Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





6 de jan. de 2012

TEXTO XIX: Sobre a Tolerância Cristã

Rodrigo Rodrigues Alvim

A tolerância
a respeito dos que têm opiniões religiosas diferentes
é tão conforme com o Evangelho e com a razão
que parece monstruoso
haver homens afetados de cegueira
numa tão clara luz.
[JOHN LOCKE] (2).

01. O que aqui se oferecerá (1) é uma das múltiplas refrações que se manifestou no decorrer do desenvolvimento de um trabalho que pretendia esclarecer a confluência da razão moderna e da religião cristã no firmamento da atitude tolerante, dentro dos limites do pensamento de John Locke (3).

02. Como refração, não se pôde ter a pretensão de desenvolvê-la naquela oportunidade, o que a manteve dentro dos contornos de um mero agregado, de um simples “apêndice” ao que visávamos primeira e continuamente considerar naquele momento. Tratou-se, então, em seus contornos próprios, de se pensar a plausibilidade da tolerância como adequado critério de decisão pela verdadeira religião.

03. A fértil sugestão foi-nos deixada pelo próprio John Locke ao redigir as primeiras linhas de sua Carta sobre a tolerância, não obstante pareça-nos que nem ele mesmo tenha se dado conta da dimensão do seu significado. Segundo ele, é dentro da moralidade calcada na vida de Jesus, a quem recuperará, nessa sua obra, o devido título de "Príncipe da Paz" (4), que a atitude tolerante despontará como o mais alto preceito, a fim de se tornar "o principal critério da verdadeira Igreja" (5):

Se é necessário acreditar no Evangelho, nos Apóstolos, ninguém pode ser cristão sem a caridade, sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor (6).

04. Impõe-nos advertir que o imperativo de realização de tal tolerância cristã, para o pensador inglês, não se circunscreve, todavia, se verdadeira, àquela atitude que um cristão possui somente para com alguém que participa de sua mesma comunidade de fé, mas, além disso, deve igual e necessariamente se dirigir destes àqueles que porventura abracem distintas religiões. Logo, sem a caridade, sem a mansidão e sem a benevolência para com todos os homens em geral, ainda não se é cristão (7). Na passiva, conforme várias passagens do Evangelho, afirma Locke que os verdadeiros cristãos devem sofrer as mais graves perseguições e renunciar à vingança "setenta vezes sete", isto é, sempre (8); na ativa, que os verdadeiros cristãos "a todos devem exortar à caridade, à mansidão e à tolerância" (9).

05. Esta sugestão do filósofo enriquece-se ainda mais caso a esbocemos sobre o pano de fundo do pensamento geral ventilado nos tempos de Locke, o que faremos muito brevemente, a fim de apenas consolidar melhor a viabilidade desta proposta e mapear o itinerário dessa incursão filosófica que poderá ser trilhada ulteriormente, quando maiores forem os recursos apropriados para tanto.

06. Devemos, então, relembrar que havia uma idéia muito corrente entre os filósofos da modernidade clássica, segundo a qual vivemos no melhor dos mundos possíveis. Por sua propriedade inegavelmente metafísica, conseguiu ela ecoar sobremaneira nas mentes dos intelectualistas e fideístas, muito pouco ocupando o tempo dos céticos e empiristas.

07. Sua origem retroage à época dos teólogos medievais cristãos, que a deduziram da perfeição do Criador: sendo este perfeito, o mundo por ele feito também o deveria ser maximamente ao que se poderia destinar à sua condição de criatura. Por esta distinção ontológica entre o Criador e a sua obra, esta não é, pois, sumamente perfeita, sem o que se confundiria com o seu próprio Criador. No entanto, é ela o melhor dos mundos possíveis. Como autoridade, Agostinho é o arauto desse pensamento no medievo.

08. Nos primeiros séculos da era moderna, René Descartes adotou tal idéia. Aliás, a ela recorreu veementemente para justificar os próprios males que assistimos neste mesmo mundo, o melhor e, por isto, o existente e verdadeiro. Tal mundo é, em seu conjunto, o mais perfeito possível. Por conseguinte, todo mal particular é o menor na sua contribuição para um bem maior.

09. Gottfried Wilhelm Leibniz, entretanto, foi quem mais se dedicou à fundamentação metafísica desta idéia. Como grande logicista e matemático, partiu da idéia de que o bem pensar equivale ao que verdadeiramente é, concebendo o mundo, assim, como um grande sistema, onde cada parte tem a sua inteligibilidade pelo todo: o mundo seria como que uma harmonia já preestabelecida por Deus e, por isso, a mais alta especulação metafísica não pode ser denunciada vã como queriam os que temiam tirar a sua atenção dos dados empíricos, sempre particulares.

10. Logo, o ato da criação implicou a escolha dentre vários mundos potenciais, sendo este, no qual vivemos, o único atualizado por atender mais plenamente o critério divino: comportar o maior número de realidades possíveis, de compossíveis(10). Noutras palavras, a vida, a vida em abundância é o mais universal critério de decisão.

11. O mundo que se constituía de um maior número de realidades passíveis de coexistência, este era o mundo mais perfeito e digno de vir a ser. Ou seja, o verdadeiro e real seria como que o mais tolerante, o mais "compossível", termo que já traz consigo a importante noção da mutualidade e reciprocidade pacíficas.

12. John Locke, embora de tradição empirista, não deixou de embeber-se desta noção. Sua radical redefinição da razão, bem nô-lo demonstra, pois o que é ela senão, sucintamente, o "acordo ou desacordo" entre as partes?

[Ela] consiste em nada mais que a percepção da conexão que existe entre as idéias, em cada passo da dedução; por meio dela a mente chega a ver, quer o evidente acordo ou desacordo de duas idéias quaisquer, como na demonstração, na qual alcança o conhecimento; quer sua provável conexão, para a qual dá ou recusa seu assentimento, como na opinião (11).

13. Então, exemplificando, qual a exegese cristã propriamente racional senão aquela que se apresenta a mais capaz de concordar - fazendo então "compossíveis" - um maior número de partes bíblicas? Qual, senão aquela que mais tolera? (12).

14. Não obstante suas grandes diferenças com Leibniz, Locke nunca deixou de trabalhar, como este filósofo germânico, a favor da paz. E ao admitir a tolerância como o principal critério da verdadeira igreja, permite-nos perguntar se a verdadeira religião não seria aquela capaz de conviver com o maior número possível de religiões outras, de tolerá-las. Às vezes isto nem mesmo condiga com uma coexistência mecânica (ou por justaposição), mas com algo muito próximo daquilo que George-Wilhelm Friedrich Hegel chamou de suprassunção(13). Enfim, quanto mais intolerante uma religião, tanto mais inadequada ela é a um número maior de outras religiões.

15. Devemos nos perguntar, é claro, se tal critério não é ele mesmo intolerante, ao que responderíamos que a própria tolerância possui um limite intrínseco e insuperável, a saber, se se tolera o intolerante, trabalha-se a favor da intolerância; se não se o tolera, é-se intolerante. Conseqüentemente, nem mesmo a tolerância por excelência pode tudo tolerar, mas tão-somente tolerar o maior número possível.

* * *

16. Cabe-nos suspeitar se o critério de tolerância que se traduz em suprassunção, ainda que não o queiramos adotar como critério de decisão pela verdadeira religião, não se realiza independentemente de nossa vontade na história, sendo o índice de tolerância de uma religião a sua propensão à interação com as diversidades e adversidades, nisto residindo a sua sobrevida. Tal fôlego, podemos encontrá-lo no cristianismo, em sua história e em seu cerne, o amor, o que permitiu a Locke nele acreditar como a verdadeira religião e a dedicar-se aos seus preceitos revelados na Bíblia como em conformidade com a razão.

* * *

17. Enfim, apenas alguns dados acerca desta essência do cristianismo - o amor ou a tolerância - e de sua repercussão na história.

18. Se a insistência no amor ao próximo, fosse este escravo ou estrangeiro, é o cerne da boa nova proclamada por Jesus de Nazaré... Se o apelo deste carpinteiro residiu num amor que deveria recair, antes de tudo, sobre os “menores” da comunidade humana - pobres, mulheres, crianças – (14); se devemos, consoante o seu preceito, combater o mal, mas orar pelo inimigo: se é este o cerne da revolução promovida por Jesus e difundida pelos seus seguidores num tempo de dominação estrangeira e de extremas penúrias, mas capaz de, talvez por isto mesmo, arrebatar a tantos por todo o mundo ora conhecido, então não há como duvidar que a tolerância pode inclusive ser entendida como um retrocesso em comparação ao amor.

19. O amor acolhe o que a tolerância apenas deixa estar. Quiçá seja o amor radical apenas conforme ao divino ou ao homem que conseguir ultrapassar-se. Quiçá seja a tolerância uma atitude mais conforme as capacidades extremas de nossas condições atuais. Não nos pode a imaginação nos figurar o apóstolo Paulo de Tarso, cansado de tantas cartas sobre o amor e a caridade endereçadas às comunidades que se querem cristãs, mas que não conseguem dirimir as recorrentes artimanhas e intrigas no seu seio? Afinal, se é precipitado exigir que se acolham, que, pelo menos, se suportem. Não será a tolerância o melhor revés secular do amor sagrado?


20. Caso seja realmente o amor o cerne do verdadeiro cristianismo, quem poderá duvidar de que não é mesmo a tolerância o seu melhor correlato num mundo que se laiciza crescentemente? Pois se o amor é carregado dessa religiosidade cristã, de sentimentos, porque é ele verdadeiramente um sentimento, não será a tolerância o amor travestido de uma razão capaz de manter a existência do maior número possível de diversidades, promovendo, deste seu modo, a vida em abundância?

21. Entretanto, a tolerância mútua só pode ter seus alicerces na admissão de que todos são por princípio iguais e assim nascem, o que foge completamente ao que se apreende cotidianamente. Pode-se exclamar que os homens nascem iguais em dignidade, ao que não tardará a interpelação: Que dignidade? Qual o amparo desse valor tão abstrato, se em todo lugar entre os seres humanos só se vê diferenças desde o berço? Já aí não se poderá mais uma vez fugir do reconhecimento de que

A idéia [de igualdade] é de origem cristã (todas as almas têm a mesma dignidade, visto que todas, criadas por um mesmo Deus, foram remidas pelo sangue de Jesus Cristo). Ela é retomada sob uma forma tornada laicizante pela Revolução Francesa. A Declaração dos Direitos do Homem proclama que “todos os homens nascem iguais em direitos” (15).

22. Logo, embora a sociedade ocidental em secularização tenda, por este seu próprio movimento, repudiar e esquecer a sua dívida para com a religião cristã, este seu ato não somente é injusto com o seu passado, mas também com o seu próprio presente ainda radicado em valores religiosos cristãos, pois é dessa igualdade de filhos de um mesmo Pai, do qual somos todos à imagem e semelhança, que surge a liberdade, este outro valor do trinômio democrático francês, no qual todas as nações que se pretendem modernas se espelham. Quanto à sombra cristã da noção carregada pelo nome fraternidade, ela é tão óbvia que dispensa qualquer comentário em sua defesa.

23. São apenas algumas coletâneas de dados bem encadeados para entrevermos que o cristianismo, por ter em seu cerne o espírito de tolerância, historicamente elevado à sua consciência, mantém-se e manter-se-á quanto e tanto mais tolerante conseguir ser. É lúcido que isto lhe exige constantes mudanças, mas é por isto mesmo que o seu cerne e espírito tendem a perenizar-se: o amor ou a tolerância. Se o cristianismo não é dentre as religiões a que mais cresce atualmente, não o deixa de compensar sorrateiramente em seu viés secular, na própria ocidentalização do oriente. Afinal, consoante a noção de suprassunção hegeliana, tem-se que se perder para ganhar - laicização, possivelmente, da semente que tem que morrer para produzir frutos, segundo os termos de Jesus de Nazaré. Quem sabe assim o cristianismo institucional também se comprometa para definitivamente se radicar e se espraiar em toda a tessitura do mundo?

--------

(1) Artigo publicado na Rhema - Revista de Filosofia e Teologia - com o mesmo título.
(2) LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Tradução de João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 91.
(3) Dissertação de mestrado do autor, titulada A tolerância como confluência da racionalidade moderna e da religião cristã no pensamento de John Locke e defendida no início do ano de 2001, que pode ser encontrada nos arquivos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião do Departamento de Ciência da Religião do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais.
(4) LOCKE. Op. cit. p. 91.
(5) Destaques nossos. Ibidem, p. 89.
(6) Ibidem.
(7) Cf. ibidem.
(8) Cf. ibidem, p. 96 e 100.
(9) Ibidem, p. 100.
(10) Para se adquirir um comentário mais largo e rigoroso da idéia leibniziana de compossível, pode-se fazê-lo inicialmente através das notas afins do filósofo, matemático e logicista inglês Bertrand Russell (RUSSELL, Bertrand. Leibniz. In: História da filosofia ocidental. Tradução de Brenno Silveira. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1967, v. 3, p.).
(11) Ibidem, p. 297. Por este modo de trazer à razão a "disciplina do crer" ou, mais amplamente, todas as questões humanas, para muito além, portanto, do campo das matemáticas e das ciências naturais, estudiosos como Nicola Abbagnano interpretam este uso lockeano da razão como uma "reforma radical" do seu conceito (ABBAGNANO, Nicola. Locke. In: __________. História da filosofia. Tradução de António Ramos Rosa e António Borges Coelho. 2. ed. Lisboa: Presença, 1978, v. 7, p. 80).
(12) Tal critério racional de John Locke não pode deixar de se expressar no próprio mundo ou natureza, pois, apesar deste filósofo não se demorar em tais questões metafísicas, não evitou sustentar que a vontade de Deus se expressa em sua criação, nas leis da natureza, capazes de se deixarem apreender pela reta razão humana.
(13) Perpassado pelas obras de Hegel, pode-se abstrair três sentidos básicos no seu uso do termo suprassunção, aparentemente excludentes, mas, ao modo dialético do próprio, filósofo, concludentes enfim, o que se ressalta quando como que, pela “interpenetração dos contrários”, uma síntese acontece, num “superar no sentido de que é ao mesmo tempo o “tirar-e-conservar” (REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia. Tradução de Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1991, v. 3, p. 107), expressão contraditória que se usa para bem expressar o significado hegeliano mais maduro e original de suprassumir (aufheben). Quanto aos seus três sentidos, dados analiticamente, isto é, em separado e sem movimento, são eles: 1) “levantar, sustentar, erguer”; 2) “anular, abolir, destruir, revogar, cancelar, suspender”; 3) “conservar, poupar, preservar” (MICHAEL, Inwood. Dicionário Hegel. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 302). Caso se queira um estudo mais exaustivo do conceito, deve-se seguir na leitura das páginas sucessivas).
(14) Esclarece Kenneth Minogue: "A religião e a filosofia de gregos e romanos eram, devemos lembrar, altamente elitistas. A plena humanidade só era possível ao herói ou ao filósofo, ao passo que os escravos e em certa medida as mulheres constituíam espécimes inferiores de um ideal. O cristianismo muitas vezes reverteu esse juízo: os humildes é que estavam mais próximos do espírito amoroso que se supunha exigido por Deus. Isso incluía particularmente as mulheres, que ficaram entusiasmadas com uma fé que pregava a paz e o amor" (MINOGUE, Kenneth. Política: uma brevíssima introdução. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 43).
(15) HUISMAN, Denis, VERGEZ, André. Compêndio moderno de filosofia: a ação. Tradução de Lélia de Almeida Gonzalez. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982, v. 1, p. 251.

Nenhum comentário:

Postar um comentário