Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





20 de jan. de 2012

TEXTO XXI: Repente para Pensar III: Loucura

Rodrigo Rodrigues Alvim

Do meu encontro com Altamir Andrade (teólogo e filósofo), Márcio Alvim (físico), Marcos Gonzaga (artista plástico) e Marina Tavares (enfermeira).

01. Quando escrevi “Sobre Estamira” (Texto XX, dentro da categoria "Antropologia Filosófica", neste mesmo Blog), iniciei o texto com uma citação de Friedrich Nietzsche. Não por acaso, mas alguém poderia dizer que hoje se toma este filósofo por motivos tão díspares entre si e, muitas vezes (o que talvez seja pior), tão distantes do que os mais renomados estudiosos de sua obra entendem ser os reais motivos desse pensador, que isso também caberia ao meu caso. No entanto, não estava escrevendo uma tese, na qual tal relação fosse importante defender e, menos ainda, não sou um especialista em Nietzsche para que pudesse participar de um bom debate acadêmico a esse respeito.



02. É, pois, nesse espírito de liberdade (demais para alguns, mas – por Deus! – estamos num Blog), que eu chamei à cena esse filósofo. E, agora (para descabelamento ainda maior desses mesmos), chamo igualmente ao centro das minhas elucubrações Vincent Van Gogh. O que têm eles em comum? Poderia eu dizer que eles foram coetâneos: Nietzsche viveu entre 1844 e 1900; Van Gogh, entre 1853 e 1890. Porém, o que me interessa é que ambos morreram em estado de “loucura”, como o de Estamira.



03. “Estamira” é um assunto que nos toca de perto, pois ainda que solitários fôssemos, somos seres expressivos. Ou seja: somos seres expressivos, antes mesmos de pretendermos nos comunicar (uma das funções da linguagem, hoje em destaque, mas, como se vê, apenas uma dentre outras). Se estou triste, meu semblante pode expressar esse meu sentimento, sem nenhuma intenção de comunicá-lo à outrem. Aliás, às vezes, expressões podem contrariar o que queremos comunicar, tal como o “sorriso amarelo”. Contudo, efetivamente somos seres gregários e isso nos impõe uma existência que depende da confirmação de si mesma por outras existências humanas. Assim, esforçamo-nos para como que sairmos de nós próprios e nos darmos aos outros. É uma peleja, pois se é certo que nos expressemos, agora e muitas vezes mais, para nos comunicar aos outros, não é tão certo que realmente consigamos nos comunicar aos outros. Há muita significação, mas não há como certificarmo-nos de que a codificação e a decodificação são afins, pois isso implicaria outras codificações e decodificações mais. Talvez, por isso, confessamo-nos ao melhor amigo, mas, mesmo assim, continuamos com aquela sensação de que, apesar de todo empenho de todas as partes (minha e do meu amigo), ele ainda não me compreendeu fidedignamente. Afinal, embora eu seja eu mesmo, sinto-me embaraçado também diante da pergunta “quem sou eu?”. A peleja é de todos e a maioria, de alguma forma, tem a impressão de ser compreendido – ainda que sem garantias. Essa maioria consegue sentir-se sintonizada nesse código pretensamente padrão a que chamamos “sociedade”, pelo qual a singularidade propriamente dita se perde. Do contrário, são singularidades “brutas”, “in-compreendidas”, a quem denunciamos como “anormais” ou vítimas da loucura.

04. Poderíamos dizer que essas minhas palavras não são adequadas a Nietzsche, a Van Gogh e nem mesmo a Estamira, pois todos eles são ou foram vítimas de uma loucura de causa psico-fisiológica (o que, ao que parece, não é o caso descrito acima, que eu poderia denominar “existencial”). Isto é verdade, mas nem tudo termina aqui.

05. No caso de Nietzsche, segundo Christoph Türcke em sua obra “O louco – Nietzsche e a mania da razão”, para a loucura desse filósofo não se encontrou explicação médica ou psicológica, pelo menos não de forma suficiente:

Já se levantaram as mais diversas hipóteses sem se conseguir qualquer prova: amolecimento cerebral herdado do pai, lesão cerebral como consequência de sífilis ou consumo de drogas, uma forma rara e extrema de epilepsia, trauma quando da ruptura de amizade com Wagner, ou simplesmente psicose maníaco-depressiva.

06. Basicamente, foram as mesmas hipóteses levantadas em relação a Van Gogh por Paul Gachet, por Dietrich Blumer, por Karl Jaspers, por Paul L. Wolf e por Kay Redfield Jamison, dentre outros. E se Nietzsche teve um Richard Wagner em sua vida, este fica representado à altura por um Paul Gauguin na vida de Van Gogh. (Estou sabendo que o meu amigo Marcos Vinícius Leite está para romper comigo a qualquer hora!).

07. Parece-me, todavia, que importa a Türcke não negar aspectos fisiológicos do processo de enlouquecimento de Nietzsche, mas precisamente mostrar o quanto esse mesmo enlouquecimento está entrelaçado com o seu pensamento filosófico. Nesse aspecto, Türcke ressaltou palavras do filósofo em que este último parece ter consciência do quanto estão estreitadas a sua frágil saúde mental com a sua filosofia. Escreveu Nietzsche em “Crepúsculo dos ídolos”:

Este rapaz está ficando prematuramente pálido e sem vitalidade. Seus amigos dizem: a culpa é desta e daquela doença. Eu digo: que ele tenha ficado doente, que ele não tenha resistido à doença, foi já a consequência de uma vida empobrecida [vida empobrecida: “a morte de Deus”, o fim da metafísica: “Desaparece então toda verdade objetiva, na qual o intelecto humano poderia agarrar-se para fazer face à instabilidade da labuta cotidiana e a alma poderia encontrar repouso.” (Türcke).].

08. Escreve Nietzsche também em “Ecce homo”:

Se é que se tem de alegar alguma coisa contra a doença, contra a fraqueza, isto consiste no fato de que neste estado acaba se apagando no homem o próprio instinto de cura, ou seja, o instinto de defesa e de arma. Não se sabe desembaraçar-se de nada, não se sabe levar a cabo nada, repelir nada – tudo fere. Pessoa e coisa se envolvem demais, as vivências tocam por demais profundamente, a recordação é uma ferida purulenta. Estar doente é uma espécie mesma de ressentimento, [pois] nada consome mais depressa a gente do que o ressentimento [ressentimento: negação ou inversão dos valores, do que já está posto].

09. Como Nietzsche tem lucidez trágica de sua loucura, também Van Gogh a tem da sua, bem expressa, neste caso, em sua repulsa em viver, conforme a sua biografia por Ingo Walther, com os outros doentes mentais de hospitais psiquiátricos. É bem ver o mundo por cores ainda difíceis de comunicar para ser bem compreendido, sensação que o “Louco” da "Gaia ciência", de Nietzsche, em sua solitária constatação, balbuciou:

Venho cedo demais, ainda não é meu tempo. Esse acontecimento monstruoso está em curso e não chegou aos ouvidos dos homens.





Ao lado, um dos mais famosos quadros de Van Gogh: Noite Estrelada (Starry Night)



10. Por um poema cantado, talvez finalizemos melhor o que Van Gogh e Nietzsche viveram. Se daí vier alguma emoção é porque tivemos, penso eu, por um lapso que seja, a capacidade de revisitar a instância de nós mesmos da qual parece que não há como sair: como pode tanta confusão e loucura em tão clara luz?

Abaixo, AUDIOVISUAL
(Vincent, música, letra e interpretação de Don McLean):




4 comentários:

  1. Um texto com a marca da finesse e sofisticação (se já não me encontro redundante nas sete primeiras palavras do comentário) do meu amigo Rodrigo. Uma reflexão que alinhava com mão seguras o tecido do “texto XXI” (hoje estou, mesmo, redundante!). No fundo quero dizer que é um texto para exegese e que, hoje ou amanhã (que nunca significam hoje ou amanhã) escreverei uma reação a essa cirurgia da loucura feita com o bisturi do coração. Obrigado pelas palavras! Abraços!

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  2. Primeiramente preciso ressaltar que esta postagem ficou de alguma forma diferenciada. Visivelmente linda. Colorida. Encantadora. Agradável. Com conteúdo muito interessante. Assim, subjetivamente diferenciada.

    Saliento ainda que quão fino e sofisticado é aquele que comentou anteriormente, não é?

    Interrogo que o seu amigo Marquinhos não iria romper só daqui há 30 anos?

    PS: A propósito: poderia me dizer como pode tanta confusão e loucura em tão clara luz?

    Poderia me dizer que garantia tem aqueles que compõe aquela sociedade que despreza as singularidades de não se tornar uma algum dia ? Quem pode se assegurar que está ileso a loucura?

    Poderia me dizer onde se encontra a sabedoria (sophia) desta sociedade de agir de tal forma?

    No mais ... silêncio, reflexão e primeiramente admiração profunda por esta postagem.

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  3. "como pode tanta confusão e loucura em tão clara luz?"

    É imprescindível mastigar e remastigar esse “alimento textual” para, então, poder tecer comentários sobre seu sabor. Primeiro passo para uma boa digestão!


    "Se daí vier alguma emoção é porque tivemos, penso eu, por um lapso que seja, a capacidade de revisitar a instância de nós mesmos da qual parece que não há como sair(...)"


    Obrigada por compartilhar conosco saberes e sabores...

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