Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





15 de out. de 2011

TEXTO XV: A Filosofia de Aristóteles

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. É importante a observação que Peter de Vries, em seu romance Reuben, Reuben, de 1964, fez acerca de Aristóteles: “a prova de seu domínio sobre o homem ocidental é que ele domina o pensamento de gente que nunca ouviu falar a seu respeito”.

02. De fato, desde o seu próprio tempo, século IV a. C., Aristóteles foi impressionante. Um dos mais destacados discípulos de Platão, chegou-se mesmo a esperar que ele viesse a suceder seu mestre à frente da Academia. No entanto, como isso não aconteceu, fundou ele sua própria escola em Atenas, o Liceu, não obstante fosse ele da cidade de Estagira, que ficava ao norte da Grécia de então, vizinha da região da Macedônia. Aliás, Filipe II, rei dessa região e pai de Alexandre, convidará Aristóteles para educar seu filho, este que, mais tarde, conquistará a própria Grécia e se expandirá por tantas outras terras, na construção do primeiro grande império a ser conhecido na parte ocidental do mundo.

03. Também conhecido como “o estagirita”, Aristóteles costumava lecionar passeando com seus discípulos por caminhos ou corredores cobertos (peripatos), o que redundará no recebimento de um segundo cognome, “o peripatético”.


04. Tomando o seu pensamento aqui e ali, pode-se interpretar que Aristóteles se opunha em muito a Platão. Entretanto, de um modo geral, o que se percebe é que as questões que conduzem a sua filosofia são precisamente aquelas estabelecidas pelo seu mestre e que, muitas vezes, suas diferentes respostas a tais questões, visavam a, por princípio, não contestar Platão, mas a atualizar a filosofia ao modo crescente como ela se definia, ou seja, como um discurso que, pouco a pouco, deixa o recurso das compreensões míticas e alegóricas (ainda que simplesmente para se fazer acessível a um público maior) para se deter à compreensão conceitual, ao discurso que, por essa sua distinção, passou a ser denominado, na tradição cultural desta nossa parte do mundo, de “filosófico”.

05. É nesse sentido que esse novo pensamento (logos) será conhecido como lógica, o “instrumento” (organon) do qual o verdadeiro filósofo deve se servir. Essa preocupação de Aristóteles o fez bem observar e sistematizar os meios pelo quais desenvolvemos o poder de convencimento e de persuasão dos nossos interlocutores. (Um esquema dessa sistematização, também formalizada pelos medievais, pode ser vista no texto “Elementos de lógica aristotélica”, neste mesmo Blog, dentro da categoria “Lógica”). Tal sistema argumentativo aristotélico predominou entre nós, quase que absolutamente, até o século XIX.

06. Imediatamente, é possível dizer que Aristóteles recusa o dualismo platônico. Não há, para ele, um mundo para além deste no qual nos encontramos e, tantas vezes, oposto a este, como bem ilustrado por Platão na sua “Alegoria da caverna”. O mundo existente para Aristóteles é este e somente este.

07. Por essa recusa do dualismo ao modo platônico, Aristóteles escreveu que "nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos", isto é, que nada há no pensamento humano equivalente ao que Platão tomou por ideias inatas, por dados que já teriam nascido conosco e que nos seriam como que relembradas por sua evidência, ou seja, como algo que não pode ser (pensado) de outro modo e que, não tendo contraditório, só pode, portanto, ser assim mesmo como universalmente se apresenta à razão. Por isso, muitos consentirão que Aristóteles é um empirista, um filósofo que defende que o conhecimento se constrói a partir de dados observacionais ou sensíveis. Todavia, Aristóteles escreveu livros não somente destinados a tratar de entidades da physis, mas também outros, destinados, por sua vez, a tratar de entidades não propriamente “naturais”, mais gerais e abstratas e, contudo, determinantes da própria “física”. Costumava qualificá-las de propriamente filosóficas, pois da atenção de um “conhecimento das primeiras causas e dos primeiros princípios”.

08. Mais tarde, na Biblioteca de Alexandria, por um acaso feliz, essas obras das entidades não propriamente “físicas” serão chamadas de “metafísicas” (da contração dos termos gregos μετα, meta, que significa “depois de” ou “além de”, e Φυσις, physis, que significa físico ou natureza; também da expressão grega metâ tà physikò, que quer dizer “depois dos tratados da física”), pois foram catalogados e colocados detrás dos livros referentes às entidades da natureza imediata. Assim, nas escolas, “metafísica” passou a ser interpretada como tratado de entidades não adequadamente “físicas”.

09. Na sua “metafísica”, que Aristóteles chamava “filosofia primeira”, ele escreve que há causas gerais que nos permitem perguntar, a fim de se conhecer algo, por quatro determinantes que sobre este atuam e o fazem ser o que é: a causa formal, a causa material, a causa eficiente e a causa final. Em expressiva medida, Aristóteles chega a essas causas gerais por uma revisão da literatura filosófica, dando-nos como que uma primeira história da filosofia, da qual se tem registro. Porém, conclui que, antes dele, nenhum filósofo elaborou o seu pensamento a partir dessas quatro causas conjuntamente, sobretudo pela ausência da causa final, que julgou ele pela primeira vez acrescentar às demais. Destaca-se, pois, que a sua filosofia é finalista ou teleológica (telos, em língua grega, significa “fim”): os acontecimentos do mundo se dão porque, em resumo, tudo procura alcançar o seu lugar natural, o seu justo lugar, sua específica finalidade.

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10. Se são causas gerais, podemos perguntar por elas relativamente a qualquer coisa, a fim de conhecê-la. Por exemplo: tomemos uma estátua da deusa Atena no jardim do Palácio de Versalhes. Sua causa formal (como o próprio nome já diz, sua forma) é a deusa Atena; sua causa material (matéria de que a estátua é feita) é o mármore; sua causa eficiente (o que aplica a forma à matéria) é o escultor; sua causa final (finalidade da estátua) é enfeitar um ambiente.

11. Também na sua “metafísica”, pela recusa da dualidade do mundo promovida por Platão, necessitou Aristóteles recolocar e reinterpretar por diferente via o problema do Ser e do devir (ou vir-a-ser), o que atingiu pela elaboração de dois conceitos importantíssimos em seu pensamento, apresentados pelos termos “ato” e “potência”. Para facilitar, podemos fazer a seguinte correspondência:


12. Propôs Aristóteles que as coisas se movem no sentido de atualizarem nelas as suas potências. Logo, há em cada coisa uma inteléquia (o governo de uma inteligência) que a destina a se tornar isso ou aquilo (a sua finalidade). Cada coisa deseja aquilo do qual carece, tendo nela já essa falta que a destina. Desejam as coisas como que voltar para casa, cumprindo a sua natureza ou essência, o que justifica os movimentos, a mutabilidade do mundo. Por outro lado, as coisas já têm o seu “lugar natural”, o que implica reconhecer, enfim, a imutabilidade de tudo e a sua perfeição. Daí a proposição da existência do “Ato Puro”, instância ou entidade na qual não há potência e, por conseguinte, não há movimento. As coisas buscam atualizar em si o que sempre se encontrou realizado no Ato Puro, que, assim, move todas essas coisas sem se mover (pois o movimento significa potência e aqui se trata do Ato Puro). O Ato Puro, perfeito e divino, tudo move por atração, ou seja, é ele completamente indiferente às coisas, sempre imóvel em sua completude. Não há, consequentemente, como confundir esse Deus aristotélico como o Deus criador do mundo e neste interventor que advirá do cristianismo, muito menos com esse Deus que se quer passional, que ama e se deixa atrair pelo mundo.

13. O-que-é, o Ser, portanto, em sua totalidade, é o que é e, sendo a totalidade, não pode ser de outro modo. Ao mesmo tempo, Aristóteles diz que este ser se diz de vários modos, ou seja, cada modo do Ser é um existente possível, um ente como que ao lado de outros modos do Ser, de outros entes. Por exemplo, o ser humano não pode pretender-se o todo existente, o Ser, mas somente um modo do Ser, um modo possível de existência. De forma semelhante, em outro nível, eu sou não o ser humano, mas apenas uma amostra possível de ser humano. Assim, em toda minha transição, procuro aperfeiçoar-me enquanto ser humano, atualizando em mim as minhas potências. Estou dentro da espécie humana e, portanto, ainda que eu alcance a minha perfeição (enquanto um homem), nunca poderei ser outra coisa que ultrapasse a humanidade e, muito menos, o Ser enquanto Ser.

14. Todas essas questões metafísicas são basilares na constituição e compreensão do mundo, da physis, do cosmos. A concepção cosmológica aristotélica dominará as mentes dos homens até o advento de Copérnico e Galileu, ou seja, por dois mil anos. Calcada na experiência imediata, Aristóteles propôs a Terra imóvel, no centro do Universo, em torno da qual transladam, por ordem e dentro de esferas cristalinas perfeitas, a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. No extremo, até onde a nossa visão alcança, encontram-se as estrelas. Estas são as fronteiras do Universo e são fixas, o que se observa pela manutenção das distâncias entre elas. A finitude do Universo garante a sua perfeição, pois a indeterminação é sinal de imperfeição. Portanto, diferentemente de como se pensará mais tarde, tudo o que é finito e bem definido é perfeito relativamente ao oposto, a tudo o que é infinito e, dessa maneira, indefinido, impreciso. Quanto mais próximo da Terra, mundo sublunar, tanto mais imperfeito, pois em movimentos “retilíneos” as coisas pretendem estar onde não se encontram (potência – movimento – imperfeição). Já no mundo supralunar, os movimentos são circulares, podendo ser tomados como pseudomovimentos, porquanto as coisas se dirigem, em última instância, para o ponto onde já se encontram. Essa concepção cosmológica de Aristóteles será apresentada em linguagem matemática, entre os séculos II e III d. C., por Cláudio Ptolomeu, ficando, desde então, o geocentrismo conhecido como o sistema cosmológico aristotélico-ptolomáico.


15. Não obstante toda essa sabedoria teórica, a filosofia, para Aristóteles, pode igualmente ser traduzida em sabedoria prática, naquilo que reflete sobre a ação dos homens, na ética e na política sobremaneira.

16. A excelência ética ou a virtude se realiza em contextos variados, o que faz com que a justa medida ou termo médio de uma ação humana não possa ser confundido com uma mediana do tipo matemático. Esta mediana equivale a quanto de paixão é razoável numa determinada ação pela qual um ser humano decide. Portanto, em nossos atos não devemos nos exceder e nem ficar aquém dessa mediana. Como as variáveis que se pode enfrentar na vida não podem ser predeterminadas e premeditadas, a ética sugerida por Aristóteles (para a boa educação de seu filho Nicômaco) não poderia ser uma obra de máximas universais de conduta, dadas antecipadamente e de uma vez por todas. Nesse sentido, Aristóteles recomenda que, para saber se se foi prudente, deve-se consultar a comunidade daqueles que são considerados prudentes. Tal sabedoria prática advém da boa educação, que cria em nós o hábito ao agir virtuoso ou para ações justas. Garantir essa boa educação desde tenra idade e de modo constante está diretamente vinculado à participação de uma polis que tanto mais justa possa ser. Entretanto, mesmo na política, Aristóteles não faz defesa de uma cidade-Estado perfeita, como Platão o fez na sua obra A república. Aristóteles enumera três formas de governo possíveis, de algum modo já existentes em alguma cidade-Estado da Grécia de então: a monarquia (o governo de um só), a aristocracia (o governo dos melhores) e o que hoje chamamos democracia. Todas essas constituições políticas devem buscar a felicidade da coletividade, devendo, por isso, cuidar para que não ocorra a sua degeneração em tirania, em oligarquia (governo de poucos) e em demagogia, respectivamente à ordem dada anteriormente.

17. Desde quando a Grécia foi conquistada pelos macedônios, ditos bárbaros pelos helenos, Aristóteles passou a ser visto com desconfiança pelos atenienses, pois fora precisamente ele o responsável pela educação de Alexandre Magno, a quem, agora, estavam todos submetidos. Pela educação recebida, Alexandre ficou marcado pela cultura helênica (o modo dos gregos serem gregos), apresentando-a aos demais povos por ele igualmente conquistados, fundando, assim, o que os historiadores passaram a denominar “cultura helenística” (o modo dos não-gregos serem como os gregos). Mas Alexandre, apesar dos seus grandes feitos, morreu prematuramente, deixando insustentável a permanência de Aristóteles em Atenas. Perseguido, partiu dessa cidade, alegando assim evitar (em memória de Sócrates) que os atenienses cometessem um segundo atentado contra a filosofia. Morreu um ano depois, aos sessenta e dois anos.


O QUE É FILOSOFIA? LEIAMOS AS PALAVRAS DO PRÓPRIO ARISTÓTELES SOBRE ISSO:

“Visto que esta ciência (a filosofia) é o objeto das nossas indagações, examinemos de que causas e de que princípios se ocupa a filosofia como ciência; questão que se tomará muito mais clara se examinarmos as diversas ideias que formamos do filósofo. Em primeiro lugar, concebemos o filósofo principalmente como conhecedor do conjunto das coisas, enquanto é possível, sem contudo possuir a ciência de cada uma delas em particular. Em seguida, àquele que pode alcançar o conhecimento de coisas difíceis, aquelas a que só se chega vencendo graves dificuldades, não lhe chamaremos filósofo? De fato, conhecer pelos sentidos é uma faculdade comum a todos, e um conhecimento que se adquire sem esforço em nada tem de filosófico. Finalmente, o que tem as mais rigorosas noções das causas, e que melhor ensina estas noções, é mais filósofo do que todos os outros em todas as ciências. E, entre as ciências, aquela que se procura por si mesma, só pelo anseio do saber, é mais filosófica do que a que se estuda pelos seus resultados; assim como a que domina as mais é mais filosófica do que a que se encontra subordinada a qualquer outra. Não, o filósofo não deve receber leis, mas sim dá-las; nem é necessário que obedeça a outrem, mas deve obedecer-lhe o que seja menos filósofo.(...). Pois bem: o filósofo que possuir perfeitamente a ciência do geral tem necessariamente a ciência de todas as coisas, porque um homem em tais circunstâncias sabe, de certo modo, tudo quanto está compreendido sob o geral. Todavia, pode dizer-se também que se torna muito difícil ao homem alçar-se aos conhecimentos mais gerais; as coisas que são seus objetos como que estão mais distantes do alcance dos sentidos.(...). De tudo quanto dissemos sobre a própria ciência resulta a definição da filosofia que procuramos. É imprescindível que seja a ciência teórica dos primeiros princípios e das primeiras causas, porque uma das causas é o bem, a razão final. E que não é uma ciência prática, prova-o o exemplo dos que primeiramente filosofaram. O que, a princípio, levou os homens a fazerem as primeiras indagações filosóficas foi, como é hoje, a admiração. Entre os objetos que admiravam e que não podiam explicar, aplicaram-se primeiro aos que se encontravam ao seu alcance; depois, passo a passo, quiseram explicar os fenômenos mais importantes; por exemplo, as diversas fases da Lua, o trajeto do Sol e dos astros e, finalmente, a formação do universo. Ir à procura duma explicação e admirar-se é reconhecer que se ignora. (...). Portanto, se os primeiros filósofos filosofaram para se libertarem da ignorância, é evidente que se consagraram à ciência para saber, e não com vista à utilidade.” (Metafísica, Livro I, 2).

2 comentários:

  1. Rodrigo,
    Só a Filosofia para defini-la! Quanto às demais ciências, qual pode defini-la por seus próprios métodos? Por isso, a Filosofia é sopa nutritiva donde emergem as ciências. Primeira, jamais primitiva! Mas se da Filosofia nascem as ciências, qual cientista não é filósofo? Talvez o que queira a utilidade e não entenda que o saber é em si um bem! Viva a filosofia!

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  2. Olá, Bruno! Muitíssimo obrigado pela sua leitura e manifestação. De fato, a concepção de uma coisa qualquer, o conceito que a faz ser o que ela é, evitando que ela se confunda com outra coisa que ela não é ou que lhe seja apenas acidental, é atividade filosófica. Isso faz parte daquilo que contemporaneamente Wittgenstein chamou de "terapia da linguagem". Se isso é mesmo assim, o que poderia definir a filosofia senão a própria filosofia? Quanto às demais ciências, elas se fazem a partir da anterior definição de seus objetos e métodos e é, nesse sentido, que elas não são autorreflexivas por sua natureza. Um biólogo, por exemplo, assim é reconhecido quando se interessa pelos objetos já delimitados à biologia e quando faz uso de métodos de investigação já tomados como do campo da biologia. Um biólogo então se faz a partir da concepção que se tem da biologia. Quando um biólogo questiona o que é a biologia, seus objetos e seus métodos, rigorosamente ele atua nisso como um filósofo e não propriamente como um biólogo. Por exigências mais pragmáticas que as ciências particulares têm (haja em vista as suas técnicas), geralmente um cientista não consegue ultrapassar os seus objetos e limites metodológicos, confirmando o que Kuhn tomou como "ciência normal". Quando tal ultrapassagem ocorre, fazendo questões consideradas "estranhas" para os seus pares, pode produzir mais do que inovações em sua área de conhecimento; pode expressar verdadeiras revoluções. Não é por acaso que todos os cientistas que promoveram tais revoluções em suas ciências são comumente também chamados de filósofos, ainda que academicamente não o sejam. De fato, perguntar por "o que é isso?" é fazer com que isso retorne à sua origem e nascedouro: é uma questão primeira, primordial, anterior a qualquer utilidade. O que a move é o saber pelo saber, é o saber mais, é o simples comprometimento com a verdade e com o rigor de distinção. Por isso tudo, posso dizer que quando as coisas vão bem, a filosofia parece que morreu. A filosofia é perigosa porque implica em revolver o que já está posto, o que é de praxe e da rotina. Mas em tempos de perigo, a filosofia ressurge surpreendentemente ou, o que dá no mesmo, quando a filosofia ressurge ao ponto de ser notada, é porque estamos em perigo. Viva a filosofia!

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