Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





6 de jun. de 2012

TEXTO XXXI: Por Amor...

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Aristóteles tinha a Filosofia como "sabedoria teórica" (como seria, para ele, o conhecimento da physis ou natureza). Tinha-a, não menos, como "sabedoria prática" (voltada para a ação humana no mundo, a exemplo da política e da ética). Ao primeiro modo, como "sabedoria teórica", a Filosofia, em Aristóteles, ainda é demasiadamente contemplativa, se a compararmos ao que comumente esperamos de nossas ciências atuais. E embora essas nossas atuais ciências se digam voltadas à ação humana no mundo, também elas não podem ser confundidas com aquela Filosofia ao segundo modo aristotélico (a "sabedoria prática"), pois a "ação no mundo" a que ambas nos remetem não têm o mesmo sentido: enquanto as ciências hodiernas visam a uma intervenção do homem na natureza, a fim de que esta se adeque às pretensões humanas (sobretudo na sua transformação em artigos de consumo em nossa presente sociedade de mercado), a "sabedoria prática" aristotélica se preocupa com a adequação das paixões humanas à justa medida que as ciscuntâncias do mundo possam nos exigir - sentidos, portanto, completamente contrários.


02. Num contexto em que as  capacidades humanas jamais foram tão potencializadas quanto hoje pela tecnociência, compreende-se que a posse de tal poder por pessoas quaisquer ameaça comprometer o igual direito de vidas humanas sobre a Terra, se não, antes, de toda vida humana e não-humana no Universo.  Tal ameaça não tem mais os seus limites na ficção, mas é levada muito a sério pelos cientistas, apesar de politicamente minimizada para se evitar a instabilidade ou a crise generalizada das instituições.

03. Caso seja mesmo assim, não será difícil perceber que, dentre todas os problemas que geralmente levantamos à ética contemporânea, nenhuma é mais relevante do que a própria ética. Isso mesmo: a ética se tornou a principal questão para si mesma. O paradoxo é esse: ela não está em primeiro lugar no mundo da tecnociência - ela que em todo lugar deveria estar em primeiro. Longe disso, efetivamente ela é marginalizada nessa educação técnica, "manipuladora" e alma do capital. Comumente, quando toma algum vulto, vem, no entanto, associada a um entrave ao avanço tecnológico, como se, onde o progresso científico diz poder, a ética se demora na reflexão acerca do que se deve (ou não), num "dar nos nervos" do pragmatismo e utilitarismo mais chãos, num frente-a-frente entre o imediatismo das nossas demandas mais concretas  e as mediações e tantas dobras características de um adequado juízo ético.

04. Nesse contexto ambiguamente importante e desanimador da ética, é-se vencido e desestimulado às grandes reflexões. Mesmo as intuições mais profícuas terminam condenadas ao rol das curiosas impressões. Foi assim que certa vez iniciei e terminei quase que num só tempo a inspiração de que, no mundo, paradigmaticamente, existem dois tipos de pessoas: as construtivas do outro e as destrutivas do outro.

05. As primeiras pessoas, de olhar construtivo, são aquelas que restauram o humano. Vejam elas mesmas ou contam-lhes um ato duvidoso de alguém, apressam-se em buscar motivos por trás do ato visto ou contado que possam absolver o outro (que nem conhecem) da má ação, para enfim erigi-lo como ator de ato louvável.

06. As segundas, por seu turno, de olhar destrutivo, são aquelas que depredam o humano. Diante do que veem ou ouvem, ainda que aparentemente bom, encontram logo motivos maus por seu detrás, as "segundas intenções" como expressão do qual claramente o senso comum faz uso em sentido pejorativo.

07. Tal distinção paga sua simplicidade e generalidade com o silêncio. Melhor: é ingênua! Academicamente, pois, não parece ter qualquer possibilidade de se firmar. Prudente guardá-la para mim mesmo ou a um círculo bem estreito de conversas, como fiz até a leitura do texto "O Amor Cobre uma Multiplicidade de Pecados", pertencente à "Segunda Série" de As Obras do Amor, de S. A. Kierkegaard. E porque fiz tal leitura, aventurei-me a escrever sobre isso que ora apresento.

08. Certamente Kierkegaard não é um acadêmico endêmico, mas, embora muito raro, coloca à altura da academia o que dificilmente outro mais conseguiria. E nesse seu amparo, deixo-me levar ao ponto de me atrever entrever o que sinto (e apenas sinto) determinante ao futuro da humanidade: o amor. Não esse amor dos poetas, tão arrebatador para alguns quanto desacreditado para outros. Falo do que Kierkegaard considera o amor cristão, aquele capaz de converter-nos ao que outrora chamei de olhar construtivo. Destaco em Kierkegaard:

É sempre a explicação que faz de uma coisa aquilo que ela então vem a ser. O fato ou os fatos estão na base; mas é a explicação que decide. Qualquer evento, qualquer palavra, qualquer ação, enfim tudo pode se explicar de várias maneiras; tal como se diz de modo não verdadeiro que o hábito faz o monge, assim também se pode dizer com verdade que é a explicação o que faz do objeto da explicação aquilo que ele vem a ser. Com referência às palavras, aos atos, à maneira de pensar de um outro ser humano não há nenhuma certeza deste tipo, de modo que a sua aceitação significa propriamente escolher. A maneira de ver, a explicação, justamente por ser possível a diversidade, é uma escolha. Mas ela é uma escolha, e está constantemente em meu poder, se eu sou amoroso, escolher a explicação mais suave. Quando essa interpretação suave ou atenuante explica o que os outros, por leviandade, precipitação de julgamento, rigorismo, dureza de coração, inveja, maldade, enfim, por falta de amor, sem mais nem menos explicam como culpa; quando a explicação atenuante o explica de outra maneira, ela afasta uma culpa depois da outra e assim torna menor a multidão dos pecados, ou a encobre (p. 328-329).

09. Nessas palavras estão, para mim, o cerne do que o amor ao próximo é capaz de fazer sem perceber que o faz, pois ao não descobrir os erros do outro, como diz Kierkegaard, os encobre, se houver. Todavia, não é a única forma de encobrir as faltas do próximo. Na verdade, para Kierkegaard, o amor impede que o amoroso veja e ouça a multidão dos pecados. Somente quando isso não acontece - que é o caso que aqui destaco - é que o amor leva o amoroso, por outras vias, a encobrir os pecados alheios. Primeiramente, pelo calar-se sobre os que são vistos e ouvidos, evitando a multiplicar os pecados ao modo do ditado popular: quem conta um conto, acrescenta um ponto. Sendo assim, quem cala encobre o que acrescentaria se não calasse. Em segundo lugar, temos a forma que destacamos, nas próprias palavras de Kierkegaard mais acima, de o amoroso se haver com o pecado com o qual se depara e que, portanto, é precisamente o motivo deste nosso texto, a saber: dar ao pecado que se vê e se ouve uma "explicação amenizante" que o faz, também assim, invisível. Em terceiro lugar, por fim, sobretudo quando essas duas primeiras vias não conseguem ainda encobrir o pecado, resta o perdão, que, portanto, dentre todas essas atitudes do amor no amoroso, parece-nos a mais excelsa, justamente porque lida diretamente com o pecado que vê e ouve: "o perdão suprime o pecado perdoando" (p. 331).

10. Apesar disso, penso que a segunda via realizada, dispensa a primeira e a terceira. Ademais, se a primeira e a terceira vias, mesmo em suas excelências, reconhecem o erro para, logo depois, encobri-lo, a segunda via que destacamos não importa em tal reconhecimento, pois, em sua excelência, já o fato (o que se vê e se ouve), como verdadeiramente "interpretação suave", não se compreende nunca como erro, falta ou pecado, mas como algo muito ao contrário disso. Consequentemente, lidas as palavras mais acima destacadas do texto de Kierkegaard com a vagarosidade que a maior das atenções nos pede, têm elas, em suma, no meu juízo, a maior capacidade de elucidar o capítulo do qual fazem parte, coincidindo em larga medida com aquele "olhar construtivo" que, de mau jeito, eu procurava às vezes colocar nos estreitos círculos de minhas livres conversas.

11. Apesar dessa abordagem kierkegaardiana, admirável enquanto expressão do amor, uma grave questão se coloca: a da possibilidade de distinção entre o sujeito e sua ação (aqui, no caso, de sua ação quando "má"). Sem isso, o amor que se cala às "maldades", o amor atenuante do "malfeito" e o amor que perdoa o "agir pervertido", todos esses partícipes do "olhar construtivo" do humano implicarão, paradoxalmente, numa espécie de admissão do "mal", que seja ao modo de omissão frente à "maldade", quando caberia, isso sim, prontamente denunciá-la. Não seria por isso que uma forte tradição personificou a "maldade" em um "anjo decaído", fazendo dos próprios homens que a praticam, agora sem contradição, as primeiras vítimas desse "mal"?

*Perdoando alguns erros de digitação do texto que aparece no decorrer do vídeo abaixo, trata-se de um trabalho edificante, principalmente àqueles que já, por amor, se dedicam às "causas perdidas". Música: "Dom Quixote" - Engenheiros do Hawaii; Imagens: Filme "Amor Sem Fronteiras.


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