Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





7 de fev. de 2012

TEXTO XXIV: Ciência e Mito num Diálogo Possível da Filosofia com a Antropologia Cultural

Rodrigo Rodrigues Alvim

1 – A Importância da Questão do Mito

01. Talvez alguns etnólogos ainda estranhem um interesse pelo estudo da possível correlação entre mito e Epistemologia na esfera da Antropologia Cultural, pelo mesmo motivo que alguns filósofos também advogariam tal investigação à esfera de uma Metaciência (1). Esta estranheza, no entanto, só poderia advir de um espírito demasiadamente marcado por uma postura positivista que restringe a cada ciência um objeto e uma metodologia absolutamente específicos e, portanto, claramente distintivos, não reconhecendo assim temas limítrofes entre uma esfera científica e outra; de um espírito que desconhece a postura transdisciplinar, a partir da qual hoje (e quiçá sempre) os objetos de investigação requerem tratamento adequado. Além disso, devemos fazer notar que todos os grandes antropólogos, assim reconhecidos, sempre propuseram, ao lado das inúmeras considerações específicas acerca da sociedade exótica para a qual se atentavam, problematizações concernentes à delimitação do seu objeto e à sua metodologia, que valeriam, de um modo geral, para toda a Ciência Etnológica, estabelecendo, pois, um intenso diálogo com todas as ponderações em mesmo sentido levantadas pelos antropólogos do passado. Ou seja, não se detendo no simples fazer antropológico de campo como determinava a tradição, mas discursando sobre o próprio fazer da Ciência Antropológica, estes homens se tornaram renomados sobretudo pela sua Metaciência, construída, todavia, não somente a par de um diálogo com os etnólogos do passado, mas também a par dos desafios que enfrentavam em campo.

02. Em verdade, Filosofia e Etnologia sempre estiveram juntas, porque formalmente diversas, em toda a contemporaneidade (2). Não há filósofo que atualmente se faça ouvir sem que perpasse o seu pensamento pela diversidade cultural sublinhada pelos trabalhos antropológicos e sem que por esta se deixe perpassar. Por outra parte, reconhece-se presentemente que os estudos etnográficos só se justificam à luz de uma teoria de fundo que os possa fazer o mais amplamente inteligíveis e em grande medida comensuráveis entre si.

03. Assim rapidamente esboçado e brevemente justificado o nosso tema, gostaríamos ainda de destacar a interação entre Filosofia e Etnologia através das palavras de Marcel Detienne ao se deparar com a declaração confidencial de Marcel Mauss à Sociedade Francesa de Filosofia, segundo a qual "não nos basta descrever o mito; seguindo os princípios de Schelling e dos filósofos, queremos saber o que ele traduz" (MAUSS, 1969: 161):

(...), sendo a questão de natureza filosófica, é da Filosofia que deve vir a resposta. Schelling já havia percebido há muito tempo: a filosofia da mitologia é a verdadeira ciência da mitologia. E a empreitada de [Ernest] Cassirer (em La philosophie des formes symboliques, publicada na década de 1920) homenageia as intuições de L'introduction à la philosophie de la mythologie (1856) [Obra de Shelling]. (...). Os inúmeros coletores de mitos são recompensados por seu trabalho e a filosofia neokantiana põe termos aos tormentos de Mauss: ela se encarrega de enunciar a 'essência pura' da função mítica (DETIENNE, 1992: 187-188).

04. Foi impulsionado por esta mesma esperança de se encontrar tal "essência pura" ou estrutura última dos inumeráveis modos de se sentir, de se pensar e de se fazer, que o mais famoso antropólogo do século XX, Claude Lévi-Strauss, ergueu todo o seu trabalho etnográfico e etnológico, o que revigora ainda mais a atualidade do tema que ora propomo-nos aqui apenas introduzir (3).

2 - Colocação da Questão do Mito

05. Há uma lei que se impõe a todo conhecimento que se queira obter ou, mais extensivamente, a toda e qualquer exploração que se almeje fazer: "é preciso proceder do conhecido ao desconhecido" ou, recodificando, "conhecer é reduzir o desconhecido ao conhecido" (IDE, 1997: 2-5; ALVES, 1993: 45). Imediatamente, nenhum pensador se demora em nos multiplicar exemplos do nosso próprio cotidiano que nos confirmem esta lei. Contudo, basta que procuremos percorrer em regresso esta cadeia relacional que se quer para depararmo-nos com uma questão muito embaraçosa, frontalmente contraditória ao caráter universal desta mesma lei: caso não queiramos regressar infinitamente nesta cadeia, deveremos, em tese, finalmente nos deter, em algum instante, em um conhecimento primeiro, nem nunca outrora desconhecido e que, portanto, jamais requisesse a antepostagem de um já conhecido, que, do contrário, reinauguraria aquele interminável regresso que se quer vencer. Deveríamos, pois, nos deter em algo que nos fosse por si próprio e como que já impresso em nós mesmos, em algo dado aprioristicamente, em cuja evidência, portanto, reduziríamos e venceríamos todo o caos com o qual viemos a nos deparar aposterioristicamente.

06. O sociologismo durkheimiano sugere-nos que esse parâmetro dado ao indivíduo seria fruto de sua formação social, recebida por ele desde muito antes do indivíduo exercer a sua capacidade reflexiva. Entretanto, esta resposta só encontra satisfação no interior de uma sociedade hermética. Por isto, ao contrário do estudo sociológico, a investigação etnológica se preocupará com a comensurabilidade entre as mais distintas sociedades, confiando, como os primeiros filósofos gregos, na existência de um mesmo arqué, através do qual, para os antropólogos, os grupos humanos se expressariam de variados modos (4). Somente uma estrutura original perfiladora do humano seria capaz de assegurar a compreensibilidade por parte do próprio estudioso - formado numa precisa sociedade - do seu "objeto" (uma sociedade exótica); somente esta estrutura original seria capaz de assegurar à antropologia sair do simples "descritivismo" - que apenas sub-repticiamente convence-nos que pode oferecer-nos o pleno mostrar-se do próprio "objeto" e somente dele mesmo (5) -; sair do "descritivismo" sem que se perca a objetivação da investigação. Se não há a mediação dessa estrutura originante de todas as culturas, somente restaria ao etnólogo conter-se numa etnografia do sujeito tabula rasa, embora possa se reconhecer de antemão a impossibilidade dessa postura abertamente defendida pelos positivistas. Os estruturalistas levistraussianos, assim, propõe-nos não a absoluta negação da sugestão do sociologismo durkheimiano, mas lançam, para além dos precisos contornos de uma dada sociedade, o parâmetro que enseja não apenas estes contornos (da sociedade complexa européia, por exemplo) e, sim, mais amplamente, de todas as sociedades existentes, amostras atualizadas dentre os inúmeros possíveis de um universal, que pode ser entrevisto nas relações de parentesco ou nos muitos mitos existentes.

07. Por conseguinte, os antropólogos se vêem - eles mesmos, que se deparam com uma infinita constelação cultural - preocupados com o universal que lhes possibilite alinhavar, mediar, ordenar e compreender o que foi colhido dispersamente. Tão somente assim é possível a tradução das tradições e a extradição em todas as direções que perfazem o amplo e único tecido humano, tecido que denominamos fundamentalmente antropológico. Tal exigência da Ciência Antropológica ou "condição de possibilidade" da atividade reconhecidamente humana e cultural coincide com a mesma exigência ou "condição de possibilidade" epistemológica de toda ciência física ou biológica e a sua detecção mais próxima encontra-se na expressão mitológica, uma vez que o universal que se procura coincide com o próprio mito. Isto é o que procuraremos entrever.

3 - O Mito como "Conhecimento" Primacial

08. Do que afirmamos acima, a necessidade de um conhecimento primeiro que não requeira demonstração, mas que se faz parâmetro a partir do qual todos os demais conhecimentos poderiam se construir, se demonstrar e se correlacionar, deve ter-nos parecido uma exigência razoável, mas impossível de se obter. Porém, em verdade, como também anteriormente já o dissemos, este conhecimento é um dado, não uma conquista. Por ser distinto dos outros conhecimentos, diríamos, como Immanuel Kant, que ele estaria muito mais para um pensamento do que para um conhecimento propriamente dito.  Para muitos, inclusive, ele estaria assentado na própria estrutura mental humana, como propôs-nos Sigmund Freud. E por não prescindir-se de demonstração, diríamos que ele se nos vem como crença. Freud tentou elucidar tal estrutura mental em sua porção a priori mediante os mitos. E os mitos são fundamentalmente crença. Embora por um traçado tão breve, o que desejamos ponderar é que aquele "conhecimento" original e basilar é mítico e que não requer comprovação como os demais conhecimentos porque é crença, é dado - malgrado o nosso querer -, é constitutivo de nossa humanidade, é, aliás, o que nos faz humanos e diferentes dos demais animais, ou seja, seres de cultura.

09. Logo, não obstante os inúmeros trabalhos antropológicos de campo tenham contribuído para denunciar o etnocentrismo europeu e norte-americano - atributo aliás pertencente a todas as sociedades (LÉVI-STRAUSS, 1989 a: 15-16) -, o princípio universal que sempre assombrou os epistemólogos nunca abandonou a Etnografia, nem mesmo quando esta se baseou num só caso (6). O contato com outras sociedades fez com que, paulatinamente, ficasse insustentável aos próprios europeus se considerarem a cultura per excellence, a "civilização" modelo para todos os demais povos. Mas esta crise que abalou irreversivelmente a supremacia das leis, dos hábitos e dos costumes da Europa ainda persiste na tentativa de comprometer definitivamente a referência a um universal, que, se não mais se expressa tal e qual numa cultura em particular, faz-se presente no mais detrás de todas as sociedades, nos interstícios de cada particularidade social.

10. Na esfera antropológica, Claude Lévi-Strauss se tornou o maior porta-voz dessa inquietude. Não se pode conhecer o que está em constante transformação ou indefinidamente múltiplo (ALVES, 1993: 40-41). Esta antiga consideração, donde se despontou o nosso discurso racional (7) - sempre tão caro aos ocidentais -, encontrou hodiernamente a sua primeira exceção no estudo sobre o homem, proposto pela filosofia existencialista. Irredutível em seu ser no mundo, cada homem seria, então, dotado da mais completa singularidade, fruto, por sua vez e em última instância, de sua condição de ente dotado de liberdade. Na extrema consideração de Jean-Paul Sartre, a única característica comum e determinantemente irrevogável de todos os homens seria paradoxalmente a sua condenação a ser livre (SARTRE, 1987: 9-19). Frente a essa corrente de pensamento, que tão logo se popularizou na Europa, o estruturalismo antropológico levistraussiano foi acusado de "matar o homem" para dele poder fazer ciência, negando-lhe assim o que este homem pensa ter como atributo distintivo: a tarefa de escolher sua essência absolutamente particular, uma vez que esta não estaria previamente estabelecida por nenhuma natureza ou estrutura (8). Foi, no entanto, bem percebido que, se se quiser desenvolver uma teoria geral das culturas, a aposta de uma estrutura basilar e universal sobre a qual todas elas se assentam é uma correlata inevitável. E deve-se esperar que, numa sociedade científica crescentemente laica e materialista como a atual, este fundamento dos fundamentos venha a ser procurado numa redução dos processos culturais aos processos psíquicos estruturais, dos processos psíquicos estruturais às funções de cunho neuro-biológico e destas às combinações físico-químicas, como bem sugeriu o próprio Claude Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 280; 285 e 292). É em virtude dessa hipótese que ele delimitará o papel das ciências exatas e naturais, a saber:

(...) reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas. (...). O dia em que chegarmos a compreender a vida como uma função da matéria inerte, será para descobrir nestas propriedades muito diferentes das que lhe eram atribuídas anteriormente (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 275-276).


11.A influência que Lévi-Strauss sofre de Immanuel Kant é incontestável. À Antropologia caberia perseguir um substrato sócio-humano "trancendental", no sentido rigoroso do termo, que pouco a pouco, portanto, superasse a aparente dispersão do material colhido pela Antropologia Empírica (9). Os estabelecimentos da Antropologia Transcendental, não obstante sejam dados a priori, não nos são, contudo, dados conscientemente a priori, mas exigem-nos um esforço de abstração ("tirar de") para depurá-los de suas inúmeras expressões a posteriori (culturais), o que é possível através de vários entrecruzamentos comparativos. Pretender radicá-los em mecanismos biológicos (estrutura do cérebro, lesões, secreções internas) - como o faz Lévi-Strauss - é apenas uma atualização do pensamento kantiano à ciência moderna, que este mesmo prestigiou, em seus aproximadamente duzentos anos - na sua "Crítica da Razão Pura".

12. De bom grado, como lemos n'O Pensamento Selvagem, Lévi-Strauss aceitou-se como "materialista transcendental e esteta", designação originária da crítica de Sartre ao seu pensamento e não escondeu que, no que tange à epistemologia, ele se sentia cada vez mais kantiano (URDANOZ, 1985: 293-294). Esta proximidade não poderia ser mais feliz, visto que a Antropologia Cultural hoje desenvolve exatamente o que Immanuel Kant propôs à Filosofia, promovendo nesta última, por isto mesmo, uma revolução de inestimáveis repercussões. O século XVII ficou conhecido como "o século do método", mas indubitavelmente foi somente nos finais dos oitocentos que a divisão de águas no campo da Epistemologia se deu. Até Kant, os filósofos apressavam-se basicamente na delimitação ou definição do objeto que se pretendia conhecer. Kant, então, deslocará a atenção filosófica deste objeto (do qual se fala) para o sujeito (que fala), perguntando pela sua delimitação, ou seja, pelas condições de possibilidade a priori do sujeito cognoscente. Somente este simples deslocamento já instaura grande parte da revolução kantiana, posto que subitamente denuncia a existência de limites às capacidades humanas, no que se refere ao conhecimento. Apesar de hodiernamente esta finitude não nos causar mais qualquer surpresa, há apenas duzentos anos atrás os próprios filósofos, racionalistas ou empiristas, encontravam-se imersos num "realismo ingênuo", calcado num antropocentrismo não menos ingênuo, por acreditar na onipotência do sujeito cognoscente. Com a necessidade de antes definir ou "dar os precisos contornos" daquele que fala, nasceu a Antropologia como disciplina filosófica e fincou-se o marco inaugural do Pensamento Contemporâneo.

13. Desde então, o mundo em si e por si mesmo estará para sempre perdido, pois o sujeito, que com aquele se correlaciona, não é uma tabula rasa que a aquele pode-se conformar plenamente, porém é algo, antes de qualquer experiência, constituído de limitadas capacidades - ainda que, sob determinados aspectos, bastante amplas -, capacidades pelas quais o sujeito conforma o mundo ou com as quais ele filtra o mundo. Este mundo, por conseguinte, não é mais como em si mesmo, mas para um dado sujeito, em interação com este, ao modo deste, como este. O mundo não é o mesmo para todas as espécies que o captam, mas pode ser o mesmo para os indivíduos de uma mesma espécie que o captam. O mundo em si, como a própria expressão já o diz, não é para o homem, mas o mundo na sua relação e interação com os indivíduos da espécie humana ainda pode assegurar-se uma certa objetividade, se estes mesmos indivíduos suspenderem as suas particularidades emocionais e as suas experiências vividas outrora singularmente. Não é mais uma objetividade que se apoia no pólo "objeto" da tradicional relação da Teoria do Conhecimento (S-O), mas na interpenetração de ambos os pólos.

14. O "Eu transcendental de Kant", que se identifica com cada eu particular em sua estrutura a priori, sobreviveu bem ao cenário europeu. E não obstante tenha recebido incontáveis críticas no âmbito filosófico, foram exatamente os trabalhos etnográficos, mormente de outras sociedades e culturas, que lhe impuseram os seus maiores desafios e quase o golpearam fatalmente mediante os diferentes modos de se pensar e conhecer, relatadas pelas expedições antropológicas.

15. Mas a reação não demorou fazer-se sentir. Com a descrição de modos de cultura tão diversos, a própria Antropologia Cultural ressentiu-se da importância da existência de um aparato comum e substantivo a todos estes materiais coletados e que os fizessem inteligíveis entre si. Foi por este prisma que recuperamos até aqui um itinerário antropológico que tende a ficar à sombra de um "relativismo cultural" mais vulgar ou vulgarizado, isto é, mais apaixonadamente difundido pelos próprios acadêmicos, que não percebem nisto um irracionalismo que compromete principalmente o exercício a que são chamados.

16. É contra esta tendência que Claude Lévi-Strauss mais atualizou esforços. A princípio não fala como Kant de uma estrutura de pensamento, mas encanta-se com a estrutura linguística, sobremaneira a par dos trabalhos de Ferdinand de Saussure, fazendo uma transposição do método fonológico à Etnologia. Coincidentemente, a Filosofia Contemporânea, de uma maneira especial na sua vertente "analítica", passou a considerar o próprio pensamento como linguagem, o que poderia em alguma medida justificar um inevitável encontro ulterior de Lévi-Strauss com Kant e a sua grande afinidade para com a obra deste.

17. Na busca de invariáveis universais, a Antropologia Cultural encontra-se, portanto, com a Filosofia. E pela sua tenra idade, também não escapa de demoradas preocupações metacientíficas. E, de fato, a sua contribuição para a reavaliação e redefinição de método(s) no seio das Ciências Humanas e das próprias Ciências em geral não podem ser economizadas em sua grandeza. A prática atualmente tão banal da interdisciplinaridade, por exemplo, é conseqüência do vitorioso caminho já trilhado pela Etnologia desde um tempo em que o sectarismo positivista entre as Ciências consolidadas ainda era hegemonicamente recomendado. Foi nesse seu percurso que inevitavelmente a Antropologia Cultural se deparou com uma questão de primeira ordem no campo epistemológico: ao do fundamento primeiro e último das Ciências, dela mesma especialmente, questão que ela estenderá ao seu próprio objeto de investigação, que, enfim, abarcaria estas mesmas Ciências como subfenônomenos seus: a(s) cultura(s).

18. Os resultados advindos do tratamento dessa problemática são múltiplos, mas todos superam a linearidade e simplicidade da resposta neopositivista. A evidência por detrás de todo aparato epistemológico e cultural, desde onde começa, termina e se mantém inclusive a mais rigorosa demonstração científica ou sistema social - relembremos os procedimentos do método fonológico, destacadamente o segundo e o terceiro, que capacita as Ciências Sociais a formular as relações necessárias latentes em seu objeto (10) - indica-nos uma estrutura inconsciente, visto que o mais evidente é, contraditoriamente, o menos vidente. Logo as suas manifestações mais basilares têm estatuto de crença, como o mito ou a religião. Não se pretende diante disso avaliar tais fenômenos humanos como pejorativamente inferiores às manifestações de traços denominados técnico-científicos. Afinal tudo emerge de uma mesma matriz. Contudo, aqueles fenômenos são diacrônica, lógica e ontologicamente inferiores, ou melhor, anteriores (no sentido de primaciais e, conseqüentemente, fundamentais à ciência). Também em outros campos do saber, muitos estudiosos entreveram isto. Na famosa carta, de 1932, que o pai da Psicanálise escreve a Albert Einstein, Freud interpela ao grande físico: "Não será verdade que cada Ciência, no fim, reduz-se a um tipo de mitologia?" E muito mais próximo da Antropologia Cultural, o positivista d'As Regras do Método Sociológico, Émile Durkheim, conclui em sua última obra: "(...) até as noções essenciais da lógica científica são de origem religiosa" (DURKHEIM, 1989: 507). E noutra parte: "A Ciência é fragmentária, incompleta; avança muito lentamente e jamais está concluída; mas a vida não pode esperar" (DURKHEIM, 1989: 509). Portanto, o cabedal mítico-religioso é um todo compacto e totalizante, primeiro estamento humano que se acha colado à estrutura íntima das coisas, confundindo-se mesmo com esta; dá unidade, organização e sentido à vida humana, antes que a Ciência se gere, posteriormente, em sua dissecação.


19. Tais considerações ressaltam, então, a importância da participação primacial do mito na formação do mundo humano, seja natural seja cultural, e, particularmente, por inclusão, na formação da Ciência, como instituição igualmente humana, ou de qualquer outra instância gnoseológica. Ocupando também aí um lugar central, o mito deve receber de todas estas uma atenção que a "assepsia" positivista simplesmente lhe negou por acreditar que, se assim o fizesse, estaria comprometendo a plena objetividade do conhecimento científico, objetividade esta completamente ilusória, se estamos convencidos de que o saber humano, exatamente porque humano, jamais poderá verdadeiramente prescindir-se do sujeito como um dos pólos intrínsecos a todo constructo epistemológico que efetivamente se possa ensejar.

Referências

ALVES, Rubem. Filosofia da ciência. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
DETIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: UnB, 1992.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
IDE, Pascal. A arte de pensar. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d.
____________. Raça e história. In: Antropologia cultural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 (a).
____________. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989 (b).
MAUSS, Marcel. Œuvres. Paris, 1969, v. 2.
MELLO, Luiz Gonzaga. Antropologia cultural. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
REDFIELD, Robert. Introdução. In: MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Edições 70, 1988.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
URDANOZ, Teofilo. Historia de la filosofia. Madrid: Catolica, 1985, v. 8.


(1) A Metaciência foi o único espaço que os próprios neo-empiristas ou neopositivistas (guardiães da ciência moderna clássica) ainda reservaram à Filosofia. Esta não passaria, portanto, de uma discurso analítico sobre o discurso científico, diverso dos discursos religioso e "metafísico" ou da expressões mítica e artística. A Filosofia resumiu-se, então, numa simples filosofia da linguagem. A Ciência seria uma linguagem que permitiria ao homem um discurso objetivo, isto é, fidedigno, acerca da realidade. E se é por ela que a Ciência se faz, dela a ciência não poderia tratar sem cair numa petição de princípio. Tal tarefa foi, conseqüentemente, delegada à Filosofia, da qual, antes, os mesmos positivistas haviam usurpado qualquer validade enquanto discurso sobre o mundo. O pensador Ludwig Wittgenstein é indubitavelmente a melhor ilustração que temos nesse sentido. Sua obra Tratado Lógico-Filosófico foi considerada pelos mais importantes neo-empiristas da sua época como a "gramática da Ciência". Qualquer elucubração que não respeitasse estas normas gramaticais estaria para o além-fronteira científico, denominado pelo próprio Wittgenstein como a instância do "místico".
(2) A Filosofia no seu sentido mais amplo e remoto é entendida como a busca do sentido último, universal e necessário, de tudo o que é. A Etnologia, por sua vez e ao contrário, é entendida como um estudo das culturas pelo que cada qual apresenta como distintivo na constituição do modus vivendi das sociedades.
(3) Este artigo foi publicado na Rhema – Revista de Filosofia e Teologia.
(4) Há aqui uma clara alusão a Aristóteles, para quem, depois de ter passado em revista todos os grandes pensadores gregos até o seu tempo, "o ser [o que é] se diz de vários modos, mas nenhum modo diz o ser [em todas as suas possibilidades]". Isto refere-se a tudo o que é, a tudo o que existe. Era, todavia, inimaginável a Aristóteles e a algum outro coetâneo ou contemporâneo seu a aplicação desse ditado ao pluralismo cultural. A tentativa, porém, de muitos estudiosos das sociedades em comparar as suas conclusões de campo com elaborações alheias, feitas em tempos, espaços e culturas diferentes, contribui para a seriedade da suspeita de que tacitamente todos eles tendiam a acreditar na existência de um parâmetro comum para a diversidade de seu objeto, uma unidade estrutural opaca por detrás de toda multiplicidade cultural.
(5) De fato, a corrente antropológica difusionista, principalmente pelo seu viés norte-americano, inaugurado por Franz Boas, procurou dar ênfase à simples coleta de dados, criticando a hegemonia evolucionista desde o nascimento da antropologia na modernidade e propondo a suplantação da etnologia pela etnografia: "Os difusionistas passaram a ver na explicação evolucionista da cultura uma forte marca de apriorismo, muita especulação e pouca ciência. (...). Alguns chegaram a dizer que havia urgência em coletar dados e informações sobre os povos primitivos antes que os mesmos desaparecessem ou fossem atingidos pela civilização. Boa parte dos antropólogos entenderam que, ao menos por enquanto, o mais importante era coletar os dados e não explicar o fenômeno cultural. Este último poderia esperar algum tempo. No momento, o importante era coletar o máximo de informações que propiciassem, mais tarde, elementos suficientes que permitissem as elaborações teóricas" (MELLO, 1995: 223-224). Logo, visto em si mesmo, o difusionismo foi mal interpretado e amplamente divulgado como defensor de um "relativismo cultural" (como exemplo, recorramos ao verbete Antropologia Cultural que compõe a edição atual da Larousse Cultural, volume II, página 350), o que repentinamente se dissipa se ousarmos elucidá-lo numa esfera mais ampla, em relação às vertentes antropológicas que o antecederam e sobrevieram. De qualquer modo, pela tarefa primacial que o difusionismo se colocou, a simples coleta de dados, qualquer tentativa de teorização seria-lhe impossível. Em verdade, porém, os difusionistas norte-americanos "não desprezavam a possibilidade de um estudo universal da cultura, nem o método comparativo. Negavam, e com veemência, fosse possível pô-lo em prática no estágio em que se encontrava a antropologia. Achavam que, antes de se partir para tal realização, mister seria realizarem-se numerosos estudos de pequenas comunidades; destarte seria possível, futuramente, proceder-se a um estudo mais vasto" (MELLO, 1995: 231).
(6) Neste sentido, podemos recorrer à clássica introdução que Robert Redfield, professor da Universidade de Chicago, fez às obras de Bronislaw Malinowski ("Magia, Ciência e Religião", "O Mito na Psicologia Primitiva" e "Baloma; os Espíritos dos Mortos nas Ilhas Trobriand"): "A crítica tantas vezes feita a Malinowski, de que generalizou a partir de um só caso, perde grande parte de sua força a partir do momento em que se pode admitir o pressuposto de que existem uma natureza humana e um padrão universal de cultura. Nunca nenhum outro autor melhor o justificou. Podemos ficar a saber muito de todas as sociedades a partir de uma única, de todos os homens a partir de alguns, se o invulgar conhecimento for combinado com o estudo paciente e prolongado do que outros autores escreveram a respeito de outras sociedades" (REDFIELD, 1988: 12). Mais contemporaneamente, escreve Lévi-Strauss: "O valor eminente da Etnologia é o de corresponder à primeira etapa de um processo que comporta outras: para além da diversidade empírica das sociedades humanas, a atividade etnográfica pretende atingir invariantes (...)" (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 275).
(7) Seria interessante aqui rememorarmos o parentesco que o "ato de racionalizar as coisas" teria, em sua franja etimológica, com o "ato de racionar as coisas". Racionalizar é justamente isto: reduzir toda uma multiplicidade em um, do qual todos seriam, em primeira ou em última fronteira, originários.
(8) "O conhecimento dos homens às vezes parece mais fácil para aqueles que se deixam prender na armadilha da identidade pessoal. Mas assim eles fecham para si a porta do conhecimento do homem: (...). De fato, Sartre torna-se cativo de seu Cogito" (LÉVI-STRAUSS, 1989 b: 277).
(9) O que para Immanel Kant tratava-se de uma Antropologia Empírica será denominado por Claude Lévi-Strauss de Etnografia; o que para o primeiro constituía uma Antropologia Transcendental será chamado pelo segundo de Etnologia, de um modo geral, e de Antropologia Estrutural, de um modo particular.
(10) Escreve-nos Lévi-Strauss: “A fonologia não pode deixar de desempenhar, perante as ciências sociais, o mesmo papel renovador que a física nuclear, por exemplo, desempenhou no conjunto das ciências exatas. Em que consiste esta revolução, quando tratamos de encará-la em suas implicações mais gerais? É o ilustre mestre da fonologia, N. Trubetzkoy, quem nos fornecerá a resposta a esta questão. Num artigo programa, ele reduz, em suma, o método fonológico a quatro procedimentos fundamentais: [1] em primeiro lugar, a fonologia passa dos fenômenos  lingüísticos conscientes ao estudo de sua infraestrutura inconsciente; [2] ela se recusa a tratar os termos como entidades independentes, tomando, ao contrário, como base de sua análise as relações entre os termos; [3] introduz a noção de sistema – ‘A fonologia atual não se limita a declarar que os fonemas são sempre membros de um sistema, ela mostra sistemas fonológicos concretos e torna patente sua estrutura’ –; [4] enfim, visa à descoberta de leis gerais, quer encontradas por indução, ‘quer (...) deduzidas logicamente, o que lhes dá um caráter absoluto’” (LÉVI-STRAUSS, s/d: 47-48).

Nenhum comentário:

Postar um comentário