Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





7 de jan. de 2012

TEXTO XX: Sobre Estamira

Rodrigo Rodrigues Alvim

(O texto que ora lhes apresento foi elaborado depois que eu assisti ao filme-documentário "Estamira", de Marcos Prado, lançado em 2006, que encontra-se disponível no site www.estamira.com.br).





E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. (FRIEDRICH NIETZSCHE)




01. Ao dispormos letras, articulamo-las a partir de algo maior: as palavras, desde antes já em nós compostas, que agora “pré-tendemos” expor.

02. Ao dispormos palavras, articulamo-las a partir de algo maior: as sentenças, desde antes já em nós compostas, que agora “pré-tendemos” expor.

03. Ao dispormos sentenças, articulamo-las a partir de algo maior que nos ocorre por inteiro em nossas mentes e que agora “pré-tendemos” expor.

04. Toda essa trama de letras, palavras, sentenças redunda em texto, obra de um tipo de tecelão, o qual comumente chamamos de escritor...

05. Quando acolhemos palavras, sentenças, textos a nós expostos, “pré-tendemos”, por meio deles, alcançar este algo maior, o sentido que lhes dá unidade e compreensão, esforçando-nos, assim, enquanto seus leitores, para não perdermos o “fio da meada” e, então, tudo perder...

06. Alguém já comparou o próprio mundo a um grande livro aberto à nossa leitura, embora, inadvertidamente, tenha-o reduzido a caracteres apenas matemáticos...

07. Quanto tanto mais não conseguimos relacionar umas coisas e outras do que alguém nos diz, tanto menos reconhecemos compreendê-lo, tanto menos nos têm sentido as suas palavras. Logo, o sentido que nos permite (bem) compreender é pretensamente universal, porquanto como que perpassa e alinhava numa unidade a multiplicidade do dito, das coisas expressas e trançadas, das coisas manifestas... Tal universalidade do sentido faz deste inequivocamente uma questão para a filosofia.

08. Esta “tendência” ao universal, a algo sempre maior, observa-se em cada um de nós quando distraímo-nos que o sentido da nossa vida se inscreve, antes, como o sentido da própria vida. Mesmo a ênfase do humano como “ser em situação” em detrimento do universal simultânea e paradoxalmente sublinha o inteiro somente a partir do qual se pode rigorosamente compreendê-lo situado.

09. Devo compreender-me, pois e por exemplo, dentro do contexto do qual faço parte, bem como compreender o meu contexto dentro do contexto maior do qual o primeiro faz parte, que, não menos, faz parte de um contexto maior – e assim por diante. E tanto mais adiante, talvez eu melhor, enfim, compreenda-me a mim mesmo.

10. Os contextos mais proximamente de nós (nos quais estamos, pois, inseridos) e tanto mais proximamente de nós podemos chamá-los de “bolsões de sentido”. Aí mergulhados, por eles nos compreendemos a nós mesmos e nos aventuramos a dizer de tudo mais. Ressalta-se que à luz de tais compreensões se desenvolvem igualmente todas as nossas ações num continuum agregador de nosso indiviso social, a que comumente chamamos de responsabilidade, e que se articula dentro da dinâmica dos papéis reificados na unidade social, algo maior do qual nos sentimos partícipes.

11. Sendo propositalmente cheio de redundâncias, mas respeitando uma das mais antigas imagens com a qual a nossa cultura se elucida, podemos dizer que à luz de tal luz esclarecemos o mundo onde tudo é muito claramente iluminação. Se a isto associamos, como o dissemos outrora, que, quando alguém nos “dis-corre” palavras, sentenças e raciocínios, “pré-tendemos” por estes alcançar o sentido aí “pré-tensamente” veiculado e que lhes dá a sua unidade e compreensão, então deparamo-nos com o evento de que somente nos aparece lúcido o que se arranja às nossas “pré-compreensões”, fazendo-nos deixar todo o resto no “limbo” do sem sentido e da loucura.

12. É, pois, a captura dessa inevitabilidade de nossa “pré-situação” (e “pré-compreensão” ontológica ou existencial, como queiram!) que nos mergulha e nos emerge ao risco permanente do equívoco de somente tomar como lúcido o que está para dentro dos nossos “bolsões de sentido” e suspeitar de que o “sem sentido” pode não passar de somente um “sentido outro ou diferente” de um “bolsão” do qual não fazemos parte.

13. Não há dúvida de que toda e qualquer compreensão só se pode fazer tanto e mais os interlocutores, emissor e receptor, remetente e destinatário, “com-partilham” de um mesmo “bolsão de sentido”.

14. A circularidade compreensiva aqui se nos mostra do seguinte modo: por um lado, quanto mais participamos de um mesmo “bolsão de sentido”, universal relativamente a cada um de nós, tanto mais podemos nos sentir “comum-unidade”, mesmo na paradoxal compreensão de nossos dissensos (pois estes assim se definem pelo prévio consenso de nossa igual e “artificiosa” “pré-compreensão”, ou seja, é o singular universal que ratifica as singularidades individuais); por outro lado, tanto mais nos “compreendemos” e assim nos “con-firmamos”, tanto mais corrigimos e assim corroboramos o “bolsão de sentido” ou “unidade-comum” “pré-compreensiva” que somos (ou seja, são as singularidades individuais que ratificam o singular universal).

15. Conseqüentemente, à medida que escapamos aos “bolsões de sentido” amplamente partilhados, tanto menos somos rigorosamente “compreendidos” por outrem. E quanto menos ecoamos em outrem tanto menos podemos nos compreender a nós mesmos e nos sentimos, enfim, vítimas de grande confusão e “in-compreensão”.

16. Contudo, a ruptura de nossos “bolsões de sentido” comumente se dá em momentos pungentes de nossas vidas, quando já os “des-cobrimos” artifícios, artifícios então incapazes de lhes “dar sentido” (e eles não são senão por isso). Incapazes de “assimilar” experiências pungentes de nossas vidas, constatamo-nos “in-compreedidos” e, assim, “ab-solutos”, isto é, completamente sós ou emocionalmente abandonados. Na negação da “pré-compreensão” originante e a partir da qual nos vemos, enfim, compreendidos, rupturas de nossos “bolsões de sentido” nos lançam na solidão de se compreender tudo absolutamente, sem que nada possa nos “com-firmar” ou “des-abonar”.

17. Dizem muitos filósofos que o homem tem essa estranha capacidade de sair de si – por isso ele existe onde tudo o mais simplesmente é. Ele se compreende “pré-compreendido” porque misteriosamente saiu de si. Costumo me perguntar: mergulhado na natureza ou, melhor, constitutivo da natureza, como pode o homem se ver diante de, diante dela, diante de si mesmo? Como se pode tal dobra? Logo, “pré-compreendido”, o homem é, ao mesmo tempo, “in-compreendido”. Todo o seu esforço então se dá no sentido de como um que voltar para casa, para a sua “pré-compreensão”. Eis a delicadeza de toda a nossa manobra existencial, pois estamos por um triz e tudo pode como que falhar. Podemos definitivamente cair nessa nossa “in-compreensão”, neste vácuo existencial. Nosso “lugar” é, para nós, já originalmente pela negativa, por isso mesmo é “para-nós” e não “em-si”... Mas o queremos recuperar – e a nossa vida não passa de sempre tentativas, com maior ou menor sucesso, porém nunca definitivamente cumprida, pelo que nos negaríamos precisamente nesta “tensão” que nos faz ser como somos: esta tensão!

18. Como posso então compreender “Estamira”, se não estamos em mesmos “bolsões de sentido”? Como posso compreender “Estamira”, se ela se encontra em “bolsões de sentido” somente dela? Como dizer que aqui ela se faz lúcida às vezes, nesta ou naquela parte ainda, se tudo não passará de uma justificação a partir dos “bolsões de sentido” nos quais estou mergulhado?

19. “Estamira” me olha e eu apenas lhe devolvo o olhar.

2 comentários:

  1. Claro, tem horas que não há o que dizer. Ou melhor, existem momentos que o olhar é o melhor caminho, aquele que diz o indizível. Ali o respeito, a compreensão e a humildade necessária ao humano.

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  2. Olá meu amigo! Esse documentário é, de fato, muito difícil de "ruminar". Há dimensões nele que ultrapassam a compreensão natural das coisas. Estamira é uma exilada de si mesma. Uma mulher diaspórica, espalhada no mundo! Um espalhamento muito particular que nos diasporiza, ao vê-la! Abraços!

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