Pensar as coisas, pensar sobre o que se pensou e assim sucessivamente. Pensamento que se dobra sobre si mesmo, reflexão. A razão rumina a existência. Absortos, matutando, isto é filosofar. Pense conosco!

Acima, Caipira Picando Fumo
J. F. Almeida Júnior
Óleo sobre tela, 1893
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo





27 de abr. de 2010

TEXTO IV: Contra os Primeiros Filósofos, a Contribuição dos Sofistas à Cultura do Ocidente

Rodrigo Rodrigues Alvim
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01. Era difícil entre os gregos antigos de diferentes poleis encontrar alguém que desejasse livremente deixar a sua terra natal. Muito pelo contrário, expatriar-se era geralmente uma dura penalidade aplicada àqueles condenados pela sua cidade-Estado. No período mesmo dos primeiros filósofos, temos o caso de Pitágoras de Samos, que, apesar de suas lendárias viagens, é certo que, por questões políticas, foi expulso de sua cidade berço, bem como de Crotona, onde teria fundado a sua escola (a “primeira universidade do mundo”), e terminou os seus dias em Metaponto; temos igualmente o caso de Empédocles de Agrigento, que se exilou, igualmente por motivos políticos, na região do Peloponeso. Sair dos muros da cidade era, de fato, arriscado e, apesar das viagens atribuídas aos primeiros filósofos, isso não era freqüente entre as gentes comuns. Ademais, comparado ao trânsito que se atribuiu aos pensadores seguintes, chamados sofistas, parece que ao intercâmbio comercial de outrora não houve intercâmbio cultural em semelhante proporção.

02. Com o surgimento desses novos pensadores, surgirá concomitantemente o relativismo, segundo o qual uma coisa é em relação à perspectiva que se adota. Nos precisos termos daquele que é apontado como o pai dos sofistas, Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas...” Protágoras logo percebeu que uma aparente mesma coisa é tomada distintamente em diferentes cidades, mas com semelhante convicção de se estar tratando da coisa em si mesma e não de uma interpretação da coisa conforme determinada cultura. Não poderíamos, se assim for, ter a pretensão da coisa mesma, do mundo como tal, porém tão-somente daquilo que da coisa ou do mundo se diz e se diz de modo tanto mais partilhado, isto é, socializado.

03. Essas ponderações feitas desde Protágoras incidirão na conclusão de que o que tomamos por verdade não passaria das palavras mais persuasivas proferidas a seu respeito. Daí, quem é mais hábil com as palavras acaba persuadindo os seus ouvintes de que o que diz sobre a coisa é a coisa precisamente. A boa oratória ou a eloquência, uma capacidade humana, é a chave para a “verdade” do mundo. Opostamente aos filósofos anteriores, a verdade da physis não se encontra em seu(s) elemento(s) arquetípico(s) – universal(is), se assim for(em) –, mas a “verdade” é culturalmente construída, ou seja, ela é interpretação humana amplamente aceite, consensualmente estabelecida, politicamente legitimada. E se são possíveis diferentes culturas e interpretações, a universalidade da verdade do mundo não passaria de engodo.

04. Por tudo isso, Górgias, outro sofista de renome, estabelecerá suas três teses: 1) não é; 2) ainda que algo, não seria passível de ser conhecido; 3) ainda que algo e conhecido, não seria passível de ser comunicado. Significamos por essas três teses que, primeiramente, nada é rigorosamente em si e por si mesmo (só temos interpretações); em segundo lugar, se algo existisse, não nos seria dado como tal ou, como tal, não seria precisamente conhecido por nós; em último lugar, se algo existisse e fosse por nós conhecido, não teríamos como transmiti-lo a ninguém, pois o que nos garante que interpretamos (ou decodificamos) as palavras alheias pelas mesmos sentidos a elas atribuídos por quem as emitiu? Por exemplo, se alguém nos diz de sua dor, ora sentida, podemos compreendê-la? Compreender é o mesmo que sentir? E se nos diz que essa dor é saudade de sua mãe? A saudade que sente de sua mãe é o mesmo que a saudade que eu poderia sentir ou já senti da minha mãe, por hipótese ou noutro tempo quando dela estive apartado? Como saber fielmente o que ele sente e tenta traduzir em palavras?

05. Já seria suficiente o exposto para percebermos que os sofistas deslocaram o olhar dos investigadores posto na “natureza” para o que hoje tomamos por “cultura”. Nesta última estaria toda obra humana, mas também o conhecimento da “natureza”, pois, como vimos, também o conhecimento da natureza é, para os sofistas, obra humana e não a própria natureza. A atenção se desloca das coisas naturais para o que é constituído na polis. Seria o homem se descobrindo a si mesmo?

06. Além desse grande feito dos sofistas, relembremos – pois já abordado – que foram eles que promoveram o primeiro grande intercâmbio cultural da história do Ocidente. Agrega-se, por terceiro, que são eles destacados como os primeiros educadores cônscios disto, porquanto a habilidade para a construção da “verdade” pode ser ensinada e adquirida: é ela a própria sofística, isto é, a maneira pela qual as palavras pareçam ser verdadeiras, uma vez que palavras verdadeiras só poderiam se pretender simplesmente verdadeira (e não somente aparentemente) se houvessem as coisas enquanto tais para nós, o que, antes vimos, não existem.

07. A educação é, portanto, para os sofistas, o meio privilegiado através da qual cada sociedade mantém a sua interpretação geral de mundo, de tal sorte que tanto a tolerância às diferentes interpretações quanto o diálogo entre as múltiplas "medidas" dadas às coisas passam a ser condições de possibilidade para a partilha dos diversos significados culturais. Isso vai se contrapor à consideração, naquela época amplamente difundida, de que o conhecimento e as habilidades (virtudes) eram inatos e peculiares à aristocracia. Com a consideração de que o conhecimento e as habilidades (virtudes) são adquiridos mediante educação que se recebe, o saber passa a ser acessível, em tese, também aos não aristocratas.


08. Essas características aqui levantadas da prática sofística concorrerão para que a cidade-Estado de Atenas, em seu momento áureo, concentrasse um número jamais visto de seus representantes. Viajantes, os sofistas encontrarão melhor acolhida nessa cidade que ensaiava a primeira democracia da qual temos notícias. Nenhuma família da sua aristocracia ousava, então, colocar-se acima das demais. Noutros termos, as famílias aristocráticas atenienses se tinham por iguais entre si e, por isso, os destinos da cidade, as leis da polis deveriam ser esclarecidas no livre debate entre elas, homens livres, em praça pública. Sendo que, por cada discurso, cada cidadão almejava convencer ou persuadir os demais de que as suas palavras conferiam o melhor para a cidade, o domínio das palavras se tornou o principal instrumento da democracia, fazendo com que rapidamente os filhos da aristocracia buscassem o convívio com os sofistas, a fim de se exercitarem nesse domínio, o que, paralelamente, fez com que esses pensadores, apesar de estrangeiros (portanto não cidadãos) acumulassem prestígios e bens materiais nessa cidade

09. O relativismo interpretativo culminará, paradoxalmente, na arte de fazer parecer natural e universalmente real ou verdadeiro o que rigorosamente não se tem como assim garantir, segundo o movimento sofístico original. Já na antiga Atenas, o relativismo interpretativo há de se declinar no uso aristocrático de fazer parecer interesse de todos (públicos) aquilo que só expressa interesses de poucos (privados ou particulares), mas de poucos que dominam as técnicas retóricas para assim iludir os restantes.

10. “Sofista” significa etimologicamente “sábio”. Se não foram os próprios sofistas que assim se denominaram a si mesmos, torna-se certo que eles apreciaram tal denominação, visto que assim permaneceu e não se trata de nome pejorativo. O problema que daí surgiu foi que os ares de sabedoria não se afinaram muito bem com o relativismo que estava na base do movimento sofístico, pois o saber arrogado ou suposto não poderia ter fundamento no conhecimento das próprias coisas, múltiplos temas sobre os quais os sofistas se apresentavam especialistas, escondendo por detrás disso a simples conveniência, sobretudo à medida que os interesses da aristocracia ateniense passaram a ser, por fim, os seus interesses também: fazer com que muitos dos velhos interesses privados da aristocracia aparecessem como o bem de todos, universal. A denúncia dessa contradição dará vida a três filosofias que se desenharão diferentemente, apesar de tanto em comum. São elas, a filosofia de Sócrates, a filosofia de Platão e a filosofia de Aristóteles, os três principais pilares do pensamento antigo da Grécia.

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