Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





18 de mar. de 2012

TEXTO XXVIII : Repente para Pensar IV: Voltando ao Mesmo, Sempre Outro - "O Filho Pródigo"

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Há quem leia a Bíblia porque acredita que ela seja palavras divinas reveladas ou inspiradas aos homens. Há quem leia a Bíblia porque simplesmente a compreende como uma junção dos mais influentes livros da práxis ocidental, ou seja, do nosso modo de pensar e agir interagidos, um patrimônio capaz, portanto, de, em larga medida, nos permitir compreender a nós mesmos, que nascemos nesta parte do mundo, ou de nos fazer melhor compreender por aqueles que nasceram em outro contexto. Sempre perde, portanto, a meu ver, quem não lê essa obra, antes para se compreender a si próprio ou a outrem, do que para já criticá-la, sobretudo relativamente ao seu caráter divino ou não.

02. Quem, por exemplo, pode considerar desinteressante a parábola, de autoria atribuída a Jesus, denominada “O filho pródigo”? Ousaria dizer que ela é expressão de algo mais fundamental em todo ser humano, ao modo de “Édipo” para os psicanalistas. Mas como psicanalista não sou, tenho que voltar mesmo ao meu lugar de curioso.

03. Assim está escrito no Evangelho de Lucas:

“Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe”. E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, ajuntando todos os seus haveres, o filho mais jovem partiu para uma região longínqua e ali dissipou sua herança numa vida devassa. E gastou tudo. Sobreveio àquela região uma grande fome e ele começou a passar privações. Foi, então, empregar-se com um dos homens daquela região, que o mandou para seus campos cuidar dos porcos. Ele queria matar a fome com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. E, caindo em si, disse: ‘Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome! Vou-me embora, procurar o meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados’. Partiu, então, e foi ao encontro de seu pai.
Ele estava ainda ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho, então, disse-lhe: ‘Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho’. Mas o pai disse aos seus servos: ‘Ide, depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi reencontrado!’ E começaram a festejar.
Seu filho mais velho estava no campo. Quando voltava, já perto de casa ouviu músicas e danças. Chamando um servo, perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este lhe disse: ‘É teu irmão que voltou e teu pai matou o novilho cevado, porque o recuperou com saúde’. Então ele ficou com muita raiva e não queria entrar. Seu pai saiu para suplicar-lhe. Ele, porém, respondeu a seu pai: ‘Há anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho, que devorou seus bens com prostitutas, e para ele matas o novilho cevado’. Mas o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso que festejássemos e alegrássemos, pois esse teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado!’”


04. Surpreende-me todo o movimento dialético presente nesse texto, antes mesmo que tal movimento se tornasse notório, como aconteceu somente, ao nascer da contemporaneidade, com a filosofia de Hegel. Lembremos que esse mesmo movimento, embora primeiramente destacado por Heráclito na antiguidade grega, fora como tal esquecido ou tomou a forma de uma “lógica da aparência” (entendendo a “aparência” como algo desprezível ao verdadeiro imutável), como apenas um jogo de palavras sem compromisso com a essência universal.

05. Aplicado à Antropologia – ou não é o que tomamos como maioridade de um homem seu “sair de casa”? –, esse movimento tem por afirmação o estar aí onde nasceu e ser, em geral, como aqueles pelos quais se foi gestado, centelha de um mesmo fogo, da mesma lareira, do mesmo lar, “um de casa”. Aí recebe um nome e se compartilha de um mesmo sobrenome, sua identidade original, tentativa por imitação. Mas tal identidade também se esclarece melhor pelo que lhe é oposto, por uma oposição, que, no entanto, se abre como opção, que, por sua vez, e não menos entanto, já implica um lançar-se à novidade: quando se vê, já se transita entre o interior e o lá fora de casa. Nesta crise, pensa-se que ou se fica ou se vai. Alguns se iludem em ficar; outros em sair. Ilusão porque nada mais é como antes, porém nunca se consegue radicalmente esquecer-se de casa: uma síntese, uma nova casa, na qual nascerão novas e mesmas gentes.

06. O pai, personagem desse “mito”, “O filho pródigo” (e mito, para mim, não é algo mentiroso ou ilusório, mas, muito pelo contrário, é um modo possível de se compreender e expressar o que nos acontece), é como que a dialética que já se sabe. Seu filho mais velho, ao contrário, é a personificação de uma espécie de pensamento binário e fixo ora num ora noutro de seus pólos (mas – pensa-se – jamais em ambos, como isso lhe seria possível?), que, se não pode evitar o movimento, despreza-o como perturbador da ordem, pois “é fiel” e “temerário” como “as pedras imóveis na praia” (bela figura de Raul Seixas): contrapondo-se a todo movimento do mar, as pedras! Também elas se movem, sem assim se perceberem a si próprias – e confirmam, também elas, o que pretendem negar: a dialética geral.

07. A vantagem que o movimento tem sobre o não-movimento é muito grande, pois para o não-movimento é preciso que nenhuma parte se mova. A favor do movimento, ao contrário, basta que uma parte se mova, para que arraste todas as demais. Por isso mesmo, o filho mais velho lamenta: eu fiquei (embora deva lhe confundir a sensação de que nada jamais foi o mesmo, sobretudo desde a partida do seu irmão)! Mas sabe que, agora, com o retorno do irmão, mais do que nunca, evidencia-se a realidade humana de que não há como deter a mudança.

08. O pai é a dialética que já se sabe – como disse antes. Por isso, espera pela volta do filho que se foi. Ele, o pai (mas que um dia era somente filho), certamente com os olhos sempre postos no horizonte, reconhece o filho ainda ao longe. Esse filho é, por sua vez, a dialética que se faz. É pelo filho mais novo que a novidade se faz – e novidade é movimento. Mas, no ápice da contradição dialética, a novidade tem consigo o mesmo de uma repetição (é repetição que abriga o novo e a mesmidade). A dialética do filho novo já está presente no velho pai que, por isso, o espera todos os dias. A volta é o movimento para o mesmo lugar, é “re-torno”. Mas o mesmo, nunca é o mesmo (entendam-me como a um dialético): há um mesmo antes da partida, um mesmo durante a partida, um mesmo depois da volta. Logo, posso dizer que a lógica binária não é simplesmente um erro, mas seu erro é não se perceber apenas possível no trato de um momento que se quer analisar como único (um interessante e até importante exercício na circunscrição ficcional de um momento tomado como um todo).

09. Com dinheiro e com amigos, sem já seus bens e também sem amigos, na contradição de um trabalho que lhe dá a condição de como um sem-trabalho, de se ver sem-ser-porco a disputar a lavagem dos porcos, como se porco igualmente fosse, situação que o faz opor seu patrão que o maltrata ao pai que é bom com os seus próprios serviçais... Melhor voltar à sua casa, ao mesmo que não mais o mesmo, pois espera para si a condição de um serviçal do próprio pai, condição que, ao contrário de humilhá-lo, conforta-o e serve-lhe como mola agora em sentido oposto ao mote que o fez, um dia, deixar a sua casa.

10. Que as coisas nunca mais seriam as mesmas, sabe o filho mais novo: de retorno, abraçando o pai (pois seu pai mesmo), diz que já não é mais digno de ser tratado como filho. De fato, o pai não o trata mais como o filho dantes, mas melhor. Quem o prova é o reclame do filho mais velho. Antes, como filhos, nenhum deles teve a morte de um novilho (o melhor, aliás) para uma festa! E para surpresa do filho mais velho (que está à procura da coerência binária), o pai lhe confirma, mas de modo positivo e não negativo, pois – esclarece seu pai – um filho perdido (como que morto) foi reencontrado (como que voltando à vida). Aborda, assim, o acontecimento de uma maneira completamente estranha ao filho mais velho (e elucidativa ao mais novo), pois o filho mais velho não percebe que a sua própria indignação (a própria contradição) significa a transitoriedade de todas as coisas (significa o eixo da lógica dialética): ele, que ficou, quando seu irmão partiu, por “amor” ao pai (e por obediência, seguramente), nega-lhe compreensão e amor filial, agora, no momento em que seu irmão retorna para casa e seu pai se encontra feliz. “E, no entanto [como Galileu balbuciou entre os seus inquisitores, quanto à natureza], tudo se move”, de tal modo que o que nos parece um adiante pode não ser mais que uma tentativa de reparação; e uma reparação, também um modo de se ir adiante.

2 comentários:

  1. QUERIDO PROF. RODRIGO,
    COMO SEMPRE SUAS EXPLICAÇÕES E ARTIGOS TEM UMA FORMA DIFERENCIADA DE SE CONDUZIR UM ASSUNTO!
    LINDA HISTÓRIA!
    UM GRANDE ABRAÇO!

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  2. Eis aqui, neste texto XXVIII, uma verdadeira e grande exegese. Seu texto, Rodrigo, se abre como uma janela cheia de luz e de possibilidades. Após a leitura, fiquei muito tempo contemplando suas palavras e as de Deus, as de Jesus. Um texto bom é sempre aquele que nos remete a outro, que nos faz pensar diferente, que nos abre horizontes. Eis aqui, neste texto XXVIII, uma verdadeira e grande exegese. Grande porque alarga, ilumina e seduz; verdadeira porque lê a Bíblia “para se compreender a si próprio ou a outrem”. Também não me aventuro pela psicanálise, mas Lacan diria que o filho mais novo matou o pai porque pediu a herança com este em vida. Sair de casa, eis um grande paradigma, uma grande metáfora, um grande problema, um inominado conflito. Lançar-se ao mundo, sendo que o retorno jamais trará de volta o mesmo que se foi. O conflito: se alguém sai, alguém fica. Se alguém se foi, outro ficou para trás. Desde o ventre, desde o berço tem sido assim. Imobilidade, por contraste, como bem lembrado no poema de Raul, não significa apenas um estacionar-se, porque mesmo estando parado uma opção já se fez. Nesse poema, gosto ainda de outra frase: “ninguém neste mundo é feliz tendo amado uma vez.” Conflito, retorno. O filho que fica não reconhece a casa (home), precisaria se distanciar dela (house), como o mais novo. O vocabulário revela muita coisa, ele diz: “esse teu filho”, mas o pai corrige: “filho, esse é teu irmão”. Abraços!

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