Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





15 de mai. de 2011

TEXTO XIV: Vozes Antepassadas: Narrativa Mítica, Discurso Filosófico e Pluralismo Cultural

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. A narrativa foi um dos recursos basilares das primeiras sociedades (1). Originalmente oral, esteve ela, nessas sociedades, estreitamente vinculada à figura do patriarca, isto é, à figura dos seus membros de idade mais elevada, cujos longos anos de vida se constituíam em índice natural - e, portanto, óbvio - de sua mediação entre as gerações. Eram os mais velhos, pois, os grandes responsáveis pela memória de seu povo, pelo seu regresso à sua matriz e identidade. O processo de “racionalização” das sociedades complexas ensejou entre nós a diluição desse aspecto. A identidade individual, por exemplo, remete-nos hoje mais a um código de letras e números do que propriamente à nossa filiação mesma. De qualquer modo, nas pequenas cidades interioranas, a linguagem cotidiana ainda permite-nos denunciar alguns resquícios do antigo modo de ser das primeiras sociedades, quando, por exemplo, os mais jovens são identificados somente se ao seu nome segue o nome de seu pai ou o sobrenome da família a que pertencem. Neste sentido, não vale dizer que o homem é aquilo que ele próprio faz, mas, sim, que é ele os seus antepassados - razão pela qual a individualidade hodierna é uma característica tardia comparativamente às primeiras sociedades, onde o grupo ou a família é que existem e o indivíduo é ainda uma presença, se não inexistente, demasiadamente opaca. Cada qual é todos os seus parentes vivos ou mortos, próximos ou longínquos, porquanto, assim, cada qual só é, só existe, só é identificado pela sua estirpe, só existe pelo e para o seu grupo. Os mortos servem aos vivos e, por este prisma, vivem, e os vivos servem aos mortos e, já por esta perspectiva, morrem. A “lareira”, então, jamais pode-se apagar. Dela os vivos devem cuidar antes de tudo. Sua chama representa... Ou melhor, ela é a certeza de que não há ruptura entre os vivos e os mortos, entre os presentes e os antepassados. O apagar do fogo implica, por conseguinte, o fim de tudo, posto que todos perdem a sua identidade, ou seja, o seu próprio ser. Cuidar dos mortos (os verdadeiramente mortos não precisariam de cuidados!) é o modo pelo qual os vivos cuidam de si mesmos. Prestar-lhes homenagens e cultos expressa, em verdade, uma auto-afirmação e uma garantia aos vivos de que a sua morte também não passará de uma morte aparente e que a distinção entre os dois mundos é bastante tênue ou sem qualquer rigor, o que facilmente se pode precisar em seus mitos (e que Xenófanes, Eurípedes e Epicuro, ainda na Antigüidade, tratarão de negar com veemência, acentuando um claro e excludente limite entre esses mundos).

02. Mas, o que são os seus mitos? São exatamente a narrativa que conta acerca das origens, dos seus heróis e de cada acontecimento ordinário que, muito ao inverso, são franjas de uma matriz extraordinária e fantástica, na ordem do terrível e do admirável, do temor e do encantamento. E quem sabe melhor sobre isto é quem mais o ouviu ser contado e passado de geração a geração: são os idosos. Estes dominam a arte da narrativa. São eles, em suas tantas experiências de vida, as mais aptas testemunhas de que tudo ocorre como contaram os seus pais, avós, e todos os demais que “passaram sem passar”. São eles a memória que nos chega e é reforçada pela narrativa repetida e atualizada (tradução/tradição); são eles que dizem de onde viemos e para onde vamos; são eles que dizem de nossa identidade, de nosso grupo, de nossa família, de nosso lar, de nossa “lareira”, de nossos antepassados, da “idade de ouro” que se foi e à qual, pelo movimento cíclico de todas as coisas (estrutura mítica), tendemos a retornar. Tudo implica numa necessidade de se re-ligar com o maior de todos os acontecimentos épicos, com o divino, com o sagrado. Os deuses nascem da “lareira” e o que chamamos comumente de religião é o seu corolário mais expansivo (2).

03. Com efeito, o papel social do idoso é passar adiante a estrutura do vivido que é de vários modos contado. E se “passar adiante” tem por vocábulo etimológico o termo “tradução”, donde vem por desdobramento a palavra tradição, segue-se que os mitos são ao mesmo tempo a atualização e a redescoberta presente da estrutura do vivido humanamente. Por este “ponto-de-fuga”, ele possibilita ao homem situar-se e encontrar-se no mundo. Não se trata de colocar primeiramente as coisas do mundo para depois colocar-se a si mesmo ou vice-versa. Precisamente, trata-se de uma contextualização, ou seja, as colocações se dão concomitantemente uma pela outra. O mito é, pois, uma cosmogonia, uma organização do caos, a “pedra angular” de sustentação de todas as coisas, a condição de possibilidade da existência humana - condição necessária; logo, nesse sentido, evidente, mas, noutro, é ele o que há de menos vidente, posto que é a condição apriorística do ato de se “ver”, como os olhos que vêem, sem ser vistos, num mundo sem espelhos.

04. A narrativa mítica, opostamente ao discurso lógico, é um fenômeno social universal e não está ligada de nenhum modo ao desenvolvimento da escrita (3). A narrativa escrita é, então, uma manifestação bastante tardia relativamente à narrativa oral, o que não se constata em relação ao discurso lógico, visto que esse tem por seu fundamento o assim chamado “princípio da não-contradição”, que, por sua vez, construiu-se e expandiu-se indefectivelmente sob os auspícios das primeiras narrativas míticas escritas. Com a gênese da memória escrita, a morte social dos membros mais velhos de uma sociedade se instaura lenta mas impiedosamente, não sendo, pois, um aspecto apenas característico do modo de produção capitalista. Neste, ela apenas se aprofunda paralelamente à necessidade de acentuação progressiva da produção material pela força humana de trabalho.

05. No Ocidente, a lógica foi um instrumental (organon) descoberto por Aristóteles de Estagira, quando este se pôs a analisar a formação dos discursos políticos e sofísticos, da eloqüência ou oratória ou ainda “arte da persuasão”, muito em voga na Atenas “democrática” de seu tempo. Todavia, o princípio sobre o qual tal instrumental se assenta advém da necessidade de sistematização das narrativas míticas, até poucos séculos antes apenas veiculadas oralmente. Dessa maneira, as obras de Homero (que sérios estudiosos hoje afirmam ter sido muitos poetas-escritores) e de Hesíodo emergiram como tentativas primeiras de organização e cristalização dos mais importantes mitos da Antigüidade clássica grega, o que permitiu aos pensadores posteriores detectar as várias “incoerências” entre uma parte e outra de um mesmo mito ou entre mitos distintos, mas dados como complementares, e, enfim, criticar a “veracidade” de muitos de seus conteúdos. Tomando este fio condutor, muitos historiadores apresentaram (e outros tantos ainda apresentam) o discurso “lógico”, racional e filosófico como uma manifestação anteposta e supressiva da narrativa mítica (4).

06. Aristóteles jamais fora esquecido no Ocidente devido a este seu contributo. Peter de Vries escreve no seu romance Reuben, Reuben que “a prova de seu domínio sobre o homem ocidental é que ele domina o pensamento de gente que nunca ouviu falar a seu respeito” (5). De fato, uma das grandes teses sustentada por Immanuel Kant, no berço da contemporaneidade, foi a subjetividade transcendental das categorias aristotélicas. Ou seja, tudo aquilo que o Estagirita tomou como categoria dos entes não era senão conceitos constitutivos do próprio modo de os homens entenderem as coisas, isto é, da própria faculdade humana. E é exatamente essa característica universal de toda psique humana que garante a objetividade da ciência. Logo, embora paradoxalmente, Kant nega Aristóteles para ratificá-lo incondicionalmente (6).

07. Destarte, a “palavra” dos filósofos (logos) ridicularizou, no desenrolar de nossa história, a “palavra” dos poetas cantores. Coube, porém, à ciência moderna levar tal feito ao seu extremo, apoiada por correntes filosóficas como o positivismo e o empirismo lógico. Nada mais parecia incólume à crítica do logos, da razão instrumental, para bem usar um termo hoje bastante corrente (7). Ora, a palavra de um discurso “lógico-formal” resume-se na exigência de superação de toda diferença radical, porque esta é, no seu entender, dado inconfundível de um equívoco seguramente cometido. E na ânsia de “resolver” as ambigüidades, tal pensamento, que também se estende na avaliação das relações humanas, não possui a capacidade de, pelo menos aí, compreender discursos diversos de um suposto mesmo mundo.

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08. Nas ciências humanas, contra a linearidade da concepção social dos evolucionistas, Claude Lévi-Strauss, fundador da antropologia estruturalista, afirmará que o “lógico” não é atributo apenas da ciência ocidental. Em verdade, ele é uma expressão intrínseca à cultura lato sensu. E não somente a uma cultura dominante, mas a todas as sociedades existentes, por mais pejorativamente primitivas que elas possam parecer ao olhar estrangeiro. As sociedades não caminham todas numa mesma direção, mas cada qual segue sua “lógica” própria (8), que, surpreendentemente, aqui, coincide com o que há de mais subjacente, mais determinante e, contudo, menos detectável claramente enquanto tal em toda e qualquer sociedade: o mito. Embora cada ação social seja dele uma expressão possível, nenhuma possui a capacidade de esgotá-lo, ou melhor, de coincidir-se com ele. Se assim não se pode mais falar de um povo ápice e modelo ao destino dos demais, todas as sociedades, por um lado, falam inevitavelmente a partir de princípios próprios e, a fortiori, nenhuma delas escapa a um mesmo tipo de etnocentrismo. Por outro lado, todavia, torna-se cada vez mais inaceitável o processo de aculturação, segundo o qual uma sociedade age não reciprocamente sobre as demais. Do mesmo modo que a trajetória pessoal expressa a identidade de um homem e esse, a partir dessa sua identidade ou trajetória de vida observa, julga e age, também um povo, sob o peso de seu passado, de sua história, percebe-se, avalia-se e move-se a si mesmo e igualmente a tudo mais. Perfeitamente, toda identidade implica paradoxalmente a “mesmidade” e a diferença. Em relação a uma dada sociedade, isso parece ainda mais claro, posto que, não obstante toda sua diversidade interna, ela se apercebe una frente a uma sociedade outra, tanto mais esta lhe seja relativamente discrepante. Do mesmo modo que a perspectiva cartesiana da consciência de si se faz insustentável hoje porque remete a consciência pessoal a um “sol-ipsismo” radical, isto é, a uma ipseidade negativa de toda alteridade, é semelhantemente insustentável almejar a autoconsciência social se se pensa uma sociedade distante de um encontro, de um verdadeiro encontro, que, enquanto tal, exige impreterivelmente o diverso. Contudo, à perspectiva ou à expectativa do encontro, o ostracismo, o fundamentalismo e o fideísmo são possíveis posturas prévias de defesa, mas que, uma vez instauradas, tornam-se difíceis de serem superadas.

09. Para uma tentativa de encontro, conseqüentemente, deve-se entender que o discurso lógico, aristotélico, cartesiano ou formal é o menos indicado para tal, não só porque ele está associado à arrogância do único adequado para o resgate do verdadeiro, mas também porque ele inevitavelmente já se estrutura sobre os sustentáculos do combate e da violência implícita na arte da persuasão. A pretensão última desta é que uma das partes faça a sua considerada oponente calar-se. Dessa maneira, parece realmente que o discurso “lógico-formal” não se conforma ao “diá-logos”, porém o seu sucesso está associado, em última instância, ao “mono-logos” do pretenso universal que se deseja, a todo custo, alcançar. É talvez contra isto que se quer hoje menos “entendimento” e muito mais “compreensão”, menos “justificação” e muito mais “narrativa”.

10. A narrativa é um ato desarmado que se dirige a um espírito desarmado. A narrativa é antes um convite do que um desafio. Não é uma disputa. Diz de tudo sem se querer um ditado exclusivo. Diz do vivido, que ninguém pode negar, e menos do como se deve viver, sobre o qual, de um outro modo, pode-se discutir. É somente uma lição dentre tantas outras possíveis e que podem até ser completamente diferentes; lição que revela, simples mas intensamente, todo um modo próprio de sentir, de pensar e de agir; um modo de ser que quer apenas se dizer uma existência dentre todo o existente - um simples modo de ser, um simples modo do ser que se diz de vários modos.


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1) Artigo publicado na Rhema - Revista de Filosofia e Teologia - com o mesmo título.
2) A religião e o mito, como fundamentos de todas e quaisquer sociedades e ciências, foram tematizados por muitos importantes pensadores, cada qual a seu modo próprio. É famosa a pergunta que Sigmund Freud fez a Albert Einstein em uma de suas correspondências a este, de 1932: “Não será que cada ciência, no fim, se reduz a um certo tipo de mitologia?” Émile Durkheim, por sua vez, com todas as letras, afirmou, em sua última grande obra, “que as categorias fundamentais do pensamento e, por conseguinte, a ciência, têm origens religiosas. (...), que quase todas as instituições sociais nasceram da religião.” (DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema sistêmico na Austrália. Tradução de Joaquim Pereira Neto; revisão de José Joaquim Cabral. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 495-496.).
3) “(...) ‘mito’, de acordo com o significado original grego da palavra, é sempre ‘expressão sonora’ (a palavra mytha, lingüisticamente parecida, é em grego phone, ou seja, ‘voz, som’) (...)”. Cf. KERÉNYI, K. O testemunho antropológico do mito. In: GADAMER, Hans-Georg; VOGLER, Paul. (Orgs.). Nova antropologia: o homem em sua existência biológica, social e cultural. São Paulo: E.P.U./EDUSP, 1977. v. 6 (Antropologia filosófica I), p. 218.
4) “Para Gusdorf, o homem de hoje vive duas possibilidades de alienação: a alienação do mito e a alienação do intelecto. Um é o apego radical ao modo mítico da verdade, querendo restabelecer o mito como forma atual e única (grifo nosso) de defrontar-nos com a realidade; o outro é a quimera da demitização completa da existência pela aceitação também única do logos. Para o filósofo francês, essas alienações são duas formas de infidelidade à condição humana, cuja trama deve resultar de um contraponto entre a consciência mítica e a consciência reflexiva.” (MORAIS, Regis de. A consciência mítica: fonte de resistência do sagrado. In: ______. (Org.). As razões do mito. São Paulo: Papirus, 1988. p. 79.
5) Cf. MORRALL, John B. Aristóteles. Tradução de Sérgio Duarte; revisão de Carlos Evaristo da Costa. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. p. 5.
6) REALE, Giovanni.; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. São Paulo: Paulinas, 1990. v. II, p. 884.
7) Primeiramente, o pensamento discursivo interveio como um instrumento de mediação, aumentando o domínio do espírito sobre as coisas. Depois o comportamento categorial, que não passava de um meio, afirmou-se como um fim em si. Rompem sua subordinação ao mito, que ele tinha como primeira função elucidar. Levou a cabo a crítica ao mito e esta censura resultou num rechaço sistemático. Afinal de contas, o que tinha ficado de irredutível na consciência mítica se vê agora reprovado, desonrado, como um asilo de ignorância”. GUSDORF, Georges. Mito e metafísica: introdução à filosofia. Tradução de Hugo Prímio Paz. São Paulo: Convívio, 1979. p. 192.
8) LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. In: Seleção de textos. São Paulo: Abril, 1976. p. 51-94.

9 de mai. de 2011

Repente para Pensar II: Virtual

Rodrigo Rodrigues Alvim

Comumente, tendemos a listar algumas coisas como absolutamente reais e outras coisas como absolutamente virtuais. A compra que fazemos no mercado do nosso bairro, por exemplo, é tomada como “real”, mas a compra que fazemos pela Internet é tomada como “virtual”.

Apesar disto, “virtual” é algo relativo e, por isto mesmo, não temos como afirmar ou negar que algo seja, de uma vez por todas, “virtual”, pois mesmo o “impossível” ou o “necessário” – porque, respectiva e precisamente, impossível ou necessário – não possuem quaisquer “virtualidades”. Logo, o “virtual” se encontra no rol do “possível”, ou seja, da contingência, podendo, pois, ora ser e ora não mais ser.

Assim, não é tarefa fácil conceituar o “virtual”. Contudo, fazemo-lo de algum modo, pois é a partir deste conceito que predicamos ou não predicamos das coisas a “virtualidade”. Se o senso comum o faz, embora não explicitamente, e nós aceitamos como uma das tarefas da filosofia, quando não a única, a “terapia” da linguagem, então se torna desafio à filosofia o significado de “virtual”.

Nestes termos, exponho à crítica dos aqui leitores a concepção do “virtual” como aquilo que pretende se passar por (outro), normalmente, expresso pela partícula “como se” ou afins. Por este sentido, dentro do rol do possível, toda coisa em relação a si mesma é “real”, mas, “virtual”, se pretende se passar por outra coisa que ela não é.

Nisto estaria a razão maior pela qual dificilmente conseguimos bem distinguir efetivamente o “virtual” do “real”, pois tanto mais “virtual” tanto mais próximo do “real”, sem, no entanto, sê-lo.


A peça que hoje pela manhã se encontrava na entrada da Biblioteca era, pois, como tal, “real”, mas como pretensamente um “aquário”,“virtual”.

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Repente para Pensar I: Aula da Saudade

Rodrigo Rodrigues Alvim

Fui convidado para ministrar uma "aula da saudade" para formandos em Filosofia em fins do ano de 2009. Fiz dessa própria expressão tema do que deveria-lhes ser a última aula.


Preciso mesmo anunciar que a “aula da saudade”, para a qual viemos, está efetivamente adiada?

Preciso mesmo anunciar que, efetivamente, ela, na verdade, nunca se realizará?

Desejá-la é tudo o que ora podemos, se e quando a saudade da qual necessitamos para realizá-la ainda não existe.

Sim, há certamente entre nós muito desejo neste instante, mas não ainda saudade.

O impressionante é que quando a saudade brotar, também lá a “aula da saudade” não mais acontecerá, pois cada um consigo mesmo, já longe de seus professores e colegas de classe, apenas realizará essa “aula” por obra de sua solitária imaginação sobre os recortes de sua memória.

Se saudade é mesmo desejo do antes presente, mas agora ausente, dessa “aula”, propriamente dita, jamais poderemos ter saudades: saudades teremos, isto sim, das aulas que já aconteceram, mas, também, deste momento em que, mal posto, a “aula da saudade” somente poderia ter acontecido.

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7 de mai. de 2011

TEXTO XIII: Traços da Filosofia Moderna

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Tamanho foi o impacto sofrido pelos europeus em razão do seu maior contato como o Extremo Oriente e, sobretudo, com o seu descobrimento do “Novo Mundo”, que o maior antropólogo do final do século XX, Claude Lévi-Strauss, ao desenvolver um estudo desse tempo, asseverou:

Nunca a humanidade tinha conhecido provação mais pungente, e nunca voltará a conhecer outra igual, a menos que um dia se verifique que outro globo, situado a milhões de quilômetros do nosso, é habitado por seres pensantes (1).


02. No século XVI, o mundo, especialmente a Europa, era um palco no qual se entrecruzava um sem número de modos de se pensar e se comportar, de objetos sobre os quais refletir e objetivos à vista dos quais agir. Entrecortava-se igualmente uma riqueza incalculável de espécimes de flora e de fauna. Todo e qualquer trabalho de síntese nesse contexto parecia não só temporariamente insuficiente, mas, para sempre, impossível de se realizar. O universal nunca pareceu tão ilusório. E quem nele ainda cria fez-se assim duplamente dogmático: primeiramente, no sentido mais antigo, consoante o que tudo aquilo que está para fora do conceito, tudo o que já não participa de algum modo do conceito é dado como falso e inexistente; em segundo lugar, no sentido pejorativo, segundo o qual aquilo que tem tão poucas chances de se fazer convencer numa discussão, deve-se furtar a qualquer embate crítico, tornando-se, pela esta sua própria recusa, indiscutível.

03. Por fim, na Europa que se fazia berço da “modernidade”, o próprio ato de se questionar se relativizava em cotejo com outrora. Nas viagens que se empreendia às Américas, costumava-se, quando de retorno, trazer de lá, junto a tantas outras novidades, alguns de sua própria gente. Foi, então, numa dessas ocasiões, que o filósofo Michel de Montaigne conheceu três índios com quem a nobreza francesa, conjuntamente com o Rei Carlos IX, entretinha-se. “Ensinaram-lhes como era uma cidade grande”. Entretanto, tão logo foi-lhes permitido, fizeram eles, os índios, três observações acerca de tudo o que viram no “Velho Mundo”, das quais citaremos apenas a última nos próprios termos do filósofo francês:


Observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (...); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais (2).

04. Ainda que acreditando-se senhora e juíza do mundo, a Europa não pôde impedir que também se fizesse vítima de negativas avaliações, advindas de sociedades que violentamente submetia ao seu mando. E, como se já não bastasse, paralelamente a esta “crítica exótica” desenvolveu-se uma ofensiva no seu próprio interior, uma autocrítica ou “crítica esótica” que não a poupava menos de censuras e retaliações.

* * *

05. Fundamentalmente, quatro procedimentos filosóficos se destacaram no sentido de posicionar-se frente à nova situação do mundo moderno. São eles: o intelectualismo, o empirismo, o fideísmo e o ceticismo. Estes, no entanto, podem ser agrupados em duas denominações radicalmente excludentes: o racionalismo (que abarca aqueles dois primeiros) e o irracionalismo (que abriga os outros dois restantes).

06. Os racionalistas, como o próprio nome já deixa entrever, crêem na possibilidade da razão humana atingir verdades absolutas, ou por si mesma, isto é, a priori – é o caso de intelectualistas como René Descartes – ou por via da experiência, isto é, a posteriori – como é o caso de empiristas como John Locke. Os irracionalistas, então, têm uma opinião antagônica: a racionalidade do homem, pela própria finitude e contingência de todo humano, nunca seria capaz de abranger o absoluto em sua infinitude e transcendência. Somente por um ato de fé, afirmarão os fideístas, o homem alcançaria tal absoluto, mas que continuaria indemonstrável racionalmente. Mais extremistas, contudo, são os céticos, para quem nem por um engajamento absoluto apreenderíamos algo de inquestionavelmente verdadeiro. Assim, a suspensão de todo juízo último resume o seu único conselho.

07. A substituição da astronomia ptolomaica pela copernicana e da física aristotélica pela galileana era, para os racionalistas, a prova cabal do poder humano no conhecimento da verdade acerca do mundo, assim como a física newtoniana será, mais tarde, a “menina dos olhos” dos filósofos iluministas. Por conseguinte, o homem poderia encontrar conforto em si mesmo, em sua razão, do mesmo modo que, no feudalismo, o homem fez de sua fé num único Deus onipotente, onisciente, onipresente e providente (o próprio absoluto, universal e verdadeiro) o sustentáculo do seu universo. Neste caso, os filósofos modernos serão adeptos da religião natural que assevera que Deus criou o mundo, mas, logo após, como que o abandonou sob a regência de sua vontade, leis fixas, razão divina da natureza, cuja apreensão estaria a cabo do homem (criatura especial, dotado de razão pelo mesmo Deus, a fim de prever e prover segundo os seus interesses, os quais, obviamente, deveriam visar o bem da própria humanidade).

08. Todavia os céticos modernos não eram menos convincentes em sua desconfiança dessa autonomia da razão na apreensão da Razão Universal, pois ainda que esta de fato exista – diziam – não existe como tal, entretanto, para uma criatura determinada, isto é, com precisos limites sensíveis, intelectivos, lingüísticos, geográficos, históricos... E com referência aos prováveis avanços científicos, por exemplo, podemos ter um acesso à interpretação cética, recorrendo, outra vez, ao atento Montaigne:

O céu e as estrelas foram durante três mil anos considerados em movimento. todos acreditaram, até que (...) se lembrou de sustentar que a terra é que girava em torno do seu eixo (...); e em nosso tempo Copérnico demonstrou tão bem esse princípio (...). Quem sabe se daqui a mil anos outro sistema não os destruirá a ambos? (3).

09. Ainda mais adiante, tomando em sua atenção outro fato que lhe era recente, o mesmo pensador retorna com a mesma questão de inegáveis traços céticos:

Ptolomeu (...) determinava os limites de nosso mundo; os filósofos antigos pensavam nada ignorar a esse respeito acerca do que existia, salvo algumas ilhas longínquas que podiam ter escapado às suas investigações; (...) e eis que neste século se descobre um continente de enorme extensão (...). Pergunto então se, visto que Ptolomeu enganou outrora (...), não seria tolice acreditar resolutamente nas idéias de seus sucessores (...)? (4).

10. Francês como Montaigne, Descartes, porém, não é cético. E como bom racionalista proporá a elaboração de uma mathesis universalis (5) (já precedentemente esboçada por Nicolau Oresme). A razão (ou o “bom senso” – como Descartes primordialmente a denominou) é estabelecida como “a coisa do mundo melhor partilhada” (6). Ou seja, a fim de conter toda diversidade e toda contingência que, em seu tempo, marcam a esfera dos costumes e o campo da moral, Descartes estende a razão, tão cara aos “civilizados”, até os bárbaros, anteriormente destituídos dela – e sobretudo dela. Pode-se, inclusive, encontrar, desde então, um maior uso da razão num selvagem do que no homem europeu (7). Tudo jaz, portanto, na sujeição à solidificação dessa razão, a única capaz de recuperar o universal, eterno e não contraditório – ela, a própria unidade comum. Antes dessa tarefa de fundamentação da razão, assim como da exposição de seu bom uso, isto é, de seu método, tudo o mais é provisório, como os preceitos morais que se conformam, nesse primeiro instante, às circunstâncias particulares da época (8). Por fim, somente um método de cunho universal poderia ousar guiar adequadamente razão tão excelsa na construção daquela “ciência plena”. Descartes, entretanto, julga já tê-lo descoberto (9). E ao investigador exige-se que seja sempre ativo e nunca passivo, que nunca a sua alma inquisitiva sofra despreocupadamente as determinações dos sentidos do corpo, pois estas, por si mesmas, propendem-nos ao erro. O homem em sua razão, dominador absoluto da situação, somente assim ascenderia à verdade incondicional, à presença incontinenti.

11. Essa razão cartesiana, porém, é denominada na filosofia de Blaise Pascal – outro francês, este agora de contorno fideísta – de “espírito de geometria”. E, como tal, não é de modo nenhum universal, mas apenas peculiar à matemática e a algumas outras áreas mais afins. Ela mesma, em sua cadeia, está na dependência do “coração”, ou melhor, daquilo que Pascal chamou de “espírito de finura”, que, por sua vez, é constituída de princípios sutis, “apenas entrevistos, mais pressentidos do que vistos”, indemonstráveis (posto que, de outra maneira, incorreríamos numa petição de princípio) e não manipuláveis como aquelas dos geômetras (10). Este espírito sutil é, pois, acima de tudo, um sentimento e, assim sendo, irracional – de um modo especial, porque muito mais intenso, para a tradição racionalista. É, por isso, que a filosofia pascalina foi difundida e guardada numa só e mesma epígrafe, qual seja, a de que “o coração tem razão (entenda-se “princípios”) que a própria razão (a dos geômetras e racionalistas) desconhece” (11). Portanto, aquilo que tão-só por si mesma a razão cartesiana aceita imediatamente como evidente, porque claro e distinto (ou como verdadeiro, conforme a primeira regra do seu método), não seria com fidelidade entendimento, mas sim intuição (12). Aliás, é evidente e inquestionável, porque indemonstrável pela razão. É chão sobre o qual se eleva o edifício da ciência e a partir do qual todos os elos da cadeia do raciocínio podem-se tornar, agora sim, demonstráveis e justificáveis e ser, em vista disso, considerados pela força da lógica do entendimento.

12. Também para Pascal a grandeza humana está em sua razão (13). No entanto, almejar a sua absolutização para aí fundar toda a certeza é tolice e ilusão. Afinal, devemos convir que não somos absolutos:

Conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo; o que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada; e o pouco que temos de ser impede-nos a visão do infinito (14).

13. Trágico e paradoxal não é então somente Pascal, mas todo homem, inclusive e – talvez principalmente – esses que não se atentam para a condição humana de intermediário entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, de um ser que se faz destacar pela atividade de sua razão, mas que logo se interrompe e sucumbe ao som de uma insigne mosca (15). Singularmente, a diversidade do século XVII, que se abriu por todos os lados, circunscrevendo o ser humano, faz deste, ainda mais, uma criatura atônita. À medida que as décadas foram se sucedendo umas às outras para constituírem-se em séculos também sucessivos, certamente as diferenças já existentes multiplicaram-se ainda tantas vezes mais, resultando em diversidades inestimáveis. Infinitas. Mas a acentuação da tragédia desses primeiros séculos da “modernidade” está justamente na sua proximidade com a Idade Média, que lhe é, em precisos aspectos, destoante, realçando, por isso mesmo, os tons próprios e exclusivos de um tempo e outro. Movia-se como que num tempo distinto do qual se nascera, sem que contudo o tivesse visto passar. Entre a “fortuna” e a “virtu” (16), entre um destino que se crê plenamente traçado e o horizonte que se percebe completamente aberto, tenta o homem contemporâneo de Pascal proteger-se outra vez sob a mão do absoluto, que, no seu pretérito, já havia serenado tanto temores humanos. Porém não mais existia aquele tipo de crença necessário no absoluto pessoal e providente, cuja abundância era notória no medievo. E, não obstante tudo isto, era difícil a esse mesmo homem acostumar-se tão repentinamente ao espírito aventureiro que o novo momento lhe exigiu em substituição ao espírito missionário daqueles anos idos.

(...), o homem de pascal (...): ele não está mais abrigado sob a ordem cósmico-teológica da visão cristão-medieval do mundo, nem voltado, como o homem cartesiano, para o senhorio e posse da natureza (17).

14. Os estreitos limites humanos em face do universo ilimitado, se reconhecidos pelo homem, detêm toda prepotência de sua razão no que concerne à sua habilitação para compreender não só o imanente em sua totalidade, mas também o Ser que lhe é completamente transcendente: o Deus absconditus cristão (18). Logo, em sua condição de grande físico e matemático, Pascal atenta-nos para o fato de que é pura ilusão humana pensar na realidade de um método único e universal que nos proporcione todo e qualquer conhecimento. Se é o “método geométrico” que nos confere os precisos dados matemáticos, o uso do “método experimental” será, por sua ordem, imperativo no campo da física (como ocorreu na sua teoria sobre o vácuo) (19). E nesse campo não há propriamente certeza, mas apenas uma hipótese mais provável do que outra(s). Ou seja, caso haja aí alguma evidência, ela diz respeito à falsidade da hipótese afastada, por nos conduzir a absurdos, e não à inquestionabilidade da hipótese que se firmou como a teoria aceita (20). Afinal, teorias antes dominantes – pois as melhores para a sua época – em épocas seguintes foram falsificadas e substituídas por outras (21).

15. Já como pessoa religiosa, adepta do jansenismo, Pascal pondera que a fé em Deus é graça concedida pelo próprio Deus a alguns homens, seus eleitos. E somente a autoridade da revelação divina, que se encontra na tradição da Igreja e na Bíblia, fornece-nos os seus preceitos. Desse modo, ao homem sem fé resta apenas “apostar” na existência de Deus, se almeja a transcendência. Pois a razão só pode nos fornecer uma pseudodivindade, um ser absoluto artificial, semelhante à res infinita cartesiana, “ab-usada”, por Descates, para legitimar definitivamente a sua física e metafísica (22). As palavras seguintes de Pascal ratificam o seu apontamento para um engajamento absoluto:

Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, pois, não tendo partes nem limites, não tem nenhuma relação conosco. Somos, portanto, incapazes de conhecer não só o que ele é como também se existe. (...). Examinemos, pois, esse ponto e digamos: “Deus existe ou não existe”. (...). Em que apostareis? Pela razão não podereis atingir nem uma nem outra; (...). Pensemos o ganho e a perda escolhendo a cruz, que é Deus. Consideremos esses dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderes, não perdereis nada. Apostai, pois, que ele existe, sem hesitar (23).

16. Conseqüentemente, na maneira de entender de Blaise Pascal, Deus e os princípios do coração não são exatamente definíveis de forma racional. Esta tendência perdurará no campo da filosofia e da ciência e radicalizar-se-á, respectivamente, na “morte de Deus” nietzscheana e na “negação da pura indução” popperiana. Mais proximamente a Pascal e como que num “rito de passagem”, os filósofos iluministas destruirão a noção de um Deus tão íntimo e arbitrário, sustentado pela fé cristã, e apenas aceitarão, no seu limite, um Deus de vontade rígida, cujo conhecimento se tem indiretamente pela apreensão racional das leis da natureza. Em poucas palavras, o que importa não é mais tanto a existência de um Deus, porém, isto sim, a de um mundo de razão e que, como tal, pode ser conhecido progressivamente pela razão do homem. Somente nisto Deus ainda recebe alguma atenção devida: como mantenedor do mundo em sua ordem eterna pela sua vontade imutável. Trata-se, então, de um Deus dissolvido no mundo, do “extra-ordinário” tornado também ordinário, numa superação do dualismo entre natural e “sobre-natural”. Sim, o iluminismo instaura uma nova religião, a religião natural, em companhia da qual a religião antiga, da revelação, torna-se, em considerável extensão, supersticiosa. Não há como negar que muitos iluministas ainda são “homens de fé”; todavia, relembremos, toda essa ambigüidade é característica desse tempo de transição e que pende tais iluministas para onde a própria transição indica: os dados revelados, que podem ser expressos racionalmente, estes permanecem; aqueles que assim não podem ser transcritos dirigem-se imperceptivelmente para o esquecimento.

17. Quanto aos “princípios do coração”, o mais genial dos filhos gerados pelo Iluminismo, Isaac Newton, parece considerá-los, ainda que sem notar claramente – ele, que almejou negar toda metafísica como alicerce de sua física. Pois quais são expressamente alguns desses princípios? Pascal mesmo citou-nos alguns:

(...) pelo coração; é desta maneira que conhecemos os princípios (...). Sabemos que não sonhamos (...). Pois o conhecimento dos princípios, como o da existência de espaço, tempo, movimentos, números, é tão firme como nenhum dos que nos proporcionam os nossos raciocínios (24).

18. Ora, são precisamente três desses princípios, básicos para a física newtoniana, que o seu autor apresenta sem demonstração ou definição alguma, justificando-os como evidentes:

Até aqui só me pareceu ter que explicar os termos menos conhecidos, mostrando em que sentido devem ser tomados na continuação deste livro. Deixei, portanto, de definir, como conhecidíssimos de todos, o tempo, o espaço, o lugar e o movimento (25).

19. Em muitos outros pontos, todavia, os iluministas são cartesianos. Pois da autonomia da razão, já conferida por Tomás de Aquino na esfera do natural, observar-se-á uma passagem para uma autonomia absoluta da razão, possível por aquela redução entre o transcendente e a natureza. Tal obra permitirá a Ernest Cassirer escrever hodiernamente sobre aquela época:

O século XVIII está impregnado de fé na unidade imutável da razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo-pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura. De todas as variações (...) destaca-se um conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade e sua consistência são justamente a expressão da essência própria da razão (26).

20. Nesse primeiro instante, grande é o otimismo humano que instaura a si mesmo, enquanto capacidade cognitiva de compreensão de todas as coisas que o mundo contém, como o novo e verdadeiro eixo de tudo o que existe. Todavia, quando em breve reconhecer os seus fracassos e o não cumprimento de muito do que prometera naquele seu primeiro momento de entusiasmo, a razão do homem concomitantemente reconhecerá os seus próprios limites. E é isso o que corrobora Ernest Cassirer, caso prossigamos em sua leitura:

Para nós – se bem que estejamos de acordo, no plano das idéias e dos fatos, com determinadas teses da Filosofia do Iluminismo – a palavra “razão” deixou de ser há muito tempo uma palavra simples e unívoca. Assim que recorremos a esse vocábulo, sua história logo revive em nós e ficamos cada vez mais conscientes da gravidade das mudanças de sentido que ele sofreu no transcurso dessa história (27).

21. Igualmente imprescindível, mas contra o intelectualismo, é a experiência do mundo, para os iluministas, a fim de que, pela observação, possa se chegar a generalizações teóricas, dotadas de caráter explicativo o suficiente para esclarecer aqueles fatos particulares, que as ensejaram, e outros mais similares que certamente escaparam até então às observações feitas. Este aspecto fará com que os empiristas neguem todo “a priori”, toda idéia inata no homem, defendida veementemente por intelectualistas como, além de Descartes, Gottfried Wilhelm Leibniz (28). Isaac Newton, assim procedeu ao tentar negar toda hipótese e metafísica em sua análise do mundo:

Esta análise consiste em fazer experimentos e observações, e em traçar conclusões gerais deles por indução (...). Pois as hipóteses não devem ser levadas em conta... (29).

22. Mas quem melhor tratará dessas questões será o empirista britânico, David Hume, contemporâneo e conhecedor de Newton, que lucidamente reconhece a riqueza preceitual e prática de seu tempo, mas que paradoxalmente – como esse próprio ínterim histórico – incita ainda mais a ânsia humana pelo universal:

Até agora, os moralistas estão habituados, quando consideram a multiplicidade e a diversidade das ações que despertam nossa aprovação ou nossa repulsa, a procurar um princípio comum do qual poderia depender esta variedade de opiniões. E, embora tenham às vezes levado o assunto demasiado longe devido à sua paixão por algum princípio geral (...). Análogos têm sido os esforços dos críticos, dos lógicos e mesmo dos políticos (30).

23. Levando as teses empiristas às suas últimas conseqüências, Hume abala irreversivelmente a “pedra angular” de toda “filosofia difícil e abstrata”, de todo pensamento racionalista e metafísico. Esta se resume no princípio de causa e efeito que tem raízes no “hábito” e no “costume” (31) (formados por sucessivas experiências semelhantes numa mesma ordem de contigüidade e na “crença” de que o futuro tem por modelo o passado) (32) e não numa idéia inata da razão ou numa “conexão necessária” da natureza (33). No entanto não só as “relações de idéias” sofrem, finalmente, o golpe dessa conclusão humeana, mas também as “questões de fato” (34) que não mais escaparão à sua irredutibilidade, pois, por ser o contrário de um fato sempre possível, não implicando jamais em contradição (35), a espera de um fato-efeito, que habitualmente sempre seguiu a um fato-causa, acaba inevitavelmente dado lugar, se visto por este ângulo, à dúvida. Assim, toda capacidade humana de ciência tem que se restringir ao que os nossos sentidos nos fornecem imediatamente, o que, desse modo, não pode ser denominado, exatamente, Filosofia. Pode-se, agora, compreender todo aquele espaço que Hume concede ao ceticismo em suas obras. O termo médio de toda preposição não encontra qualquer impressão que lhe corresponda (36). No entanto, sua recusa, inevitável se se tem o empirismo de Hume como pano de fundo, implica na aceitabilidade tão somente do que nos é fornecido ao nível do simples dado sensível. Visto como resultado da imaginação humana, o delírio do termo médio desacredita toda metafísica, desde aquilo que concerne à existência de Deus até ao que se afirma acerca da unidade do “eu” ou toda afirmação antecipada como “o sol nascerá amanhã”.

24. As conclusões a que chegou o pensamento humeano provocaram um grande impacto dentro do recinto epistemológico, fazendo surgir reflexões outras, que, por sua vez, realizariam verdadeiras revoluções de contornos filosóficos, permitindo, inclusive, que os seus próprios promotores se sentissem como que demasiadamente alienados do antigo modo de se pensar. É nessas circunstâncias que emerge o trabalho intelectual de Immanuel Kant. Ele próprio se considerava um apaixonado pela metafísica (37), mas, paradoxalmente, despertado, por Hume, desse “sono dogmático” (38). A “filosofia contemporânea”, nasceu exatamente aqui, indicando, pois, esse novo tipo de investigação, que agora se faz em plena luz do dia, em plena luz natural, em plena razão finalmente, assim como almejavam os iluministas de seu tempo (39). E o que a inaugura é a assim chamada “revolução copernicana kantiana”, segundo a qual o conhecimento não se traduz em sua base primeira por uma simples e passiva adequação do pensamento, do sujeito, ao objeto que investiga, mas, em radical oposição, ele se traduz, antes de tudo, por uma adequação da coisa investigada à maneira própria do sujeito dar-se o mundo. Caberia, portanto, à razão, que se crê apreendedora da constituição mais íntima de todas as coisas, ou seja, da verdade absoluta do mundo, sair desse seu conformismo, dessa sua comodidade, de sua pretensa imobilidade e centralidade, diante da qual tudo o mais se circunscreve e se mostra, à “razão imperatriz”, como de fato é em si mesmo. Caberia-lhe, então, para dizer de outro modo, projetar-se a si própria para fora dessa sua aparente e ingênua onipotência, a fim de perguntar-se, primordialmente, pelos seus próprios limites no conhecimento das coisas. Arma-se, dessa forma, como que um grande tribunal da razão, do qual é ela não só juíza como também ré.

25. Com efeito, a possibilidade humana de conhecimento, em Kant, não é mais absoluta, como anteriormente ainda podia-se acreditar. Afinal, para ele, numa concessão de igual medida aos empiristas e intelectualistas, o conhecimento propriamente dito exige a experiência do que se quer compreender, mas igualmente a sua conformidade com as formas e categorias a priori do aparelho psíquico humano (matéria da Crítica da Razão Pura de Kant).

Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem os conceitos sem uma intuição de certa maneira correspondente a eles nem intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento (41).

26. Ora, vivendo neste mundo, o homem só pode ter experiência do natural e não do sobrenatural. E ainda que algum visionário como Swedenborg afirme ter esta experiência de seres transcendentes, tais visões obtidas não estariam, por assim dizer, à disposição de todos aqueles que também desejassem tê-las ou confirmá-las. Esta privacidade da “experiência mística” constitui-na, por conseguinte, como um sonho, somente tendo alguma validade e importância para aquele que sonha (42). Além disso, mesmo o conhecimento do mundo natural tem estreitos limites, anteposto que o modus humani de dar-se ao próprio homem esse mesmo mundo é apenas um modo dentre outros tantos possíveis e existentes (como mais tarde postulará Friedrich Nietzsche, por analogia à condição de uma “mosca”, em uma de suas obras de teor claramente epistemológico) (43). Assim – pode-se perguntar –, o que é o mundo em si mesmo, se cada espécie o capta de maneira diferente? A resposta – por superação de todo antropocentrismo exacerbado – somente pode configurar-se da seguinte forma: o que se obtém, num processo de conhecimento das coisas, não são as coisas em si mesmas, mas apenas as coisas como são para nós. E mesmo que um antropocentrismo exacerbado se restaure (se re-instaure), ele jamais poderá oferecer-nos uma prova cabal de que a coisa-para-nós coincida com a coisa-em-si, isto é, que o fenômeno (fe-noumenon) do mundo humano coincida com o noumenon do mundo em si próprio, com a essência das coisas, ainda que estas mesmas coisas tenham sido bem averiguadas e confirmadas a partir de um método que seja o mais adequado. Dito isso, não nos cabe mais preocuparmo-nos com as essências ou com aquele tradicional “mundo das idéias” platônico, com aquela esfera que nos transcende ou transcenderia, com o sobrenatural ou meta-natural (mesmo porque o que chamamos de natureza já é especificamente natureza humanizada).

27. Conscientes de nossos limites, abdicamo-nos forçosamente do absoluto. Deste não mais devemos ter sede nas ciências, justamente porque aí ela não pode ser saciada. Como problema insolúvel, a coisa-em-si deixa de ser problema. E a crítica que a razão exerce sobre si própria absolutiza-a, enfim, exata e paradoxalmente, ao apontar-se a si mesma como não absoluta, visto que conclui que a única realidade para o homem é justamente essa realidade já humanizada e na qual tudo segue, grosso modo, a jurisdição da razão. Desde então, trabalhar-se-á com tal noção de (falso) absoluto, estendendo-a até à rediscussão moral, quando toda regra ou norma só terá validade se instituída por essa razão que, soberana, agora não mais requer a experiência do que lhe é estranho, de um mundo (natural ou sobrenatural) que a transcenda (matéria da Crítica da Razão Prática de Kant). E será nessa sua mesma soberania que se reconhecerá a sua autonomia: ela é aquela que impera sobre si mesma, sendo, pois, livre (não heterônoma) ao submeter-se a nada que lhe seja estranho, a nada que não seja senão ela mesma.

28. Finalmente, com a Crítica do Juízo de Kant, essa tendência adquirirá a sua fronteira última(44). Toda organização e inteligibilidade do mundo serão postas como obras do próprio sujeito, ponto do qual germinará toda a filosofia idealista alemã posterior, pois sendo o aparelho psíquico o mesmo em todos os homens, chamar-se-á essa mesmidade de “Eu transcendental”. Estruturalmente igual, todo produto estritamente subjetivo ou voltado para a mesma coisa-em-si (sem qualquer gama de passionalidade) é, em verdade, objetivo. Por essa razão, embora o mundo já seja incondicionalmente humanizado, sua objetividade é garantida justamente por esse seu traço subjetivo.


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1) LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Lisboa: 70, 1981. p. 69.
2) MONTAIGNE, Michel de. Dos canibais. In: ______. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 105. (Coleção Os pensadores: Montaigne I).
3) Idem. Apologia de Raymond Sebond. In: ______. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 264. (Coleção Os pensadores: Montaigne I).
4) Idem. Ibidem.
5) Cf. DESCARTES, René. Regras para direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: 70, 1989. p. 11-13 e 41-46.
6) Cf. Idem. Discurso do Método. Tradução de J. Guinsburg e de Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 29. (Coleção Os pensadores: Descartes I).
7) Idem. Ibidem. p. 36.
8) Idem. Ibidem. p. 41-46.
9) Cf. Idem. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e de Bento Prado Júnior. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 74. (Coleção Os pensadores: Descartes II).
10) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 37-38. (Coleção Os pensadores: Pascal).
11) Idem. p. 107.
12) Logo, não se trata da intuição entendida como “conceito da mente pura e atenta (...), que nasce apenas da luz da razão”, segundo a terceira regra cartesiana para a direção do espírito.
13) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 123.
14) Idem. Ibidem. p. 53.
15) Cf. Idem. Ibidem. p. 127.
16) Alusão a Maquiavel. Cf. CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. Tradução de Lydia Cristina. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1989. p. 27.
17) VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. p 85.
18) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 84.
19) Cf. VALVERDE, José Maria. et al. História do pensamento: Renascimento e filosofia moderna. São Paulo: Nova Cultural, 1987. v. 2, p. 310.
20) Cf. Idem. Ibidem.
21) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Revisão de H. Dalbosco e L. Costa. São Paulo: Paulinas, 1990. v. II, p. 611-612.
22) Cf. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Op. cit. p. 57-58.
23) Idem. Ibidem. p. 95. Deve-se observar, nessa aposta pascalina de aposta no que nos proporciona as maiores vantagens com os menores riscos, a influência de seus estudos acerca do “cálculo de probabilidades”, do qual é fundador.
24) Idem. Ibidem. p. 107.
25) NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos da filosofia natural. Tradução de Carlos Lopes de Mattos e de Pablo Rubén Mariconda. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 156. (Coleção Os pensadores: Galileu/Newton). Conferir também em: SELVAGGI, Filippo. Filosofia do mundo: cosmologia filosófica. Tradução de Alexander A. MacIntyre. São Paulo: Loyola, 1988. p. 227.
26) CASSIRER, Ernest. A filosofia do iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Unicamp, 1992. p. 23.
27)Idem. Ibidem.
28) Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. As noções inatas. In: ______. Novos ensaios sobre o entendimento humano. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 23-38. (Coleção Os pensadores: Leibniz I).
29) NEWTON, Isaac. Óptica. Tradução de Pablo Rubén Mariconda. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 204. (Coleção Os pensadores: Galileu/Newton).
30) HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 168. (Coleção Os pensadores: Berkeley/Hume).
31) Idem. Ibidem. p. 86.
32) Cf. Idem. Ibidem. p. 83-84, 88 e 90.
33) Cf. Idem. Ibidem. p. 80-81.
34) Cf. Idem. Ibidem. p. 102.
35) Cf. Idem. Ibidem. p. 77.
36) Cf. Idem. Ibidem. p. 82.
37) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Op. cit. p. 865.
38) Cf. KANT, Immanuel. Prolegómenos a toda metafísica futura. In: FERNANDEZ, Clement. Los filósofos modernos: selección de textos. Madrid: EDICA, 1976. v. I, p. 535.
39) Cf. VALVERDE, José Maria. et al. História do pensamento: Renascimento e filosofia moderna. Op. cit. p. 437.
40) O juízo que cumprirá tal exigência foi qualificado por Kant como “sintético a priori”, sendo capaz de conservar concomitantemente o caráter de “novidade” e “incrementação” e o de “necessidade” e “universalidade” das proposições científicas.
41) KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de ValérioRohden e de Udo Baldur Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 55. (Coleção Os pensadores: Kant I).
42) Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. Op. cit. p. 869.
43) NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 31. ( Coleção Os pensadores: Nietzsche I).
44) Apesar de se fazer necessário, segundo Kant, pensar uma inteligência outra, que não o “Eu transcendental”, que institua e assegure um uma finalidade no mundo (para que assim o desenvolvimento do mundo – conhecido pelas ciências – e o agir humano nesse mesmo mundo – determinado pelo puro eu – não se conflitem), tal necessidade é, também ela, elaboração da razão pura, do próprio homem portanto, ainda que aquela inteligência – voltamos a insistir – seja instituída pela lógica humana como independente de qualquer propriedade humana.