Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





12 de jan. de 2021

TEXTO XLII: A noção de "cosmos" para o advento da ciência.

Rodrigo Rodrigues Alvim da Silva
 
01. “Cosmos” é uma concepção de longa tradição na cultura ocidental e hoje está presente na formação de outros termos, como “microcosmos”, “macrocosmos”, “cosmopolita”, “cosmologia”, “cosmonauta”, “cosmovisão” e até “cosmético”. O significado comum que podem ter esses últimos termos talvez seja uma boa pista a se trilhar para a recuperação do sentido que consagrou a palavra “cosmos”.

02. Nossa intenção aqui é endossar a hipótese de que a noção filosófica original de “cosmos” expressa uma aposta que foi historicamente importante ao surgimento das concepções científicas ulteriores ou, antes, para o surgimento da própria concepção de “ciência”, mesmo quando, contemporaneamente, alguns cientistas possam questioná-la.

03. Segundo os estudiosos, “cosmos” é um termo de origem grega, κόσμος, bastante antigo. Nos documentos mais remotos que nos chegaram, aparece, pela primeira vez, na obra Ilíada, de Homero, no sentido da ação de “ordenar”: “Não havia nascido nada na terra que competisse com ele em ordenar (κοσμσαι) cavalos e guerreiros, portadores de escudos.[1] Nesse sentido, escreve o filósofo inglês, Jonathan Barnes, especialista no pensamento grego antigo:

O substantivo Cosmos deriva de um verbo cujo significado é "ordenar", "arranjar", "comandar" – é utilizado por Homero em referência aos generais gregos comandando suas tropas para a batalha. Um kosmos, portanto, é um arranjo ordenado. Mais que isso, é um arranjo dotado de beleza: o termo kosmos, no grego comum, significava não apenas uma ordenação, como também um adorno (daí o termo moderno "cosmético"), algo que embeleza e é agradável de se contemplar.[2]


04. Como ornamento, o cosmos chamava assim a atenção, muito diferentemente daquele “vazio”, tal qual um bocejo entre Terra e Céu, descrito em outro poema épico, a Teogonia, de Hesíodo, e ao qual este poeta chamou de “Caos” (χος).


05. Mais adiante, na literatura filosófica, particularmente, o termo “cosmos” aparece primeiramente dentre os fragmentos da obra de Heráclito de Éfeso: “Este cosmos, igual para todos, não o fez nenhum dos deuses, nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e extinguindo-se conforme a medida.[3]

06. No entanto, é importante sublinhar que essa concepção só foi possível em virtude de um esforço de gregos anteriores em pensar o mundo diferentemente das narrativas míticas, lembrando que mythos significa “palavra”, um outro modo de dizer, portanto, que se tornará singular. Esse modo diferente de pensar e dizer será chamado por eles também de “palavra”, uma palavra distinta da então dominante. Surgiu assim o termo logos, já em sua acepção de “linguagem racional”.

07. O surgimento dessa novidade não pode ser satisfatoriamente compreendido sem algumas mediações que nos cabe, ainda que sucintamente, aqui fazer. Faremo-las por alusão à obra daquele a quem foi atribuído, certamente por isso mesmo e menos por alguns ditados de conduta que também lhe são atribuídos, o título de um dos sete sábios da antiguidade grega: Tales de Mileto.


08. “A água é o princípio e governo de todas as coisas” era, para o contexto de Tales, uma afirmação improvável. Tendo, no entanto, ocorrido, significou um salto no modo de pensar a vida, o que pode ser esclarecido por dois comentários.

*** Primeiramente, ela propõe-nos que o sentido do mundo é imanente ao próprio mundo ou, de outra forma, que o sentido do mundo não o transcende, não está em possíveis entidades além dele mesmo, pois a água é um elemento mundano. Ora, o governo do mundo por tais entidades extraordinárias era consenso no tempo de Tales, de tal sorte que sentiam os homens daquele tempo na graça ou ameaça da vontade caprichosa de tais deuses. O mundo era inesperado e arbitrário, pois era expressão dos ânimos e humores divinos. Com Tales, essa condição tornou-se suspeita.

*** Em segundo lugar, reduzir todas as coisas do mundo a um só e mesmo elemento é dizer que tais coisas e o seu acontecimento não são isolados, mas intercambiáveis e comensuráveis entre si. Surge aí a ideia de unidade da qual a própria diversidade é expressão: “tudo é um”, como observou Friedrich Nietzsche ao comentar essa proposição de Tales”[4], ou, de outra forma ainda, tudo é fundamentalmente o mesmo. Ora, de maneira embrionária, para admitir-se o mesmo no outro ou a identidade na diversidade, estava esboçando-se a noção de sistema, de interdependência de partes de um todo, de ordem não necessariamente hierárquica, de “cosmos”. Isso se tornará ainda mais surpreendente ao fundo de uma compreensão mítico-religiosa dominante que ainda propõe diferentes deuses como responsáveis por diferentes coisas e acontecimentos no mundo, algo que somente mais tarde começou a mudar pela hierarquia dos deuses da Teogonia de Hesíodo.

09. Esse salto de Tales permitirá o nascimento da “filosofia”, ou seja, por sua etimologia, do “amante”, do “amigo”, do “pretendente” à sabedoria. Embora hoje o mesmo termo nos pareça amistoso, significou naquela ocasião, para muitos, uma ousadia, um perigo, quando não uma ofensa. A razão do mundo, porque do mundo no qual nos encontramos, estaria se nos mostrando, bastando que nos demorássemos, pacientemente, na contemplação deste mundo que se nos revela por si só. Mais tarde, enfim, ao dizer da razão filosófica, há de se perceber que ao mesmo tempo em que a atribuímos como do mundo (por propriedade), também a atribuímos como de nós mesmos (por capacidade), tudo coincidindo nessa estranha faculdade que temos de alinhavar as coisas e acontecimentos do mundo.
 
10. Sendo assim e desde então, comparar as coisas e os acontecimentos, podendo tudo ousar comparar (nominando-os em nossa história como simetria, proporção, desdobramento, identidade) pressupõe que podemos conhecer, indo de um a outro, indo ao ainda desconhecido pelo já conhecido, reconhecendo inclusive erros por um arranjo melhor. Assim iniciou Tales.


11. Eventos atribuídos à sua vida apenas reforçam esse reconhecimento. Conta-se que, certa vez, caiu num buraco por não prestar atenção por onde andava, preocupado em contemplar os astros. Mas é também sobre ele que se conta a previsão de um eclipse, o que só seria possível a quem há muito tempo notava e anotava o movimento dos astros, ao ponto de, em meio aos tantos movimentos inicialmente confusos, perceber, enfim, invariantes, que nos dá como que a capacidade de nos adiantar no tempo... Foi a ele atribuída a astúcia de se enriquecer porque, atendo às estações (outra rotina) de um mundo que parecia tão incerto, ainda percebeu a relação entre elas e as safras de diferentes produtos, comprou antecipadamente todas as máquinas de extração de óleo de oliva, alugando-as, logo depois, quando veio uma grande colheita do fruto. Soma-se a isso toda a sua dedicação aos teoremas geométricos, aplicáveis em associação às regularidades do caminho do sol e das sombras que produzia, mas aos quais se dedicava pelo simples fato de nos assegurar constantes e universais.
 
12. Tal fascínio fará com que Aristóteles de Estagira escreva, mais tarde, que é a admiração que nos leva a filosofar, ou seja, a buscar uma compreensão lógica do mundo, embora hoje tendamos a relacionar a “beleza” muito mais aos sentimentos humanos do que à nossa inteligência. O filósofo não admite o acaso, senão como momentânea ignorância nossa da razão que perpassa toda realidade: tudo tem sentido. Isso justifica o caráter sistemático, jamais antes visto, que Aristóteles impregna em seus estudos, propondo e fazendo predominar durante quase dois mil anos a sua proposição da ordem do mundo, o geocentrismo.


13. Semelhantemente a Aristóteles na antiguidade grega, precisamente quando a visão aristotélica do universo entra em crise no Ocidente, através do trabalho do matemático Nicolau Copérnico e do igualmente matemático e físico Galileu Galilei, o homem moderno, em geral, continuará apostando na ordem do mundo, pois esse mesmo trabalho que lhe tira o cosmos geocêntrico, então hegemônico, é o mesmo que lhe apresenta um novo cosmos, denominado na época “heliocentrismo”. Ademais, é importante sublinhar que, às vezes, o heliocentrismo foi preferível ao geocentrismo em virtude de a ordem que propunha lhe valer previsões mais precisas em relação aos movimentos celestes. Há quem goste de citar a afirmação de Albert Einstein de que “Deus não joga dados” para sugerir sua crença na existência de uma entidade divina e providente, quando, na verdade, ele estava somente apresentando de maneira figurativa o que se encontra na base de toda investigação científica, a saber, de que nada acontece por acaso no mundo; que o acaso é apenas uma tentativa nossa de projeção no mundo do que seria nosso: a ainda ignorância de determinadas correlações entre fenômenos.


14. A totalidade das coisas e acontecimentos como expressão de uma harmonia, de uma ordem, tem um teor prático tantas vezes ignorado, pois é precisamente essa aposta que se traduz na pré-compreensão de que a dita realidade é explicável, é um desdobramento, um continuum. É ela que nos coloca nas trilhas do conhecimento, da ciência antes mesmo de qualquer êxito. Afinal, se não tivéssemos essa pré-compreensão do sentido (que perpassa todas as coisas, subtraindo-as do absurdo), quem se predisporia a buscar conhecer?
 
O cosmos é o universo, a totalidade das coisas. Mas é também o universo ordenado e o universo elegante. O conceito de cosmos apresenta um aspecto estético. (Costuma-se dizer que é isso, inclusive, o que o torna caracteristicamente grego.) Mas também, e a nosso ver de maneira mais importante, tem um aspecto essencialmente científico: o cosmos é, necessariamente, ordenado – e portanto deve ser, em princípio, explicável.[5]
 
15. É imprescindível a esta altura compreender que, do mesmo modo que a advertência de que a água não é o princípio e governo de todas as coisas não compromete a revolução do pensamento promovida por Tales (pois ainda procuramos a causa das coisas e acontecimentos nas próprias coisas e acontecimentos), a advertência de que a ordem do mundo são apenas modelos humanos que atribuímos ao mundo não atinge a hipótese de que apostamos numa ordem do mundo, tratando-o assim “cosmologicamente”.
 
16. Quando David Hume observou que aquilo que tomamos como conexão necessária não passaria de uma conexão habitual, isso, na verdade, não comprometeu em nada a pressuposta ordem do mundo, pois “hábito”, “costume” e a “crença de que o futuro há de se dar tal e qual o passado” implica tanto a ideia de uma regularidade quanto à de lei da natureza. Por isso mesmo que Immanuel Kant, ao cabo de suas duas maiores obras, pôde reconhecer o quanto a ordem, seja ela no âmbito do humano (ética) seja ela no âmbito das coisas (ciência), causa grande admiração em nós:
 
Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: 
o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.[6]

[1] HOMERO. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2013. Canto II, Verso 555.

[2]  BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 200.

[3] Trata-se do Fragmento 30: κόσμον τόνδε, τὸν αὐτὸν ἁπάντων, οὔτε τις θεῶν οὔτε ἀνθρώπων ἐποίησεν, ἀλλ’ἦν ἀεὶ καὶ ἔστιν καὶ ἔσται πῦρ ἀείζωον, ἁπτόμενον μέτρα καὶ ἀποσβεννύμενον μέτρα. Comparar com a tradução em: MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 15, ou BORHEIM, Gerd. A. Os filósofos pré-socráticos. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 38.

[4] NIETZSCHE, Friedrich. Crítica modrna. Tradução de Rubens Rodrigues Filho. In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS. São Paulo Nova Cultural, 1999. P. 43 (Coleção Os pensadores).

[5] BARNES, Jonathan. Op. cit.

[6] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 183.

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