Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





26 de jun. de 2012

TEXTO XXXII: Heráclito e Parmênides - Introdução à Ordem do Mundo


Rodrigo Rodrigues Alvim

01. É importante observar a dinâmica que pretende pensar o mundo ao modo dos filósofos, ao modo do que, então, se define pela inteligibilidade da dita realidade, a sua razão.

02. Trata-se de algo que não se encontra propriamente em conteúdos, mas na forma do proposto, de tal maneira que se equivoca nesse sentido quem se prende à simplicidade da diferença entre, por exemplo, a proposta de Tales e a de Anaximandro quanto à origem ou governo das coisas, na umidade (água) ou num indeterminado (ápeiron: ἄπειρον), respectivamente, quando aí é decisivo observar que se assemelham quanto à proposta de se referir ao princípio do mundo no próprio mundo, contra a tendência mítico-religiosa predominante de anunciá-lo para além das nossas condições, ou seja, de anunciá-lo como de origem divina, na vontade dos deuses que sequer se entendem entre si, conforme reclame de Xenófanes de Colofão.


03. Ainda formalmente, Tales e Anaximandro assemelham-se também na proposta de que todas as coisas estejam interligadas e são intercambiáveis por serem compostos por esse mesmo elemento “arqueológico” [elemento, ou seja, algo simples, não-composto, pois, se composto, importaria, antes, no que o compõe, este, sim, agora, rigorosamente simples e “a-tômico” (não divisível)]. As coisas deixariam de ser, assim, de governo distinto entre os seus diferentes deuses, cada qual responsável por um aspecto do mundo, aspecto isolado dos demais. A proposta filosófica faz o mundo formalmente ao alcance da compreensão humana, pois tem sua origem e governo no próprio mundo que habita. Por sua capacidade racional específica, pode o homem abarcar as coisas do mundo nas relações entre si, pelas quais elas se definem. Não há, pois, significativa diferença entre Tales e Anaximandro naquilo que os fez do mesmo modo filósofos. Então, podemos dizer que a indeterminação enquanto princípio que tudo determina e que, portanto, sendo primeiro, não-pode-ser-determinado, como claramente afirmou Anaximandro, já estava presente no "úmido" de Tales, na sua "água" que queria ser isso mesmo: aquilo que tudo determina e que, por conseguinte, não pode ser determinado.


04. Vê-se, então, que, desde os primeiros filósofos do Ocidente, é a forma do pensamento que importa, ainda que associado à sua matéria, porque a sua matéria mesma quer dizer que a origem do mundo está no próprio mundo e o faz inteligível por si só. Nesses termos, apesar do conteúdo de uma experiência do mundo, a novidade a que se chamou filosofia está nas "abstrações" de um encadeamento racional, pois um indeterminado não se predica dos dados sensíveis que se nos mostram, nem das representações e imagens oferecidas nas narrativas míticas e religiosas.

05. Voltemos, assim, para o foco do primeiro parágrafo, para a dinâmica que pretende pensar o mundo ao modo dos filósofos, ao modo do que se define pela intelegibilidade da dita realidade, a sua razão.

06. Paradigmaticamente, essa dinâmica se revela nas considerações de Heráclito de Éfeso e de Parmênides de Eleia, excludentes entre si para muitos comentadores, nem tanto assim para alguns poucos. Apresentaremo-las aqui de maneira dramática, ou seja, opondo-as radicalmente, como caricaturas que ressaltam alguns traços, aparentemente deformando, para nos aproximar do que lhes é próprio.

07. Parmênides se detém na mais radical das oposições: “o-que-é é; o-que-não-é não é”. Se além de o-que-é absolutamente não pode ser, então o-que-é jamais deixou de ser, pois se o tivesse deixado de ser, já não seria, pois do não-ser não pode vir a ser. Heráclito, por sua vez, parece já se deter nas relações admitidas como que na interioridade de o-que-é, em duas teses ou afirmações excludentes que, assim se contradizendo, são negações também, negações uma da outra. Heráclito vê nisso uma correspondência com os opostos que se manifestam no mundo, num mundo ora quente ora frio, por exemplo. Daí pensa que a contradição é a mola e essência da realidade, sempre nessa tensão que se resolve num outro que, como nova tese, é nova oposição a uma outra tese e, assim, nova tensão a se resolver, em movimento perpétuo. Heráclito se encanta com essas oposições, pois os opostos ao mesmo tempo se confirmam mutuamente: o maior, por exemplo, é a negação do menor e o menor, a negação do maior; no entanto, o maior só se afirma em face do menor e vice-versa, ou seja, um afirma o outro, um existe pelo outro, apesar de se negarem e se excluirem ao mesmo tempo. Por força da transitoriedade das coisas no mundo, parece a Heráclito que tais coisas são assim mesmo, por entre essas oposições (dialéticas).

08. Parmênides avalia que esse caminho trilhado por Heráclito é ilusório, pois não nos permite decidir com segurança. É o caminho dos sentidos, afeito apenas a opiniões. Mesmo entre os não eruditos, assim se dá: quando, senso comum, não estamos certos do que nos ocorre em pensamento, dizemos, quando o emitimos, se tratar de uma "opinião" (do grego doxa), sendo, pois, aceitáveis outras opiniões distintas da nossa, do mesmo modo que nos é facultado mudar de opinião a qualquer tempo. Ademais, quando alguém emite o que classifica como sua opinião, sentimo-nos confortáveis em proferir diferentemente. Por consequência, no caminho dos sentidos e das opiniões tem-se o múltiplo e mutável, sem qualquer certeza. Parmênides, entretanto, aponta para um caminho não ambíguo para se trilhar rumo ao conhecimento do verdadeiro, com segurança. Aliás, "conhecimento do verdadeiro" é, em Parmênides, uma repetição e, como tal, desnecessária: "conhecimento" (do grego épisthéme) é, inevitavelmente, apreensão do verdadeiro e "verdadeiro" é aquilo que, não podendo ser pensado de outro modo, só pode ser assim mesmo. Também aqui, essa compreensão se revela entre os menos eruditos, pois quando, senso comum, estamos diante de duas pessoas que afirmam conhecer sobre determinado assunto, ficamos na expectativa de que ambos manifestem o mesmo sobre tal assunto, se é que realmente ambos o conheçam. Este parece ser o caminho da razão (no grego: λόγος), da lógica: o evidente é o que só pode ser visto (do latim, vides) do mesmo modo, sem confusão com aquilo que ele não é, claro e distintamente. Logo, no caminho da razão e do conhecimento tem-se o universal e imutável.

09. Tal clareza e distinção parecem asseguradas pelo que se denominou, pouco mais tarde, princípio de identidade, um princípio da razão, sem o que ela, a razão, então não ocorre. Trata-se da evidência de que algo é idêntico a si mesmo, proferido, em termos absolutos por Parmênides, do seguinte modo: o-que-é é. Assim, além de o-que-é, trata-se de um absurdo, pois não-é. O-que-é, que certamente é tudo o que é, como está posto, não admite outro, pois, desse modo, não seria tudo o que é. Somente o-que-é pode ser rigorosamente pensado e, se é, já se trata de o-que-é. Parece uma redundância tríplice dizer: o-que-é é o que é [1) o-que-é 2) é 3) o que é]. Comumente, em nossas atuais equações do mundo, essa redundância se mostra principalmente através do signo da igualdade (=), também chamado de "razão" ou de "justa proporção", dentre outros. O mundo seria como que uma grande equação, um desdobramento que, resolvido, redunda no mesmo. Se o-que-é é verdadeiro, o falso é a sua negação. Encontra-se nisso a expressão de dois outros princípios da razão parmenidiana: o princípio do terceiro excluído (o que faz dessa razão uma razão binária: ou é ou não é, ou é verdadeiro ou é falso, não havendo outra possibilidade) e o princípio da contradição (em termos absolutos: um mesmo não pode ser e não ser; em termos relativos, não do interesse de Parmênides, mas suficientemente considerados ulteriormente por Aristóteles: uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e numa mesma relação). Ilustremos:

- Princípio de identidade (também chamado de Princípio de não-identidade) : X é (idêntico a) X:

X=X, uma tautologia, é obviamente verdadeiro, sendo, pois, a sua negação, falsa.

- Princípio do terceiro excluído: ou X é ou não é:

ou X=Y ou X ≠ Y possuem valores de verdade (ou verdadeiro ou falso) necessariamente opostos.

- Princípio de contradição (também chamado de Princípio de não-contradição): Ao mesmo tempo, X não pode ser e não ser Y, mas X pode ser e não ser em relações diferentes; em tempos diferentes, X pode ser e pode não ser, ainda que em mesma relação:

Ao mesmo tempo, X=Y e X≠Z (relações diferentes).
Em tempos diferentes, embora em mesma relação, (“antes”) X=Y e (“agora”) X ≠ Y.

10. Em Heráclito, as oposições são ambivalentes, conforme dissemos antes: os opostos, ao mesmo tempo em que se excluem, se afirmam, de tal modo que não seria possível a um dos extremos excluir o outro sem excluir a si mesmo. A solução, explicitada na transição da modernidade para a contemporaneidade por G. W. Friedrich Hegel, foi a negação do princípio do terceiro excluído da lógica de Parmênides, pela consideração de um terceiro a que chamou de “síntese”, conforme o esquema abaixo:

TESE     X     TESE 

              ↓ 

          TESE

X nesse esquema significa uma oposição, uma oposição entre teses radicalmente extremas. Assim, se tomamos por referência a tese da direita, a da esquerda é a contra-tese, a anti-tese; do mesmo modo, se tomamos a tese da esquerda como referência, é a da esquerda que é a antítese.


O vetor ↓ significa a condução da oposição das duas primeiras teses a uma terceira tese, que é como que uma união por suprassunção (um superar conservando) das teses anteriormente em tensão. Só que, sendo uma nova tese, ela também só se afirma pela sua tese oposta, inaugurando uma nova tensão, que é suprassumida numa nova síntese. Temos assim um esquema infinitamente mais amplo e de movimento perpétuo em todas as direções:


 (...)


TESE     X     ANTÍTESE 

             ↓

SÍNTESE
(Nova) TESE     X     ANTÍTESE 

                         ↓ 

                       (...)

11. Como se vê, tal movimento (vir-a-ser ou devir) não tem origem e nem fim, sendo o mundo eterno. Também não é um movimento arbitrário ou mágico, mas expressa uma ordem, uma inteligibilidade, uma razão, segundo lemos no seguinte fragmento de Heráclito: "Este mundo, igual para todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez; sempre foi e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medida." (Fragmento, 30).

12. Mais uma vez aqui, embora de modo não predominante, há como se vê alguma proximidade com o que Parmênides defenderá mais tarde, pois se pode dizer que o mundo para Heráclito é único e mesmo, comportando assim todo existente. Por isso, além dele, não é. Contudo, o todo, único e mesmo que é, Parmênides considera-o finito e imutável, enquanto, para Heráclito, trata-se de um movimento infinito pela mola da contradição que se harmoniza: Eles não compreendem como, separando-se, podem harmonizar-se: harmonia de forças contrárias, como o arco e a lira. (Fragmento, 51).

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