Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





25 de abr. de 2010

TEXTO I: Reencontro da Filosofia

Rodrigo Rodrigues Alvim

01. Conta-se que foi Pitágoras de Samos que, confundido com um sábio (sophos, um “sofista” ou detentor do saber), advertiu, pela primeira vez, ser somente e tão-somente um “filósofo” (philo-sophos), isto é, apenas um amigo, um amante, um pretendente ao saber.

02. Como contemporaneamente foi asseverado, “a humildade filosófica consiste em dizer que a verdade não pertence mais a mim que a ti, mas que ela está [a]diante de [todos] nós” (1). Assim, não se pode afirmar adequadamente que se aprende a filosofia, pois esta se traduz em sistemas de pensamento que se acumulam no decorrer do tempo, às vezes uns procurando refutar outros, nem sempre hegemônicos, muitas vezes esquecidos, mas sempre lá, na história sempre inacabada, perenes. Logo, o que verdadeiramente importa é “aprender a filosofar” (2), atitude avessa ao ceticismo radical e ao niilismo, bem como, no extremo oposto, ao dogmatismo e ao fundamentalismo.

03. Mais do que uma tentativa de elevar a dita realidade à consciência – a mesma realidade com a qual as ciências hoje se preocupam fragmentariamente (especializações que lhes atribuem diferentes sobrenomes, tais como ciências exatas, ciências naturais, ciências humanas, e, dentro de cada uma destas, outros sobrenomes mais) –, a filosofia é também e sobretudo a busca do sentido que perpassa e dá unidade ao que, num só termo, chamamos de “vida” ou de “existência” e que o filósofo, desde os primórdios, denomina comumente “ser” ou simplesmente “o que é”. A filosofia se faz a si mesma, então, não como uma tentativa de conhecimento de tudo, mas, podemos dizer, como uma tentativa de conhecimento do todo: se cada ciência busca o conhecimento de um aspecto da realidade, a filosofia almeja compreender, por sua vez, estas diversas atividades científicas e todos os demais modos de compreensão da realidade, pretendendo, pois, a instituição de uma epistemologia, de uma filosofia da ciência, de uma filosofia da religião, de uma estética, de uma ética, de uma antropologia, bem como de uma filosofia da história, de uma filosofia do direito, de uma filosofia social e política, de uma cosmologia, variações sempre atentas ao mais universal e necessário e que atualmente compõem o currículo de um Curso de Filosofia.

04. Numa sociedade demasiadamente complexa como a nossa, num tempo tão acelerado como o nosso, onde, a julgar pelas aparências, “tudo o que é sólido desmancha-se no ar”, nunca se necessitou tanto de homens comprometidos com a filosofia. É por desenvolver esta sua característica de apreender a essência, mesmo de um mundo no decorrer do qual tudo parece soçobrar, que o filósofo é hoje chamado onde a vida se esvai, onde nenhum valor mais convence, onde tudo se eleva difuso e disperso, onde nada mais parece se esquivar da corrupção (ou seja, aos hospitais, às escolas, aos sindicatos, às administrações públicas...).

05. Pensando incansavelmente a realidade, pensando o pensado, ou melhor, refletindo, criticando e autocriticando-se, a filosofia se traduz em processo ininterrupto e jamais cristalizado. Livre por excelência e dialógica, a filosofia enquanto algo pronto e acabado, substantivado, não existe propriamente. Tomar este exercício – o filosofar – como algo precisamente definido é reificá-lo (é coisificá-lo), tentando transformá-lo naquilo que, por princípio, ele não é: um instrumento de manipulação e obtenção de precisos interesses, estes ou aqueles, em nada comprometido com a verdade que se impõe a todos indistintamente. É desta maneira que a filosofia, perdendo a sua autonomia para se tornar serviçal das circunstanciais e, não raras vezes, conflitantes pretensões humanas, recebeu qualificações como “cristã”, “marxista”, “positivista”, etc. Anteriormente a isto, entretanto e muito ao contrário, a filosofia explicita a própria capacidade do homem, diante dos muitos entes, de transcender o seu mergulho na indistinção do que existe, deixando de ser verme entre os vermes. Diante do mundo, por esta transcendência, pode-se, desde então, escolher (ser) isto ou aquilo, desta ou de outra forma.

06. Originalmente e em sentido largo, somos todos filósofos. Difícil é continuar sendo-o ou assim se fazer em sentido mais estrito. Na realidade, a maioria dos homens enfrentaria enormes dificuldades ao tentar justificar, ao termo de sua vida, porque se tornou o que efetivamente foi. Afogada no cotidiano, perceberia tarde demais – caso chegasse mesmo a perceber – que paradoxalmente viveu sem verdadeiramente viver, porquanto nunca se deu a chance de, tomando as justas distâncias de tudo, reconhecer que tudo é fugidio – e também o homem, por inclusão –, que tudo passa como se não passasse... Enfim, ele já estaria filosofando e certamente escolhendo viver o que, de fato, ele gostaria de viver, posto que não temos a eternidade para degustar tudo o que nos é dado em nosso decorrer.

07. Eis, talvez, o maior de todos os mistérios que nos encanta e espanta: termo-nos deixado de ser como que um verme, transcendendo-nos a nós próprios, refletindo-nos a nós mesmos, mistério bem expresso na estupenda exclamação: “Eu sou!” Pois, ainda que materialistas fôssemos, não se faz ainda mais estonteante o fato de que uma parte da matéria tenha a potência de transcender-se a si mesma e a tudo mais e dizer: “Sou!”? Sair de si – como isto é possível? –, dobrar-se sobre si, pensar-se como outro, sendo o mesmo... Tudo isto não escapa aos limites do que categorizamos consensualmente como “matéria”?

08. A reflexão implica a liberdade. Noutros termos, a filosofia resgata-nos da possibilidade de sermos malgrado nosso, como uma coisa qualquer ou como parte de um rebanho. Contudo, é ela uma atividade que deve ser exercida para não se perder e não reincidirmo-nos na inautenticidade, tornando-nos, em clara alusão a Karl Marx, uma mercadoria dentre tantas outras, conforme tendência maior dentro do nosso momento histórico.

09. A vida nos é dada e prontamente tirada desde o momento em que passamos a ser. Fenomenologicamente, não éramos antes e voltaremos a não ser mais. Este ritmo é alheio à vontade humana. Mais cedo ou mais tarde, deixaremos absolutamente de ser esta unidade que cada um reconhece pela partícula “eu”, uma existência por nada, sem sentido, se tudo passa e nada resta. Sendo assim, talvez a maior ousadia humana não seja outra senão se desgastar ou dar a própria vida intencionalmente, assumindo o inevitável como seu, assumindo uma causa que se julgue nobre, dando a vida por algo que subtraímos do absurdo primordial, fazendo-o sentido e gonzo de um mundo agora encantado e pleno de sentido.

10. Infelizmente, poucos são os que hodiernamente reservam tempo ao exercício do filosofar, escapando ao imediatismo que nos consome. E, no entanto, ou quiçá por isto mesmo, nunca, nunca o mundo necessitou tanto de filosofia, de verdadeiros livres pensantes, ou, numa mais breve expressão: de filósofos!

Notas:
(1) HUISMAN, Denis, VERGEZ, André. Compêndio moderno de filosofia: a ação. Tradução de Lélia de Almeida Gonzalez. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1987. v. 1, p. 24.
(2) Mais precisamente, dizia Immanuel Kant que “os alunos devem ir à escola não para aprender pensamentos, mas para aprender a pensar e a conduzir-se.” (Apud PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Tradução de Raimundo Vier. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 191).

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