Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





24 de fev. de 2012

TEXTO XXV: Por entre a Idade Média e a "Filosofia Cristã"


Rodrigo Rodrigues Alvim

I – A NOVIDADE

01. A parte do Oriente Médio, então habitada pelos judeus, a Palestina, também foi conquistada pelos romanos, que a denominaram “Judeia”. Foi nessa nova província romana que nasceu uma criança, a quem seus pais chamaram “Jesus”, nome não muito incomum. Não seria de se esperar muita coisa de alguém nascido nesse rincão do mundo greco-romano. Sua família era pobre, mas não tão pobre como ainda se poderia ser, uma vez que seu pai tinha uma profissão, a de carpinteiro, mão de obra qualificada e muito necessária à expansão e à construção de novas cidades. Filho de carpinteiro, muito provavelmente Jesus também exerceu as habilidades do pai, como era de praxe acontecer, daí tirando o seu sustento desde moço ainda. Por volta dos trinta anos de idade, reuniu em torno de si um grupo de homens e mulheres, ele na condição de seu mestre. Não era o único. Muitos assim viviam e eram tomados por “sábios” e “profetas”, dando continuidade à tradição judaica de organização de mundo à luz de considerações religiosas, em mesmo tempo que inevitavelmente político-ideológicas.

02. Apesar de sua morte prematura e “vergonhosa”, pois morreu ao modo dos criminosos condenados (ou seja, crucificado), impressionou por suas palavras e modo de vida os seus discípulos. Como estes não eram pessoas influentes e, no entanto, não se intimidaram em propagar a mensagem do seu mestre, mesmo em momentos de grande perseguição aos “cristãos”, como passaram a ser designados em virtude do cognome “cristo” (do grego Χριστός, Khristós, ungido) que atribuíram a Jesus [vindo de “messias” (do hebraico מָשִׁיחַ, Māšîa), aquele que, segundo profecias, haveria de vir protegido pelo óleo divino e realizaria grandes feitos], pode-se concluir que, independentemente de sua “divindade”, certamente Jesus fora alguém impressionante: a mensagem de amor que se propagou em seu nome, de conceder a outra face quando lhe batem e de oração pelos inimigos em tempo tão beligerante (de todas as partes), tomou eco, paulatinamente, em pessoas de diferentes povos, condições materiais de vida e de pensamento.


03. O modo de vida de Jesus e suas palavras ecoaram em muitos, através do engajamento de seus discípulos, fundando assim comunidades que o tomaram como “o Caminho”, comunidades relativamente autônomas, embora todas pretendentes à filiação de um daqueles que com ele haviam convivido pessoalmente, testemunhas oculares que a elas transmitiram, oral e diretamente, as palavras daquele mestre.

04. Contudo, com a morte, no decorrer do tempo, desses primeiros porta-vozes da mensagem e feitos de Jesus, as comunidades passaram a registrar, pela escrita, o testemunho desses homens. Tratava-se de obra que garantisse a memória e tradição à posteridade, comumente reescrita, por acréscimos, substituições e supressões, promovidos pela repetida leitura de muitos, membros dessas comunidades originárias da conversão, adesão e afinidade de vida, pelo menos pretendida, aos passos de Jesus. Portanto, já no final do primeiro século, estimado desde o nascimento de Jesus, os textos que o têm por motivo, denominados “Evangelhos” (do grego ευαγγέλιον, euangelion, boa mensagem), são muitos e filiados à autoridade, senão do próprio Jesus, a de seus discípulos e apóstolos (o "Evangelho de Mateus", o "de Tiago", o "de Judas"...). Como estes, são também confeccionados escritos referentes ao que se segue à vida de Jesus, mas tão-só importantes por sua causa dessa mesma vida, como o “Apocalipse” (do grego αποκάλυψις, apokálypsis, "revelação"), os “Atos” (do grego Πράξεις, praxeis, feitos – "dos Apóstolos", "de Filipe"...), as “Cartas” ou “Epístola” (também do grego πιστολή, mensagem enviada ou ordenada), dos apóstolos às comunidades.

05. O inacreditável crescimento do número de adeptos a esse novo movimento não pode, assim, deixar de chamar a atenção das autoridades políticas do império romano, bem como das autoridades político-religiosas judaicas. Como sói acontecer às autoridades constituídas, toda novidade é uma ameaça potencial ao estado estabelecido e, por conseguinte, deve ser vigiado. Tomando volume, deve ser contido. Por conseguinte, não tardou o acirramento da perseguição aos cristãos, que nem por isso deixaram de se multiplicar. Ao contrário, o martírio de muitos fomentou a conversão de muitos outros que, admirados com a coragem desses que não abdicavam de sua fé nem diante da morte, convenceram-se de que se devia tratar de obra de um deus verdadeiro. Enfim, na clandestinidade durante o dia e na reunião em catacumbas durante a noite, as comunidades cristãs se multiplicavam, se avolumavam, se consolidavam.

II – A INSTITUCIONALIZAÇÃO

06. Em lutas intestinas para a conquista do trono de Roma, Constantino venceu o seu rival, mas não sem grandes preocupações e tormentos. Em desvantagem na disputa, manifestou sua esperança, traduzida em vozes e visões, confessadas a Eusébio de Cesareia, importante historiador da época: Meus pace est cum Vos... In hoc signo vinces (Minha paz está contigo... com este sinal vencerás). O sinal extraordinariamente apresentado foi traduzido no lábaro de Constantino, uma figura formada pelas duas primeiras letras, o Chi (χ) e Ro (ρ), sobrepostas, da palavra Χριστός (Cristo). Embora improvável, a vitória de Constantino aconteceu e, mais tarde, graças à liberdade de manifestação que os cristãos alcançaram em razão desse desfecho, o lábaro de Constantino se tornou um dos grandes símbolos do ideal ulterior da cristandade.

07. Era corrente aos imperadores buscar divindades que os amparassem em seus empreendimentos de guerra. A novidade, talvez, no caso de Constantino, foi tê-lo buscado no deus único cristão. Talvez o tenha feito porque igualmente impressionado com a expansão do cristianismo, apesar das perseguições contra ela promovidas pelas autoridades romanas, interpretadas como grande força de seus adeptos e desse deus pelo qual eram capazes de dar a própria vida. Ainda que a conversão pública de Constantino tenha sido motivada por estratagema sua de trazer para junto de si a força desses homens, muitos dos quais certamente pertencentes ao contingente de seu próprio exército, sem poderem, no entanto, assim se manifestar livremente, alguns estudiosos interpretam que a sua conversão realmente se deu, pouco a pouco, no decorrer de sua vida e principalmente sob a influência de sua mãe.

08. Ao se converter, o imperador Constantino se aproximou de uma das comunidades cristãs, que, como antes dissemos, eram muitas. Com isso, predomina a preocupação com a unidade das comunidades cristãs que acompanhasse a permanente preocupação de manutenção da própria unidade do Império Romano. Tal empenho fará com que a comunidade com tal preocupação seja chamada, desde cedo, de “católica” (do grego καθολικος, que significa “universal”), que se organizará paulatinamente através de forte hierarquia, disposta geopoliticamente ao modo do Império, ou seja, por regiões, dioceses (do grego διοίκησις, dióikessis), subdivididas em distritos (mais tarde chamados de “paróquias”), com suas sedes geralmente em cidades de maior porte. Toda diocese estaria sob direção de um bispo e cada paróquia sob a direção de um padre ou pároco. As dioceses maiores se denominariam “arquidioceses” e seus responsáveis, “arcebispos”. Contudo, todas essas autoridades episcopais estariam submetidas ao primado do bispo de Roma (a “cidade eterna”), o Papa.

09. Uma outra importante expressão da preocupação de Constantino com a unidade das comunidades cristãs foi a elaboração de uma profissão de fé nos estritos limites daquilo que todos os bispos cristãos pudessem estar de acordo entre si, o que foi promovido a partir da convocação, pelo imperador, do Concílio de Niceia, donde o nome pelo qual essa profissão ficou conhecida: Credo Niceno. Mais tarde, em 381, essa profissão de fé foi revista e confirmada no Concílio de Constantinopla, nos seguintes termos:

Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso,
Criador do céu e da terra,
de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,
Filho Unigênito de Deus,
gerado do Pai antes de todos os séculos,
Deus de Deus, Luz da luz,
verdadeiro Deus de verdadeiro Deus,
gerado, não feito,
da mesma substância do Pai.
Por Ele todas as coisas foram feitas.
E, por nós, homens,
e para a nossa salvação,
desceu dos céus:
se encarnou pelo Espírito Santo,
no seio da Virgem Maria,
e se fez homem.
Também por nós foi crucificado
sob Pôncio Pilatos,
padeceu e foi sepultado.
Ressuscitou dos mortos ao terceiro dia,
conforme as Escrituras,
e subiu aos céus,
onde está assentado à direita de Deus Pai,
donde há de vir, em glória,
para julgar os vivos e os mortos;
e o Seu reino não terá fim.
Creio no Espírito Santo,
senhor e fonte de vida,
que procede do Pai (e do Filho);
e com o Pai e o Filho
é adorado e glorificado:
Ele falou pelos profetas.
Creio na Igreja
Una, Santa, Católica e Apostólica.
Confesso um só batismo para remissão dos pecados.
Espero a ressurreição dos mortos
e a vida do mundo vindouro.
Amém.

10. Inevitavelmente, o desejo de unidade do cristianismo reavivou as perseguições religiosas entre os próprios cristãos. A concepção de um cristianismo “oficial” e “católico” colocava todo resto pretensamente cristão sob a insígnia da “heresia” (αρεσις, em grego; haerĕsis, em latim: escolha – no caso, opção pelo não verdadeiro).

11. Se em 313, pela sua conversão ao cristianismo, Constantino, pelo Édito de Milão, garantiu liberdade religiosa aos cristãos até então perseguidos, foi somente no apagar das luzes do século IV que o último grande imperador romano, Teodósio I, proclamou o cristianismo como religião oficial do Império Romano.

III - REORGANIZAÇÃO DO MUNDO

3.1 – A Filosofia Cristã

12. Nesse encontro da cultura greco-romana com a cultura judaica e a mensagem cristã, uma organização do pensamento também se fazia necessária. Muitos desde cedo se empenharam nisso. Paulo de Tarso, em virtude de sua exemplar formação dentro dos costumes e pensamento judaicos, exerceu, durante a sua vida, um papel inigualável no entrecruzamento do judaísmo com a “boa nova” de Jesus, além de cedo ter compreendido que esta, diferentemente daquela, não se destinava a um povo apenas, mas a todos os homens, empreendendo esforços nesse sentido, como nos mostra o seu encontro em Jerusalém com os discípulos de Jesus, na defesa de que, sendo a “boa nova” do Cristo para todos, não precisavam os gentios (os estrangeiros convertidos à nova fé) submeterem-se às práticas da tradição judaica, como a circuncisão. Também foi Paulo que se deparou com os gregos, guardiões da cultura ainda predominante àquela época, como nos mostram os Atos dos Apóstolos e as suas Cartas (Epístolas) dirigidas às comunidades cristãs de Atenas, Corinto e Éfeso, experimentando diretamente as dificuldades dessa empreitada.


13. Com a morte dos discípulos e dos primeiros apóstolos, vieram os seus sucessores, denominados “bispos” (επίσκοπος, em grego, ou seja, administrador), auxiliados por outros ministros de diferentes denominações e atribuições dentro das comunidades cristãs. Dentre estes, muitos dos quais convertidos ao cristianismo em sua juventude ou idade adulta e, portanto, educados ao modo da tradição greco-romana, assumiram o desafio de compatibilizar tal tradição à mensagem de Jesus. Mais tarde chamados de “primeiros padres”, deram, por esse título, nome ao primeiro período de sistematização de uma “filosofia cristã”, a saber, “patrística”.

14. Nota-se, pois, a grande dificuldade que será, nesse período, separar o pensamento filosófico do pensamento religioso cristão e teológico, do mesmo modo que não se compreende bem a sua política, a sua economia e a sua arte, se quisermos separá-las da cosmovisão religiosa cristã.

Aurélio Agostinho
15. Inúmeros são os filósofos patrísticos e não temos a pretensão de desenvolvê-los aqui, até porque somente um conseguiu produzir uma obra filosófica de ampla sistematização: Aurélio Agostinho. É ele o autor da primeira teologia cristã que, tendo nascido na transição do século IV para o século V, ultrapassará muitos séculos. Mesmo Tomás de Aquino, maior responsável por uma nova teologia, que predominaria somente a partir do século XII, ainda havia se formado sob a exclusiva orientação da teologia patrística agostiniana. A vida de Agostinho, ele mesmo nô-la apresentou em obra que, apesar de seu perfil autobiográfico, se tornou texto filosófico de suma importância. Em outras obras suas, estabeleceu diálogo com diversas vertentes filosóficas, apresentando argumentos inovadores na compreensão de mundo, sempre tendo, como pano de fundo, a escritura bíblica. Embora de tendência platonizante, sua obra inovou sobre a questão do mal no mundo, sobre a aquisição do conhecimento, sobre o sentido da história, sempre promovendo um intenso diálogo entre a filosofia antiga, as vertentes de pensamento dominantes no seu tempo e os textos sagrados ao cristianismo.

16. Conta-nos ele mesmo de seu compromisso com a busca da verdade. Instigado por sua mãe, Mônica, à leitura da Bíblia, rejeitava-a como alguma coisa séria e digna de maiores atenções. No entanto, recém chegado a Milão como professor de retórica, toma, nesse sentido, ciência das habilidades presentes nas pregações de Ambrósio, bispo da cidade. Interessado em averiguá-las, passa a freqüentar os sermões ambrosianos. Conta-nos ele:

Ardorosamente o ouvia quando pregava ao povo, não com o espírito que convinha, mas como que a sondar a sua eloqüência para ver se correspondia à fama, ou se realmente se exagerava ou diminuía a sua reputação oratória (1).

17. Esse acontecimento foi decisivo à posterior conversão de Agostinho ao cristianismo, pois, imperceptivelmente, Ambrósio reeducava o seu olhar para as Escrituras Bíblicas, como Agostinho mesmo nos relata em suas Confissões:

Ambrósio de Milão
Alegrava-me também de ver que já me não propunham a leitura dos antigos escritos da Lei e dos Profetas, com a mesma panorâmica em que, tempos antes, me pareciam absurdas tais doutrinas, quando arguía os vossos santos, na suposição de que os interpretavam como eu julgava, quando na verdade os não interpretavam assim. Cheio de gozo, ouvia muitas vezes Ambrósio dizer nos sermões ao povo, como recomendar, diligentemente, esta verdade: “A letra mata e o espírito vivifica” (2).

18. Deixando a literalidade de muitos dos textos bíblicos e buscando seu sentido nas entrelinhas, Agostinho encontra uma chave de leitura que lhe permite compreender os textos bíblicos que antes desprezava. Mesmos textos, mas outros olhos!

19. A “gota d’água” para sua conversão acontece quando ele abre aleatoriamente uma das Epístolas de Paulo que se encontra no jardim de sua casa, enquanto lhe vem uma canção que lhe solicita a leitura. Então, seus olhos caem no seguinte trecho: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites” (3).

20. Como exemplos de originalidade da sua filosofia, podemos selecionar dois trechos de seus escritos, um, no qual ele reflete sobre o que é o mal, e outro, no qual reflete sobre o que é o tempo:

(Primeiro): Sobre o mal:

Vi Claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse.
De fato, a corrupção é nociva, e, se não diminuísse o bem, não seria nociva. Portanto, ou a corrupção nada prejudica – o que não é aceitável – ou todas as coisas que se corrompem são privadas de algum bem. Isto não admite dúvida. Se, porém, fossem privadas de todo o bem, deixariam inteiramente de existir. Se existissem e já não pudessem ser alteradas, seriam melhores porque permaneceriam incorruptíveis. Que maior monstruosidade do que afirmar que as coisas se tornariam melhores com perder todo o bem?
Por isso, se são privadas de todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem, são boas. Portanto, todas as coisas que existem são boas, e aquele mal que se procurava não é uma substância, pois, se fosse uma substância, seria um bem. [...].
Em absoluto, o mal não existe em Vós, nem para as vossas criaturas, [...]. Mas porque, em algumas de suas partes, certos elementos não se harmonizam com outros, são considerados maus. Mas estes coadunam-se com outros, e por isso são bons (no conjunto) e bons em si mesmos (4).

21. O problema do mal no mundo é uma das questões mais embaraçosas para a humanidade, porém especialmente para os cristãos que professam um Deus único, sumamente bom, criador de todas as coisas. Afinal, se assim é, donde provém o inconteste mal que presenciamos no mundo por ele criado? Pelo trecho de Agostinho, dado imediatamente acima, temos uma boa amostra da força argumentativa desse filósofo, bem como de sua capacidade intuitiva, expressa na sua tese de que o mal não é uma substância, mas uma privação de substância, ou seja, o mal não é um bem, mas uma privação do bem. Ora, em si mesmo, o mal não é, não existe e, por conseguinte, não exige criação.

22. Por fim, considera Agostinho sobre o mal:

Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de Vós, ó Deus - [...] (5).

(Segundo): Sobre o tempo:

Senhor, não houve um tempo em que nada fizeste, porque o próprio tempo foi feito por ti. E não há um tempo eterno contigo, porque tu és estável, e se o tempo fosse estável não seria o tempo. O que é realmente o tempo? Quem poderia explicá-lo de modo fácil e breve? Que poderia captar o seu conceito, para exprimi-lo em palavras? No entanto, que assunto mais familiar e mais conhecido em nossas conversações? Sem dúvida, nós compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. Por conseguinte, o que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; porém, se quero explicá-lo a quem me pergunta, então não sei. No entanto, posso dizer com segurança que não existiria um tempo passado, se nada passasse; e não existiria um tempo futuro, se nada devesse vir; e não haveria o tempo presente, se nada existisse. De que modo existem esses dois tempos – passado e futuro –, uma vez que o passado não mais existe e o futuro ainda não existe? E quanto ao presente, se permanecesse sempre presente e não se tornasse passado, não seria mais tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente, para ser tempo, devesse tornar-se passado, como poderemos dizer que existe, uma vez que a sua razão de ser é a mesma pela qual deixará de existir? Daí não podermos falar verdadeiramente da existência do tempo, senão enquanto tende a não existir (6).

23. A questão do tempo também é imposta ao cristianismo em virtude de sua profissão de um Deus criador, mas eterno. Se Deus é antes da criação do mundo, antes implica tempo e tempo também em Deus, comprometendo a sua imutabilidade. Agostinho, então, trata do tempo como condição apenas do mundo (da criatura) e, portanto, nossa. Daí que a sua abordagem, por coerência, ser “psicológica” (ou seja, como as coisas no tempo e o próprio tempo nos aparecem) e não ontológica (ou seja, o que é o tempo em si mesmo – o que nos seria indizível pela nossa própria condição já temporal). Daí que ele associa o passado à nossa memória já em nós (enquanto presente do passado), o futuro à nossa expectativa igualmente já em nós (enquanto presente do futuro) e o presente à nossa intuição (dado imediato) (enquanto presente do presente). Assim passado, presente e futuro certamente são em nós e da nossa condição e desde o mundo criado por Deus. Deus não está, enquanto criador e não criatura, submetido ao tempo. Se teimarmos em tratar de Deus relativamente ao tempo, só poderíamos dizer, então, que Deus é “sempre presente”. Rigorosamente, o tempo em si mesmo é indizível por nós, do mesmo modo que rigorosamente não podemos falar de Deus (é este que se nos revela; não somos nós quem o revelamos).

24. Nascido no norte da África, numa província romana, para lá retorna após sua conversão, sendo aclamado presbítero e, algum tempo depois, bispo pela comunidade da cidade de Hipona.

Entrada de Alarico em Roma
25. Com a morte de Teodoro I e a divisão do Império Romano (ocidental e oriental) entre os seus filhos, Alarico (o “bárbaro”, considerado o primeiro rei visigodo) cercou a cidade de Roma e a saqueou. Este acontecimento foi pungente nos espíritos da época, que acreditavam na invencibilidade da cidade, à qual concediam o predicado de “eterna”. Com o alcance da identidade da Igreja Cristã e do Império Romano, os cristãos, romanos ou não, também ficaram apreensivos com o ocorrido. E para agravar ainda mais a situação, alguns romanos não-cristãos levantaram a hipótese de que esse fato só foi possível por causa dessa união, que esmoreceu o antigo ânimo aguerrido do Império por um espírito esmorecido pelo mandamento cristão de amor ao próximo. Foi essa acusação aos cristãos que levou Agostinho a desenvolver uma defesa do cristianismo, que redundou numa filosofia da história, obra à qual se deu o título de A cidade de Deus.

26. A defesa busca os seus aportes, como não poderia deixar de ser, numa livre interpretação dos textos bíblicos. Segundo ela, a “cidade de Deus” não é Roma. Portanto, não é Roma a cidade eterna. Roma é uma das manifestações da “cidade dos homens” e, portanto, suscetível a quedas. Sua queda em causa, ao contrário da acusação que se fez aos cristãos, se deveu, na verdade, para Agostinho, ao fato de Roma ter tardado em abraçar o cristianismo e de ainda não tê-lo feito completamente. A “cidade de Deus” não é Roma e nem outra cidade visível. A “cidade de Deus” é, isto sim, uma cidade invisível, da qual fazem parte todos os homens de bem e que amam uns aos outros. Não obstante a sua invisibilidade, ela se constrói e é ela que triunfará. Ela, sim, é a cidade verdadeiramente eterna e a que, portanto, nenhum mal pode prevalecer.

27. Nesta esperança, morre Agostinho, em 430, com a sua cidade, Hipona, também cercada por bárbaros, da comunidade dos vândalos, que ocuparão todo o norte da África.

3.2 – A Europa

28. Com sucessivas e concomitantes invasões de diferentes comunidades “bárbaras”, o Ocidente foi escapando das mãos dos romanos. Apesar dos esforços do Império Romano do Oriente de reconquistá-lo, a dificuldade e demora na realização desse intento fez com que essas duas partes do antigo Império Romano fossem se tornando cada vez mais diferentes entre si. Como os “bárbaros” visavam o saque de cidades, onde se concentravam as riquezas produzidas, a população ocidental buscou, maciçamente, refúgio e proteção no campo, que foi se dividindo e se subdividindo numa complexa rede de suserania e vassalagem: o vassalo (não detentor de terra), mas em busca de proteção no campo, oferece-se para trabalhar a terra de outrem (o suserano), a este oferecendo em troca sua fidelidade e substancial parte de sua produção. Este ordenamento sócio-econômico ficou conhecido como “sistema feudal”.


29. Paralelamente a isso, o politeísmo das gentes “bárbaras” fez com que fossem relativamente tolerantes às diferentes manifestações religiosas. Nesse sentido, as lideranças religiosas cristãs, às vezes conseguiam avançar onde as lideranças seculares romanas falharam. Sem os pormenores, os diversos povos bárbaros nômades foram lentamente se convertendo ao cristianismo e a Igreja foi a instituição capaz de acomodar esses povos, então nômades, em uma nova geopolítica que incidirá no que atualmente conhecemos como Europa.

30. Mal fizera a Igreja essa reacomodação, surgiu, no século VII, um novo e forte movimento político-religioso, de origem árabe, e que também ameaçará as fronteiras da cristandade europeia ocidental: o islamismo.

Carlos Martel em Poitiers
31. Mas, para fazer justiça a toda essa reorganização, nesse período, de “bárbaros” cristãos, de contenção e conversão ao cristianismo de “bárbaros” ainda pagãos (sobretudo saxões) ao cristianismo, de detenção do avanço dos muçulmanos (que, depois de conquistar todo norte da África, invadiram a Península Ibérica, com pretensões e sólidas condições de avançar por toda a Europa cristã ocidental) e de uma administração feudal calcada num respeito à hierarquia de barões, condes, duques e rei, um nome mereceria um texto à parte: Carlos Martel. Carlos Martel foi uma dessas figuras que consideramos improváveis para sua época. Como uma espécie do mordomo-prefeito da dinastia merovíngia que governava os francos (um dos povos germânicos que invadiram todo o Império Romano Ocidental, como já vimos), sua importância à Europa cristã ocidental foi reconhecida já em seu próprio tempo e, na literatura europeia subsequente e hodierna, sua vida e feitos são considerados um épico (não obstante, por seus interesses internos de conquista, alguns historiadores tentem hoje minimizar esse seu feito). E, mesmo depois de sua morte, um dos seus filhos, Pepino (o Breve), e seu neto, Carlos Magno, inauguraram uma nova dinastia, a carolíngia, consolidaram o sistema administrativo, político e econômico feudal e terminaram de expulsar os muçulmanos definitivamente do extremo oeste da Europa ocidental. Para muitos, foi como o restabelecimento do Império Romano do Ocidente, sob o título de Império Carolíngio (ou “Carlovíngio”, nome que Pepino sugeriu em homenagem ao seu pai), período no qual à Igreja foram doadas muitas terras, dela fazendo, além de guardiã da unidade espiritual do Ocidente, uma forte instituição político-econômica, como nunca antes. Carlos Magno também mereceria um texto à parte, pois, embora analfabeto, promoveu um movimento cultural a que demos o nome de “Renascimento Carolíngio” (com abertura de várias escolas de pesquisa e combate ao analfabetismo, amparo de filósofos e artistas, investimento em publicações de obras “clássicas”, através do trabalho de inúmeros “copistas”, o que certamente contribuiu para que muito do patrimônio cultural ocidental não se perdesse). Com a morte de Carlos Magno e sua sucessão por Luís (o Piedoso), este dividiu o Império entre os seus filhos, ficando um responsável pela Germânia, outro pela França, e o terceiro pela Itália, já esboçando, assim, o que se tornarão alguns dos Estados Nacionais Modernos.

IV – ÚLTIMOS SÉCULOS

32. A subdivisão da história em três “eras” ou “idades” foi proposta pelos primeiros “modernos”. Inicialmente, pensou-se apenas na era que os antecedeu, a “Idade Antiga”, e a era na qual se encontravam, a “Idade Moderna”. Contudo, a “Idade Antiga” que lhes interessava no berço da modernidade, que redescobriam e faziam assim “renascer”, era muito mais remota: o tempo da cultura helênica. Reavivada, deram-lhe o nome de deram-lhe o nome de “Renascimento”. Em seu próprio lugar, reservaram-lhe o nome “Idade Antiga”. Assim, ao que lhes era imediatamente passado e que, dessa forma, ficava entre aquele tempo mais longínquo e o seu próprio tempo, chamaram de “era do meio”, de “era mediana”, de “Idade Média” – que, naquele momento, em nada lhes interessava, desprezando-a (apesar de seus mil anos) –, de “Idade das Trevas” ou “Era Obscurantista” (um preconceito que durou por toda a modernidade e contemporaneidade e que, ao menor interesse, condenavam como tendência “conservadora”). Somente mais recentemente, historiadores, sociólogos e filósofos têm recuperado e mostrado a riqueza e a importância desse período.

Carlos Magno
33. Relativamente a esse período medieval, em particular, convencionou-se chamar os seus primeiros séculos de “alta Idade Média” e os seus últimos séculos, de XII a XV, de “baixa Idade Média”. Logo, essa segunda parte do período feudal é marcada pelo auge das expedições militares cristãs ocidentais que pretendem reconquistar as “Terras Santas”, a antiga província romana da Judéia, especialmente a cidade de Jerusalém, sob posse dos turcos muçulmanos. Porque os militares ocidentais se veem como “soldados de Cristo”, passaram a chamar essas suas expedições de “Cruzadas” e que, a bem da verdade, tiveram início no século XI, com contingentes advindos principalmente do que fora o Império Carolíngio.

34. Desde as Cruzadas, mudanças significativas vão acontecendo no Ocidente, que levarão, no decorrer de alguns séculos, ao fim do modo de produção feudal e surgimento do modo de produção ainda atual: o capitalismo. As próprias Cruzadas implicaram a superação de uma economia de subsistência, como, até então, se tinha: primeiramente, o excedente se tornou necessário para o abastecimento dos contingentes cristãos-militares que se encontravam nas fronteias lestes combatendo os muçulmanos; em segundo lugar, apesar das Cruzadas terem durado aproximadamente do século XI até o século XIII, muito desse período era intercalado por tréguas e breves acordos de paz que permitiam uma convivência entre cristãos e muçulmanos, pela qual o intercâmbio de artigos foi se intensificando. Como o interesse pelos produtos orientais no Ocidente foi crescendo, foi preciso um excedente de produção entre os cristãos europeus que pudesse garantir esse comércio. Além disso, em resumo, começou-se a abrir estradas para esses intercâmbio e, por fim, onde tais estradas se entrecruzavam no Ocidente, passou-se a se estabelecer hospedarias e feiras de troca, a que se deu o nome de “burgos” (do latim burgus, fortaleza, povoado), que se tornarão cidades fora dos muros da sede dos feudos (castelos ou mosteiros). Daí também o nome “burguês”, dado àqueles que se aventuraram nas transações comerciais e que se tornarão os protagonistas do modo de produção capitalista nascente.

35. Data-se também do século XII, o nascimento das universidades que nos levou ao modelo que ainda hoje temos. Todavia, muitas delas advieram daquelas escolas inauguradas por Carlos Magno, anteriormente citadas. Fundadas, direta ou indiretamente, sob os auspícios da Igreja, inicialmente ofereciam estudos especializados de Direito, Medicina e Teologia, mas já desde o ensino básico literário [gramática, retórica e lógica (dialética)], seguido do científico [aritmética, geometria, música e astronomia], motivaram os espíritos da época à especulação, aos debates e ao intercâmbio de resultados de pesquisas.

36. Buscando acompanhar o “espírito crítico” dessas escolas, a “filosofia cristã” tomou, por isso mesmo, o nome de “escolástica”. Considera-se seu fundador, Anselmo, arcebispo de Cantuária, falecido em 1109, e o seu maior expoente, Tomás de Aquino, sacerdote e professor na Universidade de Paris, falecido em 1274, cujos pensamentos serão aqui um pouco apresentados.

4.1. Anselmo de Cantuária: Argumento Ontológico da Existência de Deus


37. Em sua obra Proslógio (7), Anselmo desenvolve um famoso raciocínio sobre a existência de Deus. Sua repercussão na filosofia se deve aos seus contornos puramente conceituais, ou seja, é um argumento a priori acerca da existência divina.

38. Anselmo parte da noção, que todos os homens, porque racionais, têm de “aquilo do qual não se pode pensar nada maior”. Bem expressado, não se trata de “o que é” “aquilo do qual não se pode pensar nada maior”, mas apenas da sua noção: trata-se somente de um conceito que nos ocorre mentalmente.

39. No entanto, adverte Anselmo, nem tudo que se pensa existe. Se assim é, poderíamos propor:

- “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” como existindo;

X

- “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” como não existindo.

40. Diante dessas duas possibilidades, porém, qual delas é verdadeiramente “aquilo do qual não se pode pensar nada maior”?

41. A resposta é inevitável: é “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” como existindo, pois tem, em relação à outra possibilidade, a existência, ou seja, algo a mais (um predicado) que o faz “maior”.

42. Ora, “aquilo do qual não se pode pensar nada maior” é o que os cristãos denominam “Deus”. Logo, Deus existe necessariamente.

4.2. Tomás de Aquino: Argumentos A Posteriori da Existência de Deus

43. Por trabalho dos árabes ou pelos copistas medievais, as obras de Aristóteles foram sendo reintroduzidas no Ocidente. Logo a sua força se fez sentir à teologia agostiniana predominante, de traço marcadamente neoplatônico. Tomás de Aquino toma, pois, a incumbência de avaliar o quanto a filosofia aristotélica se conforma ou não com o pensamento cristão. Mais do que isso, entretanto, Tomás de Aquino vai sistematizar o pensamento de Aristóteles à “filosofia cristã”, que, segundo muitos consideram, foi mais do que uma simples sistematização, mas uma obra de luz própria, se transformando num movimento de pensamento: o tomismo.

44. Como, para Aristóteles, o conhecimento é “adequação do intelecto à coisa” (que se pretende conhecer) e “nada há no intelecto humano que não tenha passado primeiramente pelos sentidos” – o que faz dele um empirista que apela à fundamentação sensível dos conceitos, Tomás de Aquino não pode aceitar a assepsia conceitual do argumento da existência de Deus, elaborado por Santo Anselmo, sugerindo cinco vias que nos demonstram a existência divina, partindo do que se pode observar no mundo. Vejamo-las literalmente:

A primeira via [do movimento] é esta: tudo aquilo que se move é movido por outro (VII Física [de Aristóteles] 21, 241b; Cmt 1). É evidente aos sentidos que algo se move, como, por exempo, o Sol. Logo, deve ser movido por outro movente.
Ora, esse outro movente ou é movido ou não é.
Se não é movido, confirma-se o nosso intento, isto é, o que é necessário afirmar-se que há um movente imóvel. A este denominamos Deus.
Se, porém, é movido, então o é por outro movente. Assim sendo, ou se deve proceder indefinidamente, ou se deve chegar a um movente imóvel. Mas como não se pode proceder indefinidamente, é necessário por um movente imóvel.
(...).

A segunda via [do movimento] é a seguinte: se todo movente se move, tal proposição é verdadeira ou por si mesma ou por acidente.
Se é verdadeira por acidente, não é necessária, visto que o verdadeiro por acidente não é necessário. Por conseguinte, que nenhum movente se mova é contingente. Mas se o movente não se move a si, também não move a outro, (...). Logo, é contingente que nada seja movido, pois se nada se move, nada é movido. Porém, Aristóteles afirma ser impossível que em algum tempo não tenha havido movimento algum (VIII Física 1, 250b-252a; Cmt 1-3, 991). Logo, o primeiro movente [que denominamos Deus] não foi contingente, porque de uma inverdade contingente não se conclui uma inverdade impossível. E, assim, esta proposição “todo movente é movido por outro” não é verdadeira por acidente.
(...).

Segue ainda o Filósofo [Aristóteles] (II Metafísica 2, 994ª; Cmt 2,299s) uma outra [terceira] via [da causa eficiente] para provar que não se pode proceder indefinidamente nas causas eficientes, mas que se deve chegar a uma causa primeira que é Deus. Trata-se da seguinte via: em todas as causa eficientes ordenadas, o primeiro é causa do intermediário, e o intermediário é causa do último, que haja só um ou muitos intermediários. Ora, removida a causa, removido também será aquilo de que ela é causa. Logo, removido o primeiro, o intermediário não poderá mais ser causa. Procedendo-se, porém, indefinidamente em causas eficientes, nenhuma delas será a primeira. Logo, todas as outras seriam removidas, visto serem intermediárias. Mas isto é evidentemente falso. Portanto, necessário é afirmar-se que há uma primeira causa eficiente, que é Deus.

Dos textos de Aristóteles, pode-se tirar um outro argumento [quarta via, dos graus de perfeição]. Mostra ele (II Metafísica 993b; Cmt2, 295ss) que as coisas ao máximo verdadeiras são também entes ao máximo. Mas (IV Metafísica 4, 1008b; Cmt 9, 695) ele mostra que há algo máximo verdadeiro, concluindo isso de que, por haver duas coisas falsas, sendo uma mais que outra, deve haver também uma mais verdadeira que a outra, conforme esteja mais próxima daquilo que é ao máximo e simplesmente verdadeiro. Infere-se daí haver algo que é ente ao máximo. Este algo dizemos ser Deus.

Para provar o mesmo, Damasceno (I A Fé Ortodoxa 3; PG 94, 795C-D) aduz um outro argumento tirado do governo das coisas [quinta via, da causa final], indicado também pelo Comentador (II Física; Averróis c. 75). É o seguinte: é impossível que as coisas contrárias e dissonantes estejam sempre, ou muitas vezes, concordes em uma só ordem, a não ser que estejam também sob o governo de alguém pelo qual é dado a todas e a cada uma dirigirem-se para determinado fim. Ora, vemos no mundo as coisas concordes em uma ordem, não raramente nem por acaso, mas sempre e na maioria das vezes. Deve, por conseguinte, haver alguém por cuja providência o mundo é governado. E a este chamamos Deus (8).

45. Apesar dos dados sensíveis do mundo, conforme Tomás de Aquino, serem imprescindíveis para o conhecimento, não são, contudo, suficientes. O simples acúmulo de dados sensoriais não justifica as nossas concepções. Por isso, mais uma vez seguindo a tradição aristotélica, defende que há no homem um “intelecto ativo” capaz de ideias universais e necessárias, capacidade esta que se exerce sobre os dados particulares adquiridos pelo “intelecto receptivo” e ao qual denominamos “reflexão”.

46. Para as nossas linhas gerais, é importante dar relevo à autonomia que esse pensador aquinense reconhece da razão e da filosofia em relação à fé e à teologia, principalmente quando se observa que a tradição cristã, embora valorizasse a filosofia, tendia a fazê-lo como “auxiliar da teologia” e, mais raro, por dignidade própria. Ao contrário! Se já não subserviente, a pura razão sempre foi encarada, em potencial, como uma ameaça à fé.

47. Nos últimos anos do período medieval, a escolástica esteve envolvida sobremaneira com a “questão dos universais”, ou seja, com a pergunta se os conceitos (“humanidade”, por exemplo) são reais (como defenderão os “realistas”, num extremo) ou apenas mentais (não passando, então, de “nomes” que nos conduzem a um predicado comum a um grupo de indivíduos, estes sim reais, como defenderão os “nominalistas”, noutro extremo). Abrindo as portas para um novo tempo, os “realistas” redundarão no racionalismo moderno, assim como os “nominalistas” se atualizarão no empirismo moderno. A “questão dos universais” é importante, quando se percebe que “Deus” é um conceito por excelência. Assim, os “realistas” querem garantir diretamente a sua realidade, enquanto os “nominalistas” (tomando-os, naquele contexto, como homens de fé na existência divina) querem furtá-lo ou protegê-lo da inspeção das novas ciências empíricas que estão surgindo e que tomarão como importantes para si somente conceitos que tenham fundamentação na experiência sensível dos entes mundanos individuais. Deus não seria, assim, uma questão para os procedimentos científicos, mas uma questão muito específica, somente destinada à fé numa revelação fora do ordinário.

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(1) AGOSTINHO, Aurélio. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 85.
(2) Idem, p. 92.
(3) Rom 13, 13.
(4) AGOSTINHO. Op. Cit. p. 118.
(5) Idem, p. 120.
(6) AGOSTINHO. Op. Cit. p. 217-218. Optei, no entanto, pela tradução para o português sugerida em: PEGORARO, Olinto. A. Sentidos da história: eterno retorno, destino, acaso, desígnio, inteligência, progresso sem fim. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 104.
(7) CANTUÁRIA, Santo Anselmo de. Proslógio. Tradução e notas de Angelo Ricci. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 95-123.
(8) AQUINO, Tomás. Suma contra os gentios. Tradução de Odilão Moura e Ludgero Jaspers. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes (Sulina); Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990. v. I. p. 37-44.

2 comentários:

  1. Primeiramente as imagens (figuras) são lindas e encaixaram muito bem ao texto.

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  2. Primeira parte: texto bem escrito, didático, de gostosa leitura e conteúdo consolidado. Início com o marco do nascimento de um mestre, sábio, "profeta" e final com o marco da consolidação da mensagem e ensinamentos deixados por este mestre e consequente aumento de seus seguidores. CRISTIANISMO. (Século I)

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