
grupo humano do qual este é expressão: a comunidade científica (da época).[22]
Afinal, as “significações” usadas são adquiridas precisamente pelo seu
“treino”, “ensino” ou “uso” intensivo – estes são os termos que
predominantemente o próprio Wittgenstein faz constar nas suas Investigações
filosóficas. E os “jogos de linguagem”, dos quais podemos “usar” ou
freqüentar ou perfazer ou partilhar, são tantos quantos grupos humanos
existentes: “representar uma linguagem significa representar-se uma forma de
vida”.[23]
Logo, a comunidade científica é apenas um dentre estes grupos e o “jogo de
linguagem” expresso no Tractatus logico-philosphicus tem exatamente aí a
sua vigência. Comumente mergulhado neste universo, porém, suas “significações”
são tomadas como as coisas mesmas, erro do qual o próprio Wittgenstein foi
vítima e procurou corrigir-se pelo antídoto das Investigações filosóficas,
que, aliás, conforme ele escreveu, apenas poderiam ser compreendidas por sua
oposição ao seu velho modo de pensar no Tractatus logico-philosphicus.[24]
41. Apesar de, com justiça, não
nos ser possível sequer imaginar algo sem que também isto já esteja para dentro
do nosso universo, também ao cientista não é possível extrapolar a “gramática”
(ou regras?) que delimita o seu mundo. Assim avalia Wittgenstein o seu Tractatus
logico-philosphicus nos parágrafos 114 e 115 das suas Investigações
filosóficas:
Tractatus logico-philosphicus (4.5): “A forma geral da
proposição é: isto está assim”. – Esta é uma proposição do gênero que se repete
inúmeras vezes. Acredita-se seguir sem cessar o curso da natureza, mas andamos
apenas ao longo da forma através da qual a contemplamos. Uma imagem nos
mantinha presos. E não pudemos dela sair, pois resistia em nossa linguagem, que
parecia repeti-la para nós inexoravelmente.[25]
42. Mutatis mutandis,
Ludwig Wittgenstein não reafirma o erklaren e o verstehen de
Wilhelm Dilthey, mas colocando o primeiro dentre o segundo? E, sendo assim, não
estaria ele mediando um campo comum a logicistas e hermeneutas?
43. Não é a conciliação entre
rigor e plasticidade o grande desafio contemporâneo de todos os procedimentos
metodológicos?
44. Por que diz Claude
Lévi-Strauss que cada espaço cultural tem a sua lógica específica? Por que Karl
Popper dá relevância à demarcação dos modos de assimilação e expressão de
mundo? Por que Thomas Kuhn insiste que cada tempo tem o seu paradigma próprio e
determinante de tudo o que se encontra dentro dele? Não insistem todos estes
que, para sermos “objetivos”, precisamos tomar os mesmos óculos? Mas não estão,
ao mesmo tempo, a nos mostrar uma multiplicidade de óculos que estiveram e/ou
estão em uso, vitrine diante da qual também se encontra o filósofo?
45. Max Weber[26]
chama a atenção dos sociólogos a uma prática que havia se consolidado entre os
antropólogos.[27] Estes
não mais faziam as suas pesquisas em seus gabinetes, simplesmente colhendo de
viajantes relatos de terras distantes, porque perceberam, desde muito cedo, que
tais relatos carregavam consigo aspectos inadequados à sociedade ou cultura em
sua atenção, provocados pelos “valores” culturais de origem destes viajantes,
mas estranhos às gentes que eles, os antropólogos, pretendiam bem compreender.
Para dirimir tais deturpações, desenvolveram então procedimentos muito
interessantes, dentre estes – e em primeiro lugar – o recolhimento in loco
do seu material de estudo, feito por eles mesmos e no decorrer de um tempo longo
o suficiente para que, por sua convivência com os “nativos”, pudessem como que
se tornar um deles. Assim “re-nascidos” (ou “nascidos com”), criam melhor
conhecida, desde então, a cultura alvo de suas investigações.
46. Diante da complexidade
sócio-cultural das próprias sociedades européias, percebeu Max Weber que também
os sociólogos deveriam adotar posturas metodológicas semelhantes ao dos
antropólogos: contrariamente à pretensão positivista de se falar de uma ótica
pretensamente imparcial e absoluta, deveriam os sociólogos, antes de tudo,
admitir e revelar os “valores” que os fizeram se interessar pela pesquisa deste
ou daquele acontecimento, dentre tantos outros vistos ou apenas entrevistos ou
sequer isto, e, em seguida, igualmente admitir e revelar de que “lugar”, de que
“perspectiva” abordarão este alvo de seu interesse, avaliando a propriedade
destes seus parâmetros ou “tipos ideais” de investigação, pois também os
cientistas são seres humanos e, como tais, não podem ter a pretensão de escapar
completamente aos “valores” culturais dos quais estão imbuídos. Negar isto com
sinceridade é expressão maior do quanto se está imbuído de tais valores, até o
ponto de não se conseguir distingui-los de si próprio. Acrescente-se aos
trabalhos de pesquisas sócio-históricas a observação de que também os seus
“objetos” são seres humanos e, assim, imbuídos de “valores” próprios que os
fazem exatamente o que são – o que e como se quer precisamente
saber. Isto, em Weber, evoca a melhor
compostura à sua concepção de que todo agir humano corresponde a “valores”,
“significados” e “sentidos” específicos que interagem gentes e promovem a ação
social que os sociólogos tomam ao seu cuidado.
47. Diz-se acertadamente que a
filosofia não pode ser considerada uma “ciência humana”, pois ela também se
dedica a estudos mais afins às “ciências exatas” ou às “ciências naturais”.
Ora, se isto é certo, então não seria desproporcional a ênfase que aqui mesmo
estamos dando ao diálogo da filosofia com as “ciências humanas”? Por suas conseqüências
metodológicas, não poderíamos tangenciar esta questão, embora hodiernamente nos
fartemos de textos que dela tratam profunda e demoradamente, sem que aqui
pudéssemos, então, superá-los. Não sendo este último, pois, o nosso propósito,
limitar-nos-emos à seguinte consideração: a ênfase que a filosofia atualmente
concede às “ciências humanas” é fruto do reconhecimento de que também as
“ciências exatas” e as “ciências naturais” são, em primeira e última instância,
“humanas”. Eis a advertência com a qual Immanuel Kant inaugurou a filosofia
contemporânea. Não que apenas os conhecimentos contemporâneos sejam “humanos”,
mas contemporaneamente não se pode mais esquecer de que todo conhecimento
alcançado por nós no decorrer de todos os tempos tem correspondência aos
limites que são, antes de tudo, nossos, ou seja, humanos, e não
indubitavelmente das coisas mesmas (ou “em si”).[28]
48. Contudo, mesmo em vista da
“pós-modernidade” aclamada dentro de extensos recintos das humanidades desde o
século XX, ou, de outro modo, ainda que, por exemplo, uma visão mais humanística
seja defendida contra a sociologia de cunho “naturalista”, uma decidida aversão
à sistematização parece inimaginável ao conhecimento. Se a ciência,
particularmente, nasce da tentativa de conciliação entre a razão e a
experiência, a razão é, bem ou mal, tal esforço sistemático. Este modo de
arranjo, esta “lógica” pode ser assim confirmada, mesmo à sociologia (e, com
breves retoques aqui e ali, a todas as demais ciências humanas), do seguinte
modo:
Em
termos de método sociológico, defrontamo-nos com uma maneira de pensar que
supõe a priori que o mundo humano
seja um sistema fechado. O método do cientista social não seria científico se
pensasse de outra maneira. (...). Nada mais distante das intenções deste autor
que sair-se agora com uma profissão de fé naquele credo positivista, (...).
(...).
Pode-se então entender a sociologia como apenas um jogo entre muitos, mas de
modo algum a última palavra a respeito da vida humana, e pode-se mesmo sentir
não só tolerância, como até interesse pelas diversões epistemológicas de outras
pessoas. (...).[29]
49. Por tal racionalidade, toda
ciência ampara-se numa “filosofia”. Repará-la implica (como se atribuiu à
sociologia) um “distanciamento em relação
ao próprio jogo”.[30]
Mas isto não é mais propriamente ciência e, sim, filosofia.
50. “Paradigmas” foi o nome que
Thomas Kuhn atribui aos óculos dos quais as ciências fizeram uso, no decorrer
de todo tempo, para enxergar e redesenhar o mundo. Mas, por seu interesse de
base pelo campo da física, donde até o século XIX jamais esperaríamos qualquer
tipo de concessão a algum relativismo na esfera do conhecimento, Thomas Kuhn
merece aqui algum destaque e comentário.
51. Para Thomas Kuhn, a ciência
não é especificamente moderna. Os homens sempre desenvolveram um conhecimento
acerca do mundo, mas nunca do mesmo modo ao longo de todos os séculos. A
ciência moderna é, pois, apenas um modo diferente dos modos anteriores de “ver”
e de se interagir com o mundo. A “ciência normal” é tão-somente aquela que
predomina em virtude do paradigma atual à qual se conforma. Em tempos passados,
ou seja, sob paradigmas diversos, certamente a proposição desta mesma ciência
seria rechaçada como não-ciência, como pseudociência, como “charlatanismo”, se
efetivamente não o foi. E a comunidade científica, que personifica tal ciência
vigente, foi assim educada e educa o “olhar corretamente do mundo”, mantendo
recintos de convivências, as escolas e universidades, nas quais os neófitos convivem
com os já tarimbados professores da “ciência normal”. É tal convivência que
garante a convergência do olhar, mas, antes, a correção dos olhos. O diploma é
senão a garantia dos óculos científicos que o tempo presente receita como
adequado. Por isso mesmo, o “desvio” da ciência de hoje, o “charlatanismo,” pode
surpreendentemente redundar, por uma mudança de paradigma, na “ciência normal”
futura. E quem não fizer a conversão do seu olhar, quem não conseguir se
desfazer dos seus antigos óculos (o que geralmente é bastante improvável
acontecer), vê-se repentinamente à margem do novo predominante, da nova
comunidade científica, e como vítima de um sorrateiro processo de excomunhão.
3.2.2. Enfim, o entroncamento
52. O filósofo é um expectante do
absoluto. Este sempre esteve em seu horizonte e é o que o motiva, apesar de se
tratar para os não filósofos (ou para os filósofos embriagados) de um “amor
platônico” por Sophia (bem personificada
em Dulcinéia, a amada de Dom Quixote de Cervantes). Mas é o que faz os passos
incansáveis do filósofo.
53. Na contemporaneidade mais
imediata, o filósofo encontra expressão desse absoluto na incomensurabilidade
dos diferentes modos de se pensar o mundo, que, assim, se converte em mundos
simbólicos singulares. Podemos assim habitar o pensamento de um neotomista ou a
cultura saxã de grupos ingleses mais conservadores. Mas também podemos desses
abstrair de um ponto, de um novo habitat, produto (quem sabe!?) da ousadia de
se comparar incomparáveis, ousadia minimizada num tempo em que até os
contraditórios se traduzem em um terceiro. Não seria um suposto terceiro último
(embora dialeticamente impossível) aquele absoluto verdadeiramente único da
expectativa do filósofo?
54. Assim, se uma vertente da
filosofia insiste na unidade e a outra, na pluralidade, talvez haja um
entroncamento entre elas, quando, por um lado, se reconhece a pluralidade dos
pensamentos de mundo (e mesmo dos pensamentos filosóficos), mas, por outro
lado, se reconhece a singularidade de cada um desses pensamentos, que, enquanto
tais, reclamam uma compreensão do seu próprio interior. Cada unidade deve ser
perscrutada como uma unidade sistemática que, contudo e por fora, já pode
coabitar outra unidade mais ampla e de sentido sui generis. Relativamente a isto, mas aplicado a uma outra delimitação,
escreveu-se:
(...)
por um lado, quanto mais participamos de um mesmo “bolsão de sentido”,
universal relativamente a cada um de nós, tanto mais podemos nos sentir
“comum-unidade”, mesmo na paradoxal compreensão de nossos dissensos (pois estes
assim se definem pelo prévio consenso de nossa igual e “artificiosa”
“pré-compreensão”, ou seja, é o singular universal que ratifica as singularidades
individuais); por outro lado, tanto mais nos “compreendemos” e assim nos
“con-firmamos”, tanto mais corrigimos e assim corroboramos o “bolsão de
sentido” ou “unidade-comum” “pré-compreensiva” que somos (ou seja, são as singularidades
individuais que ratificam o singular universal).[31]
55. Eis, enfim, a proposta de um ponto conciliar entre
os filósofos, na intenção de se estabelecer como o pensar especificamente
filosófico deve ser exercido entre aqueles que conscientemente se reúnem a
filosofar, intenção da qual a disciplina filosofia, uma vez obrigatória no
ensino médio, certamente não pode se esquivar, sob risco, em caso contrário, de
desfigurar-se em outra coisa qualquer. Mergulhar nos universos de pensamento e
perfazê-los exaustivamente, fazendo-os “quase-naturais”, a fim de expressá-los
confiantemente em suas dinâmicas próprias como um mundo “logicamente” possível,
eis a tarefa da filosofia, eis a tarefa de quem a professa em todo lugar e, em
especial, na sala de aula.
[1]
SECRETARIA DA EDUCAÇÃO BÁSICA. Orientações curriculares nacionais do ensino
médio: ciências humanas e suas tecnologias. Brasília: Ministério da
Educação Básica, 2006. p. 15-21.
[2]
“Ofício”: “1. trabalho, ocupação, função, mister; 2. Profissão [em algum
sentido]; 3. Incumbência, missão.” Consideramos o termo “ofício” muito adequado
às nossas pretensões aqui, uma vez que não estamos tomando o ato de “filosofar”
em sentido lato, que pode fazer de todo ser pensante, porque pensante, um
filósofo. Nos limites deste nosso artigo, estamos tratando daqueles que se
propuseram a fazer da filosofia a sua profissão. É também neste mesmo sentido
que estamos a falar de uma filosofia acadêmica, posto que nisto se expressa
claramente um “preparo” para que a pessoa exerça o que se julga, o melhor
possível, o “filosofar”. Porém, todo e qualquer esforço duradouro no propósito
de se fazer do filosofar uma atividade de vida predominante, dentre os
múltiplos labores das comunidades humanas, pode ser assumido como o filosofar
que assim e aqui nos permite dizer que apenas alguns são – neste preciso
sentido, repetimos – filósofos.
[3]
Deve-se perceber que a leitura de um texto filosófico nunca é demais
como não acontece com um simples leitor de um texto filosófico, que a faz,
pois, apenas ocasionalmente e, bem possível, já a partir de um pretexto pouco
reverente a “escutá-lo”.
[4]
Afirmam filósofos e professores Alberto Oliva e Mário Guerreiro que “dependendo
de como se defina a filosofia, tender-se-á a ver o nascimento da filosofia como
protagonizado mais por este do que por aquele autor” (OLIVA, Alberto;
GUERREIRO, Mário. Pré-socráticos: a invenção da filosofia. Campinas:
Papirus, 2000. p. 25). Nossa “definição” (cf. §§ 09 e 10) nos permite e até em
parte justifica esta nossa remissão a Sócrates.
[5]
Muito já se escreveu sobre Sócrates. A interpretação que aqui dele faremos é
apenas uma possível, embora acreditamos ser ela muito próxima da predominante,
que, como tal, é a de maior influência no nosso modo de pensar, sentir e agir.
Como sabemos que Sócrates nada nos deixou escrito, essa interpretação filiada à
predominante se nos faz cara, pois só nos resta mesmo conviver com o que dele
falamos. Esta fala pretensamente predominante a seu respeito é, pois, para nós
aqui, expressão sobretudo de nós mesmos: de nossas atuais expectativas em
relação à filosofia, em relação à educação, em relação ao ensino da filosofia.
[6]
Desde Edmund Husserl, sob a denominação “fenomenologia” abrigaram-se vários
procedimentos metodológicos. No campo das ciências do homem, particularmente da
antropologia cultural européia, os estudiosos deram passos mui importantes, dos
quais dois são-nos ora relevantes: a princípio, contra o ideal de suspensão dos
“pré-juízos” do sujeito cognoscente (similar ao “sujeito tabula rasa”
promotor de investigações “neutras” e “imparciais” defendidas por muitos
empiristas e positivistas) – ideal, segundo estes antropólogos-fenomenólogos,
de alcance apenas ilusório –, passaram, muito pelo contrário, a insistir na
necessidade de se deixar muito claro, antes de tudo, os “pré-juízos” ou
“pré-compreensões” que balizaram, balizam ou balizarão as investigações ou já
feitas ou ainda em curso ou a se fazer; logo depois, uma vez que se trate da
compreensão de outrem, que esta se realize a partir dos “pré-juízos” ou
pré-compreensões” deste outrem, porquanto são estes os “símbolos” que o
constituem como tal. Guardadas as devidas proporções, é este procedimento,
destinado ao estudo das culturas “exóticas”, que aqui se defende como parte
constitutiva do estudo filosófico dos pensamentos dos filósofos. Defende-se como
parte, porque tal procedimento não contempla o surgimento do novo, isto é,
da originalidade de cada filosofia que surgiu, surge ou porventura surgirá.
[7]
Não obstante estejam longe de nisto se resumirem, muitas “psicologias” crêem
sorrateiramente nas propriedades terapêuticas e profiláticas desse
procedimento, embora seja ele comumente espontâneo.
[8] Cf. MORRALL, John B. Aristóteles. Tradução de
Sérgio Duarte; revisão de Carlos Evaristo da Costa. 2. ed. Brasília:
Universidade de Brasília, 1985. p. 5.
[9] LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. In: Antropologia
cultural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 15-16.
[10]
Neste sentido, estamos de acordo com a observação de que “a difusão, o renome e
a influência do ceticismo nunca se igualaram às do platonismo, do
aristotelismo, do epicurismo ou do estoicismo. Isto se deve (...) ao fato de
que esta atitude filosófica, que implica um questionamento radical do
conhecimento sensível e racional, não poderia ser compatível com uma tendência
profunda do homem: a que o leva a buscar, pela especulação, verdades
incontestáveis e solidamente estabelecidas para fazer delas o fundamento, o
apoio de sua existência. O espírito humano dificilmente consente em reconhecer
seus limites; não é de sua natureza confessar-se incapaz de chegar a certezas
absolutas. Por detrás dos fenômenos, ou seja, das aparências, o
pensamento ocidental procurou, durante séculos, apreender o que é.
(...). Como reconhecer a importância de uma ‘doutrina’ que contesta o valor de
todo empreendimento filosófico tradicional?” (VERDAN, André. O ceticismo
filosófico. Tradução de Jaimir Conte. Florianópolis, 1998. p. 7).
[11] A
distribuição dos filósofos entre os domínios analíticos e históricos é o eixo
que sustenta uma pequena obra publicada no início da última década do século
passado por um professor de filosofia catarinense, a saber: BOMBASSARO, Luiz
Carlos. As fronteiras da epistemologia: como se produz o conhecimento
(ou uma introdução ao problema da racionalidade e da historicidade do
conhecimento). Petrópolis: Vozes, 1992. 144 p.
[12] Le Philosophe masqué.
In: Le Monde. n. 10945, 06 abr. 1980. "Le
Monde-Dimanche", p. I-XVII. A autoria desta entrevista, na ocasião de sua
publicação, foi mantida, a pedido de seu autor, no anonimato. Tal segredo
somente foi quebrado pelo jornal parisiense depois da morte de Foucault. O
texto desta entrevista pode ser encontrado em edição brasileira: O filósofo
disfarçado. In: FILOSOFIAS. Tradução de Nuno Ramos. São Paulo: Ática, 1990. p.
19-27. Série entrevistas do Le Monde. Também está disponível em:
. Neste último,
pode-se ler que “o texto da entrevista cabe integralmente a Foucault, que
elaborou inclusive as perguntas, junto com Delacampagne, e reescreveu com muito
cuidado cada resposta”.
[13]
“Recorde-se aqui a fórmula de Claudel, segundo a qual o ideal de conhecimento
seria um co-nascimento” (HUISMAN, Denis; VERGEZ, André. Curso moderno de
filosofia: introdução à filosofia das ciências. Tradução de Leila de
Almeida Gonzalez. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983. p. 32).
“Nascimento” e “conhecimento”, que a nós, brasileiros, são apresentados na
grafia da língua portuguesa, escondem-nos sua familiaridade. Tal parentesco,
entretanto, foi muito bem guardado pela grafia francesa: “naissance” et
“connaissance”.
[14] O filósofo disfarçado. In: FILOSOFIAS. Op. cit. p. 26.
[15]
Gostaríamos de não nos fazer vítimas aqui de um “jogo de palavras” vazio. Muito
opostamente, por este “jogo de palavras” pretendemos estar bem expressando o
sentido de um processo dialético.
[16]
Kenneth Minogue afirma, em sentido parecido, a relação da filosofia com a
política: “A política sustenta, com dificuldade, o mundo comum no qual podemos
conversar uns com os outros; e os filósofos, que dissolvem a experiência em
perspectivas, horizontes, opiniões, valores, denominações, culturas e todo o
resto, destroem esse mundo comum. (...). O filósofo cético, o
relativista moral, o rancoroso crítico social, (...) têm seu lugar em nossa
civilização, mas sua intromissão na política não foi feliz, em especial
nos últimos dois séculos” (destaques nossos). (MINOGUE,
Kenneth. Política: uma brevíssima introdução. Tradução
de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 7-8).
[17] O
filósofo e professor Gonçalo Armijos Palácios, na tentativa de escapar a isso,
defende uma distinção entre o “filósofo” e o “mero leitor”. O primeiro se faz –
segundo ele – pela “discordância” de uma tese e da argumentação que a sustenta
enquanto o segundo, pela “concordância”. Caso o “leitor” consiga “entender” a
tese e o “filósofo” esteja “equivocado” em sua “discordância”, ainda assim é na
“discordância” que reside o “grande mérito” para a filosofia. Neste sentido,
Palácios não mais consegue recuperar a filosofia como atividade comprometida
com a busca da verdade, o que não coincide com a compreensão da filosofia como
“um acesso privilegiado à verdade” (como ele próprio mal coloca para depois,
assim precisamente colocado, disto discordar). (PALÁCIOS, Armijos Palácios. De
como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: UFG,
2004. p. 33-34). Ora, ao defender a tese de que só se é “filósofo” quando de
uma tese se “discorda”, a que Palácios nos conduz? Podemos “concordar” com esta
sua tese sem que por este ato já nos desautorizemos como filósofos? Ademais,
quando considera que “concordar, (...), resulta mais fácil e é muito cômodo” e
que, na “discordância”, “eu posso estar redondamente enganado e, ainda assim,
ser filósofo”, Palácios não reproduz – malgrado seu e às avessas do que,
certamente, pretenderia – um ambiente favorável a comportamentos dogmáticos e
fundamentalistas?
[18]
ESPINOSA, Baruch de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras.
Tradução de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes, Antônio Simões. 4. ed.
São Paulo: Nova Cultural, 1989. 235 p. (Coleção os pensadores: Espinosa, v.II).
[19] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus
logico-philosphicus. Introdução de Bertrand Russell; tradução,
apresentação e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 2. ed.
São Paulo: Edusp, 1994. 294 p. Todas as citações subseqüentes no corpo do texto
foram extraídas desta edição.
[20]
“Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.” Com estas palavras,
Wittgenstein encerra o seu Tractatus logico-philosphicus e, também, a
sua atividade docente. Como acreditou nada poder dizer para além das raias da
ciência, concluiu que sua atividade filosófica deveria, por coerência,
igualmente terminar.
[21]
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos
Bruni. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 1-222. (Coleção os pensadores:
Wittgenstein / Moore).
[22]
Em consonância com isto, o professor Emmanuel Carneiro Leão, numa apresentação
da obra wittgensteiniana Investigações filosóficas, assim escreveu: “A
linguagem originária não é nem se deixa reduzir a mero instrumento de descrição
e representação. As funções paradigmática e apodigmática não exaurem o vigor de
presença de linguagem. Compõem apenas um de seus traços e regem somente
os jogos de subsunção e jonglagem” (destaque nosso). E, mais adiante, continua:
“Wittgenstein já não considera a forma lógica o paradigma de todo discurso
possível. O uso lógico, com suas tautologias e não contradição, já não se
atrita nem entra em conflito com
outros usos da linguagem real” (destaque nosso). [LEÃO, Emmanuel Carneiro.
Apresentação. In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas.
Tradução de Marcos G. Montagnoli; revisão de Emmanuel Carneiro Leão.
Petrópolis: Vozes, 1994. p. 9. (Coleção pensamento humano)].
[23]
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Op. cit. p. 15.
[24]
Idem. Ibidem. p. 8.
[25]
Idem. Ibidem. p. 54.
[26]
Apesar de seu caráter estritamente ilustrativo, citar um sociólogo clássico num
momento em que se está delineando o ofício do filósofo pode causar, em muitos,
grande desconforto. Todavia, esta decisão tem aqui cônscios e importantes
acenos, quais sejam: primeiramente, o de assinalar que todos os intelectuais
que propõem rediscutir os pressupostos e a(s) metodologia(s) da “ciência” que
fazem já se colocam “para lá” das raias (pre)estabelecidas desta sua “ciência”
e, como “metacientistas” exercem um ofício comumente atribuído aos filósofos (o
que inevitavelmente sempre ocorre com os considerados co-fundadores de uma
ciência, ciência que, por sua vez, nasce historicamente de uma exigência de sua
distinção de alguma disciplina filosófica que expressa, até então, toda
consideração acadêmica de um “objeto” específico, ou seja, nasce de uma
exigência de autonomia para melhor se concentrar e desenvolver um conhecimento
acerca de tal “objeto”); são, assim, pensadores de interseção entre a filosofia
e a ciência e, como tais, embora cientistas, também filósofos (da ciência) ou
ainda filósofos (da ciência) e já cientistas; em segundo lugar, o de assinalar
o quanto o diálogo entre a antropologia cultural (e a sociologia mais recente)
e a filosofia “oxigena” a ambas, bem como são profundamente perfilhadoras das
“tensões” do mundo contemporâneo.
[27]
Nos tempos deste pensador, um dos clássicos da sociologia, que transitou das
quatro últimas décadas do século XIX às duas primeiras do século XX, ainda se
podia pacificamente distinguir os ofícios do antropólogo e do sociólogo pelos
seus objetos de estudo: o primeiro se dedicava às culturas ou sociedades ditas
“exóticas”, ou seja, distintas daquela na qual se foi gestado; o segundo, à sua
própria cultura ou sociedade berço.
[28]
Não faltam os que sublinham estas palavras ou similares para concluir pelo
relativismo do que tomamos como mundo. Outros, indo mais além, suspendem-se no
niilismo. Contudo e paradoxalmente, são estas mesmas palavras ou similares que
nos recolocam a necessidade do sentido deste mundo, antes mesmo que o sentido
da nossa ou minha vida, posto que esta só se compreenderia
satisfatoriamente por aquela: todo sentido enquanto tal tende à
universalização, no seio da qual, portanto, cada um se recupera. Sem isto, de
todo sentido que percebo meu depreende – a mim mesmo e tanto mais aos
outros – o sabor de uma possível ilusão. Assim, a tessitura do que chamamos
realidade acompanha o procedimento hermenêutico de que o sentido de cada parte
de um texto vai-se nos desvelando à medida que a temos pela inteireza da
leitura do texto do qual faz parte. Ora, esse sentido que nos ultrapassa, pois
– justamente porque e na medida em que nos ultrapassa – não nos pertence, ou
seja, não é acertadamente humano. Já aqui, enfim, estamos como que para fora
das raias e das capacidades estrita ou prontamente humanas. Não estamos sós!
[29] BERGER,
Peter L. Perspectivas sociológicas:
uma visão humanística. Tradução de Donaldson M. Garschagen. 8. ed. Petrópolis:
Vozes, 1986. (Coleção antropologia 1). p. 139, 182.
[30] Idem.
Ibidem. p. 182.
[31] SILVA, Rodrigo Rodrigues Alvim da Silva. Estamira: Alternação
de sistemas de significado e o sentido da vida como ilusão. Disponível em: . Deve-se buscar em Gilles Deleuze ,
talvez começando pela sua obra “Diferença e repetição”, um aprofundamento
confiável para melhor atualização desta tarefa a que chamamos filosofia. Como
breve introdução, recomenda-se o seguinte artigo: DELANDA, Manuel. A filosofia
como ciência intensiva. In: CAREL, Havi; GAMEZ, David. (Orgs). Filosofia contemporânea em ação.
Tradução de Fernando
José R. da Rocha. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 62-80.
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