Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





28 de fev. de 2012

TEXTO XXVI: Pelos Olhos de um Jovem Teólogo: Dietrich Bonhoeffer


Rodrigo Rodrigues Alvim


01. O que ora escrevo foi-me inspirado pelo artigo de um amigo meu, Altamir C. de Andrade, sob o título “Alguns Desanimados na Bíblia”. Como se poderá facilmente comprovar, minhas considerações são uma tangência, ou seja, em nenhum momento o autor do artigo que me inspirou fez qualquer menção, direta ou indireta, relativamente ao que aqui considero. Não responde, certamente, pelo que imponderavelmente possa ocorrer na mente de um leitor qualquer como eu, intrometido em assuntos de teólogos. Enquanto ele nos apresenta um artigo de cuidado exegético, ver-se-á que eu apresento, apenas e muito brevemente, um “repente”.

02. O artigo ao qual me refiro tem seus dois parágrafos conclusivos apresentados no blogMeus Rascunhus” (altamirandrade.blogspot.com), mas, integralmente (como aí já também se diz), pode ser encontrado na Rhema – Revista de Filosofia e Teologia, Juiz de Fora, v. 10, n. 33, p. 79-86, jan./abr. 2004. ISSN 1516-3954.

03. Em 1995, Richard Elliott Friedman, publicou “The disappearance of God: a divine mystery” (o desaparecimento de Deus, um mistério divino) (1). Friedman é teólogo e professor como Altamir e, no primeiro terço do seu livro, deseja nos fazer observar que no decorrer dos próprios textos bíblicos, Deus vai deixando de se manifestar, não somente pelo quantitatis prospectu, mas também pela perspectiva qualita. Se atentos, um incômodo já deveria se fazer, quando se entende que fazer teologia implica fé e, geralmente, fé na existência de um Deus que se revela e não escondido (ao modo raro dos que defenderam a sua radical transcendência e inacessibilidade à condição humana). E dos poucos que defendem o “Deus Absconditus” à miserabilidade humana, parte significativa, por isso mesmo, justifica a necessidade da revelação divina ao homem, reforçando-a, pois. Caso um incômodo já não se dê por isso, poderia se dar entre o título e o subtítulo que Friedman propõe à sua obra: o desaparecimento de Deus é um mistério que ele atribui ao mesmo Deus.

04. O mote da obra de Friedman prontamente me trouxe à mente a intuição do teólogo protestante luterano Dietrich Bonhoeffer, condenado pelos nazistas à forca cinquenta anos antes, aproximadamente, da obra de Friedman. Apesar de Bonhoeffer ter sido referência dos “teólogos da ‘morte de Deus’”, tema que interessa, sobretudo, ao termo do segundo terço do livro de Friedman, este só o cita – e muito rapidamente – em dois momentos, dando-lhe, aliás, pouca importância. Apesar de sua morte prematura em 1945, aos 39 anos de idade, Bonhoeffer deixou essa sua intuição refletida em sua “Ética” e, sobremaneira, em “Resistência e rendição” (esta última como uma coletânea de cartas escritas durante a sua prisão) (2). Teria, indubitavelmente, desenvolvido-a melhor, tivesse sobrevivido por mais tempo.

05. É certo que Bonhoeffer não é um “teólogo da ‘morte de Deus’”, negativa da qual Friedman compartilha numa daquelas duas páginas em que o cita, pois essa “teologia radical” foi um movimento posterior, situado principalmente na década de 60. Contudo, a “morte de Deus” é uma concepção da obra filosófica de Friedrich W. Nietzsche (um leitor de Fiódor M. Dostoiévski), uma metáfora do processo moderno de secularização que abala definitivamente todo pretenso “sagrado”, “absoluto” e “transcendente”, manifesto no mundo ou não, afirmando o valor do mundo humano por si mesmo. Nesse sentido, a “noção de ‘chegada à maioridade do homem’” de Bonhoeffer não é “fenomenologicamente” diferente da “morte de Deus” nietzschiano: “já está bastante evidente que tudo pode caminhar sem ‘Deus’ e não menos bem que antes”, escreveu Bonhoeffer. Portanto, para este e Nietzsche, não mais está em disputa a questão metafísica se Deus existe ou não. A certeza comum a ambos é que o homem moderno não necessita mais crer na existência de Deus para continuar sendo, como antes, e, na verdade, não mais crê, sendo, como nunca, responsável pela sua própria condição e futuro – alguém que, enfim, alcançou a sua maioridade e emancipação.

06. Livre assim, mas diante de desafios que parecem tão altos às suas forças, “alguns [antes] desanimados [da Bíblia]” se tornaram, hoje, muitos, o que bem se expressa no temor da loucura (em vários nomes de nossas patologias psicológicas e psiquiátricas possíveis ou tormentos existenciais) e na perspectiva otimista que o suicídio vai tomando nesse mesmo tempo (destacadamente na literatura existencialista e niilista).

07. Não obstante tudo isso, ainda que se tome a “morte de Deus” como motivo “fenomenológico”, há em Bonhoeffer, porque teólogo (e para não perder essa denominação), uma retroação que não se manifesta em Nietzsche, a saber, que tal “fenômeno” está nos propósitos da própria divindade – tal como Friedman veio a sustentar, como vimos, já desde o título da sua obra que citamos. Escreve Bonhoeffer: “o próprio Deus nos ensina que a nossa vida de homens deve prosseguir como se ele não existisse”. Se a “morte de Deus” é factualmente constatável, o seu acontecimento como vontade divina não é “falsificável”, mas implica aquela “fé” que dissemos ser ingrediente imprescindível a toda teologia. Ademais, é neste particular uma fé “radical”, sem a qual seria realmente absurdo tomar a “morte de Deus” como afirmação teológica, como historicamente ocorreu nos anos 60. Essa inevitável fronteira metafísica da teologia deve ser, contudo, o mínimo de concessão ao “se Deus quiser” para se evitar a falta do engajamento que Bonhoeffer notou na maioria dos membros da comunidade protestante alemã na época da ascensão de Hitler ao poder e mesmo durante o recrudescimento das invasões e perseguições aos judeus, que o fez manifestar-se publicamente contra o Führer e participar da Resistência Alemã contra o nazismo e da construção de uma estratégia de atentado contra a vida de Hitler, ato limítrofe que se fez compreender pela sua famosa frase: “é melhor fazer um mal do que ser mal”.

08. Bonhoeffer passou, então a advertir a Igreja quanto ao perigo de se tentar cooptar adeptos por uma esperança num Deus que denominou “tapa-buracos”, ou seja, numa intervenção divina que, na verdade, segundo ele, só condena o homem à menoridade e subserviência. Teologicamente, enfrenta esse problema rediscutindo a tese de Lutero da “justificação da graça” suficiente, apelando à obra humana que se dirige aos sofridos por amor aos próprios sofridos. Estabelece, enfim, que “o único modo de ser honesto é reconhecer que devemos viver no mundo etsi deus non daretur, ou seja, como se Deus não existisse”. “Como se” expressa, mais uma vez, a fronteira teológica para se tratar da “morte de Deus” na modernidade. Tal consideração recoloca, ao teólogo cristão, o Jesus que enfrenta a morte humanamente. Nesse sentido, a pergunta que Jesus faz no alto da cruz, antes de “entregar o seu espírito”, torna-se paradigmática: “Meus Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” É essa condição que nos permite nos identificarmos com ele e por ele restauramos a nossa responsabilidade por nós mesmos, pelos nossos atos e uns pelos outros. Bonhoeffer está seguro de que somente assim os cristãos se engajariam em obras, em exemplos, em testemunhos práticos que possam interessar à contemporaneidade.

09. Paradoxalmente – percebo –, é quando desse abandono do homem à sua própria humanidade ontologicamente limitada, individual, mas também comunitariamente, que o mesmo homem se faz suscetível ao transcendente que possa lhe “salvar”. Paradoxo é o cansaço mesmo – como aqueles “alguns” na Bíblia desanimados. E, enfim, depositamos toda a nossa confiança novamente em Deus e somente nele esperamos. No mesmo momento em que a cultura parece prescindir-se de um Deus que possa vir ao nosso socorro (pois desacreditado), sente-se confortada e facilmente se adere a um texto como “Pegadas na areia”, que vemos se multiplicar pela Internet, fazendo como que nossas as palavras de Dostoiévski: Sou filho da descrença e da dúvida até ao presente ou mesmo até à sepultura. Que terrível sofrimento me causou, e ainda me causa, a sede de crer, tanto mais forte na minha alma quanto maior é o número de argumentos contrários em que em mim existe! Nada há de mais belo, de mais profundo, de mais perfeito do que Cristo. Não só não há nada, mas nem sequer pode haver”.


10. Não sabemos como tudo vai terminar. Só podemos responder pelas nossas escolhas aqui e agora. Lembro-me de uma conversa minha com o Altamir em que ele me apresentava (e a outros mais) a dupla redação que se tem, no livro do Gênesis, quanto à expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden: uma incidiu na interpretação dominante de uma “queda” da humanidade, uma vez que se afastou do mandato divino; outra, menos difundida, que permite a interpretação de que o homem se afastou do mandato divino justamente porque se elevou, se já não à condição de Deus, à uma condição mais próxima do Criador, pela capacidade de, por si mesmo, depois de comer do fruto da “arvore do conhecimento”, distinguir entre o bem e o mal, uma emancipação. Tal maioridade, liberdade e responsabilidade são, no entanto, o que permitiu ao homem tanto sonhar quanto ter os seus mais terríveis pesadelos.

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(1) Uma tradução para língua portuguesa surgiu em 1997, de Sonia Moreira, pela Editora Imago, 364 p.
(2) Ambas têm sua tradução para língua portuguesa feita pela EST (Escola Superior de Teologia), Editora Sinodal. A “Ética” foi traduzida por Helberto Michel, 1988, 218 p., e “Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão” foi traduzida por Nélio Schneider, 2003, 638 p.

3 comentários:

  1. Meu caro amigo! Ler você é sentir-se levado, aos poucos, pelos caminhos profundos da reflexão. Gostaria de empunhar seu texto pelo fim admitindo, porém, que muito pouco eu sei sobre o jovem Dietrich Bonhoeffer. De fato, a queda da humanidade em Gn 3 é uma queda para cima, ou seja, a saída da menoridade numa busca verdadeira do ser porque, como se diz popularmente, “o que vem fácil vai fácil”. Oportunamente, publicarei aquela reflexão sobre Gênesis. Contudo, nesse momento, manifesto minha alegria em saber que não estou enganado em estranhar alguns comportamentos humanos modernos, como você demonstrou: “no mesmo momento em que a cultura parece prescindir-se de um Deus que possa vir ao nosso socorro (pois desacreditado), sente-se confortada e facilmente se adere a um texto como ‘Pegadas na areia’, que vemos se multiplicar pela Internet”. De fato, ao digitar no Google esse texto, aparecem cerca de 212 mil ocorrências. Dentre elas, uma que o considera como se fosse uma mensagem bíblica. Não admira, portanto, que ainda hoje o cânon bíblico gere alguma confusão: como podemos querer que não fosse assim nos primeiros séculos? Obrigado pelo seu texto, uma vez mais brilhante e claro!
    Altamir Andrade

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  2. Confesso que estou encantado com o seu blog. Tenho alguma dificuldade com alguns conceitos e reflexões pelo fato de ser médico. Mas meu interesse pela filosofia e antropologia da religião são muito grandes.. Um forte abraço
    Gustavo Magno

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    1. Olá, Gustavo Magno! O interesse, a curiosidade, a admiração e outros correlatos são a fonte que produz espíritos filosóficos, embora possamos ter-nos feitos filósofos ou médicos academicamente. Portanto, fico feliz em tê-lo encontrado, mais um "espírito filosófico". No início, como já percebia o próprio Platão, tudo nos parece mesmo difícil e nebuloso, mas, pouco a pouco, vamos nos esclarecendo pelo nosso esforço (de apreensão dos conceitos). O mistério, contudo, nunca se dissipa completamente, ao mesmo tempo que é o que nos mantém ainda encantandos e "filósofos", ou seja, ao encalço permanente de uma compreensão melhor. Nesse sentido, quem poderá se arvorar melhor do que o outro? A filosofia é, assim, uma busca incessante, mas que pode começar de qualquer lugar, pela antropologia ou pela religião, pela ciência ou pela ética (...). Obrigado, enfim, Gustavo Magno, pela sua leitura de alguma coisa que tenho a dizer neste meu "Blog". Tenho certeza de que esse seu interesse pela filosofia faz de você uma pessoa melhor a si mesmo e aos outros, bem como um profissional (médico) diferenciado. Um grande abraço!

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